ARGENTINA: MILITÂNCIA QUE SONHA, DEBATE E CONSTRÓI



Os jovens engrossam a militância kirchnerista (Foto: Página/12)
Quando os povos não se calam nem se submetem à injustiça, quando o protagonismo social se multiplica e as ruas se enchem de paixões, eles se inquietam e conspiram para reverter o processo. Porque a viabilidade de seus programas econômicos necessita duma sociedade paralisada e sem ânimo para seguir adiante, necessita de encontros partidários vazios, parlamentos sem debate, praças sem bandeiras. Perseguiram, torturaram, assassinaram e desapareceram para aniquilar os que sonham e para injetar o medo de sonhar.

(Este blog publicou uma primeira matéria sobre este mesmo evento no último dia 17, ambas traduzidas do Página/12. O objetivo é mostrar um dado político relevante: ao contrário dos governos “progressistas” do PT/Lula/Dilma, os governos “progressistas” de Néstor/Cristina Kirchner têm o respaldo, o empurrão e a cobrança duma militância ativa, inclusive da juventude)

Por Martín Sabbatella (*) – no jornal argentino Página/12, edição de 29/04/2014

O encontro de milhares de militantes kirchneristas neste final de semana (27/abril) no Mercado Central (em Buenos Aires), para debater e seguir construindo futuro, demonstra que este projeto tem uma vitalidade e uma potência extraordinárias. Não há força no país com este entusiasmo e esta capacidade de mobilização e isso é consequência da decisão de Cristina de avançar sem pausa pelo caminho duma democracia cada vez mais ampla e mais profunda. Esta paixão militante é a melhor garantia para não retroceder aos tempos da antipolítica e do Estado gestionado por gerentes do poder econômico.

Recordar para não voltar

O século passado não terminou como a imensa maioria dos argentinos e argentinas havíamos querido. O terreno ganho em matéria de acesso igualitário a direitos políticos, econômicos, civis e sociais que soubemos conseguir foi bombardeado por minorias com muita renda e sem escrúpulos, que combinaram violência e corrupção para recuperar os privilégios perdidos. A profundidade das conquistas sociais, a consciência popular sobre seus próprios direitos e a resistência militante foram diques importantíssimos para evitar que o avanço reacionário fosse ainda mais devastador.

Esgotado o recurso de impor a ferro e fogo fraudulentos e ditadores, o establishment atraiu para o final do milênio o serviço de dois governos constitucionais – o de Menem e o de De la Rúa –, para se dar um banquete de acumulação obscena com receitas neoliberais. As 10 recomendações que em 1989 o economista John Williamson extraiu da cabeça e dos balanços contábeis dos poderes econômicos e políticos estadunidenses, para elaborar as linhas do chamado Consenso de Washington, foram aplicadas com empenho e audácia tanto em nosso país como em quase toda América Latina. A liberdade dos setores privilegiados (a que sempre os encantou: a liberdade de acumular sem limites nem regulações) significou a condenação das maiorias populares. O enriquecimento desses poucos correspondeu ao derrocamento duma sociedade que tardou a comprovar que a exuberância dos de cima não ia nunca se derramar, menos ainda a partir dos copos com champanhe com que festejavam a ruína do povo trabalhador.

A legitimidade das urnas não impediu que esses governos servis e corruptos manchassem as mãos de sangue para defender políticas injustas. A promoção da desigualdade, ao fim e ao cabo, sempre é assassina: tanto pela repressão violenta das demandas populares ou pelo planejamento deliberado da concentração da riqueza e da exclusão.

A pátria é o outro

Das ruínas deste país em chamas, abrindo passagem entre o ceticismo e o desespero, surgiu uma alternativa política, econômica, social e cultural; um projeto que fez próprias as lutas emancipatórias dos movimentos populares, que deixou de ser mera possibilidade e se erigiu num processo transformador, de ruptura, nacional, popular e profundamente democrático. Este projeto leva mais de 10 anos de vigência; uma década que se caracteriza tanto pela recomposição do tecido social, que estava destruído, como pela persistência das investidas daqueles que ontem se beneficiaram da privatização do crescimento e hoje sofrem pela ampliação dos direitos e pela equiparação das oportunidades.
Martín Sabbatella (Foto: Página/12)
O kirchnerismo, inaugurado por Néstor em 25 de maio de 2003, é o nome duma identidade que chegou para ficar, uma identidade fundante dum novo momento histórico no país. Um processo político, social, econômico e cultural, liderado por Cristina, que dialoga e se nutre com o melhor da história nacional e latino-americana; que recupera, atualiza e consagra conquistas sociais enterradas pelos que foram gerentes públicos do poder privado e que instaura novos direitos, pondo-se na vanguarda regional na geração duma sociedade mais integrada, solidária e democrática.

Surpreende pouco que os cúmplices e beneficiários da desigualdade e da marginalização denunciem este presente como uma etapa de conflito e crispação. Surpreende menos ainda que, depois do disfarce do consenso e do diálogo (que histericamente reclamam e rechaçam), queiram retornar aos tempos em que as decisões eram tomadas na sala de visitas dum executivo duma corporação ou no escritório dum organismo de crédito internacional no exterior.

Quando os povos não se calam nem se submetem à injustiça, quando o protagonismo social se multiplica e as ruas se enchem de paixões, eles se inquietam e conspiram para reverter o processo. Porque a viabilidade de seus programas econômicos necessita duma sociedade paralisada e sem ânimo para seguir adiante, necessita de encontros partidários vazios, parlamentos sem debate, praças sem bandeiras. Perseguiram, torturaram, assassinaram e desapareceram para aniquilar os que sonham e para injetar o medo de sonhar. Inclusive sequestraram e negaram a identidade a centenas de bebês diante da suspeita de que por suas finíssimas veias corresse a rebelião apaixonada de seus pais e suas mães. 

Necessitaram, depois, construir a ilusão primeiromundista, o pensamento único, a frivolidade impune, a fantasia da prosperidade individual. Tudo pela mão duma parafernália midiática que publicitou maravilhas dum paradigma econômico e social que conduziu à ruína milhões no nosso país e no mundo.

A desmemória é seu recurso para regressar, é a condição que necessitam para o retorno. E por isso eles também querem estabelecer que o que vive o país é algo passageiro. A direita quisera que o kirchnerismo não nascesse. Mas como nasceu, buscam enterrá-lo definitivamente; que haja sido, para eles, um mau passo da história, e para nós, algo positivo guardado na memória.

A militância debate e constrói futuro

Frente a isso se impõe não cruzar os braços e dar ao kirchnerismo sua verdadeira dimensão fundacional, para que este projeto marque os destinos e a defesa dos interesses populares pelos próximos longos anos. Isto é possível e necessário. Não só pelo que expressa e significa a identidade kirchnerista: soberania nacional, inclusão social, recuperação do Estado, crescimento do consumo popular, ampliação e consagração de conquistas sociais, integração regional, direitos humanos, desenvolvimento produtivo, redução do desemprego e da pobreza, etc, mas, também, porque se trata duma identidade que logrou resumir e fazer confluir as melhores tradições históricas do nosso país, dando continuidade neste século à potência plebeia dos grandes movimentos populares.

Kirchnerismo é o nome do campo nacional, popular e democrático do século 21. Os motivos pelos quais a gente se reconhece peronista se encontram no kirchnerismo. E as razões pelas quais alguém foi yrigoyenista (de Hipólito Yrigoyen, primeiro presidente argentino eleito por sufrágio universal masculino e secreto, teve dois mandatos: 1916-1922 e 1928-1930) no começo do século passado hoje também se expressam neste projeto; do mesmo modo que as causas que levam alguém a se identificar como de esquerda, em termos universais, também estão claramente expressas neste espaço. Não há nada mais peronista do que ser kirchnerista, porque o kirchnerismo é o peronismo do século 21. E não há nada mais de esquerda do que ser K, porque à esquerda do kirchnerismo e de Cristina está a parede. O impulso transformador de Néstor e Cristina logrou um novo sentido de pertencimento, uma causa comum que explica de onde viemos e o que queremos para nossa pátria e para nosso povo.

Frente aos renovados candidatos a gerenciar as necessidades dum punhado de interesses privados e executar a partir do Estado as mesmas receitas que quebraram o país, o kirchnerismo se alça como uma identidade que garante não somente não retroceder, mas sobretudo seguir avançando no aprofundamento e ampliação da democracia.

A tarefa militante é unir e organizar essa identidade que voltou a atrair milhares e milhares no conjunto do país, para ancorar territorial e socialmente o kirchnerismo e a liderança de Cristina em cada rincão da pátria.

Assumimos essa tarefa como um dever militante impostergável com uma Argentina que tem que seguir caminhando rumo ao horizonte que sonhamos e merecemos.

* Presidente da Afsca (Autoridade Federal dos Serviços de Comunicação Audiovisual, órgão encarregado de aplicar a famosa Ley de Medios argentina, Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual) – integrante do movimento social Novo Encontro (Unidos e Organizados).

Tradução: Jadson Oliveira

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