Se olharmos para as lições da história, todas as transições geopolíticas anteriores foram violentas. Nada permite supor que hoje a história será mais benigna para os nossos contemporâneos, especialmente se reparada a desproporção fenomenal de recursos militares que são retidos pelo centro imperial, comparativamente a todos os outros países do planeta.
Por Atilio Boron, no Correio da Cidadania, de 09/05/2014
Uma olhada nas novidades editoriais produzidas no estudo das relações internacionais – ou, se quisermos usar uma linguagem “politicamente incorreta”, porém, mais clara e acessível: o imperialismo – revela a crescente presença de obras e autores que apelam à problemática geopolítica. A súbita irrupção dessa temática nos move a compartilhar uma breve reflexão, por duas razões.
Primeiro porque o assunto e a palavra há tempos tinham sido expulsos, aparentemente para sempre, do campo dos estudos internacionais e agora estão de volta. Propomos a hipótese, em segundo lugar, de que sua reincorporação não tem nada de casual ou acidental, mas é um sintoma de um fenômeno que transcende o plano da teoria e a semiologia: a decadência do império norte-americano.
Em relação ao primeiro, digamos que o abandono da perspectiva geopolítica não só se verificou nas elaborações dos mandarins da academia, o que não é motivo algum de preocupação, mas que também se fez sentir nas obras dos pensadores da esquerda, isto sim motivo de inquietude. Tanto era assim, e tanto mudou em tão pouco tempo, que ao terminar a edição do meu livro “América Latina na Geopolítica do Imperialismo”, em meados de 2012, e proceder à última revisão do texto antes de enviá-lo para impressão, pensei ser necessário introduzir um largo parágrafo, que reproduzirei parcialmente a seguir, para responder aos muitos amigos e camaradas que, sabedores da problemática que investigava, me fizeram conhecer sua surpresa, e em alguns casos desacordos, por dirigir minha atenção a um tema, a geopolítica, associada às colocações da direita mais reacionária e racista. Daí que senti a necessidade de dizer o seguinte, no início do livro:
“Umas palavras, precisamente, sobre a problemática geopolítica. Trata-se de uma questão que em geral a esquerda demorou mais do que o conveniente em estudar, por uma série de razões que não podemos senão apenas enunciar aqui: concentração no exame de temas ‘nacionais’; visão economicista do sistema internacional e do imperialismo; menosprezo da geopolítica pela gênese reacionária deste pensamento e pela utilização que dela fizeram as ditaduras militares latino-americanas dos anos 70 e 80 do século passado.
A generalização do conceito e as teorias da geopolítica se encontram na obra de um geógrafo e general alemão, Karl Ernst Haushofer, quem propôs uma visão fortemente determinista das relações entre os diferentes Estados para assegurar o que, em um conceito de sua autoria, qualificou como ‘espaço vital’ (Lebensraum). O desprestígio dessa teorização se relaciona com o fato de que foi esse conceito de Lebensraum o empregado por Hitler para justificar o expansionismo alemão, que culminou com a tragédia da Segunda Guerra Mundial. Hauschofer teve como fonte de inspiração a obra de um geógrafo e político britânico, Halfor John Mackinder, que em 1904 havia escrito um muito influente artigo sobre ‘o pivô geográfico da história’” (1).
Em todo caso, o nascimento dessa perspectiva teve lugar em um momento histórico marcado pelo predomínio das concepções colonialistas, imperialistas e racistas, de finais do século 19 e começo do século 20. Se hoje reaparece, completamente ressignificada no pensamento contestador, é porque traz uma perspectiva imprescindível para elaborar uma visão crítica do capitalismo em uma fase como a atual, marcada pelo caráter já global desse modo de produção, sua febril depredação do meio ambiente e as práticas selvagens de despossessão territorial, padecidas pelos povos nas últimas décadas. Não deveria surpreender-nos, então, que dois dos principais pensadores do nosso tempo sejam geógrafos marxistas: David Harvey e Milton Santos.
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