VERDADE E JUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA: O FERROLHO DA LEI DA AUTOANISTIA NO BRASIL

João Goulart (Jango) junto a militares brasileiros, antes do golpe de 1964 (Foto: Página/12)
“Cada país tem sua especificidade” - Nos 50 anos do golpe contra João Goulart, o popular Jango, completados neste 31 de março, um estudo comparativo: o CELS (argentino) estudou os distintos caminhos que seguiram os casos envolvendo torturadores das ditaduras na Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai. Página/12 dialogou com a coordenadora da área de investigação, Lorena Balardini.

Por Marcelo Justo, no jornal argentino Página/12, edição de 30/03/2014


Os 50 anos do golpe militar contra João Goulart, completados neste 31 de março, são um claro sinal de tudo que falta no caminho dos direitos humanos e da verdade no Brasil. Este caminho foi sinuoso na América Latina. O julgamento das Juntas Militares na Argentina nos anos 80, a aplicação da jurisdição universal por crimes contra os direitos humanos impulsionada pelo juiz Baltasar Garzón e a detenção de Augusto Pinochet nos anos 90, a revogação das leis de impunidade feita pelo kirchnerismo e os julgamentos no Chile foram avanços empanados pelos vai-e-vem do Uruguai ou o ferrolho da Lei da Autoanistia do Brasil (NT.: conhecida no Brasil como Lei da Anistia, feita pela ditadura em 1979 e, para vergonha dos brasileiros, endossada há quatro anos pelo Supremo Tribunal Federal/STF). O julgamento oral em decorrência do Plano Condor que se iniciou no ano passado na Argentina pode ajudar a destravar esta árdua marcha da Justiça pelo caminho da extradição de pessoas amparadas pela legislação dum país, mas puníveis pela de outro. O Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) da Argentina, um dos líderes da investigação regional na matéria, estudou os distintos caminhos que seguiram estes casos na Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai. Página/12 dialogou com a coordenadora da área de investigação do CELS, Lorena Balardini.


–Historicamente, como vocês avaliam a marcha das causas dos direitos humanos nestes países?


–Está claro que cada país tem sua especificidade, mas também o que se passa num país, negativo e positivo, tem efeitos nos outros. O efeito da jurisdição universal e a detenção de Pinochet, conhecida como o efeito Pinochet pelas pessoas que estudam como evoluiu todo isto na América Latina, tiveram um claro impacto para os casos nos distintos países. Na Argentina, poucos dias depois da detenção de Pinochet, acontece a detenção de Videla e Massera pelo roubo de bebês, um dos delitos que podia ser perseguido penalmente por ficar fora do alcance das leis de Ponto Final e Obediência Devida, e no Chile começa a apresentação de querelas massivas. Outro fenômeno regional indiscutível é a importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que dá argumentos às Cortes Supremas dos diferentes países para que não se possa anistiar crimes de lesa humanidade. A sentença pelo caso Barrios Altos foi chave para a possibilidade dum julgamento de Alberto Fujimori no Peru e para a inconstitucionalidade das leis de anistia na Argentina.


–No informe de 2013, o CELS reconhecia problemas comuns em todos esses países na consecução da justiça. Mas alguns fazem parte das deficiências dos sistemas de justiça em geral e outros são mais específicos a respeito dos direitos humanos.


–Nós encontramos demoras na administração da justiça por falta de recursos, problemas em torno da tomada de testemunhos e quanto aos testemunhas, como por exemplo no Chile, onde só recentemente os sobreviventes foram considerados como vítimas, ou no Peru, onde existe uma enorme distância cultural entre as vítimas e os operadores judiciais, e não se toma o testemunho das vítimas e familiares como válido num julgamento por sua suposta parcialidade. Outro problema é a escassa porcentagem de sentenciados em relação aos imputados, algo muito claro no Peru e na Argentina. Está também a relutância na aplicação do direito internacional de direitos humanos em tribunais locais. Isto é particularmente preocupante no Brasil, Chile e Uruguai, como se viu com uma recente decisão da Corte Suprema de Justiça do Uruguai, na qual se declara inconstitucional a lei 18.831, que anulou a Lei da Caducidade e 2012. Por último, estão as discussões sobre a anulação das anistias que são matéria corrente no Brasil e no Chile, e agora novamente no Uruguai.


–No Brasil precisamente a primeira trava foi a Lei da Autoanistia dos próprios militares, ratificada há quatro anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O governo de Dilma Rousseff instaurou a Comissão Nacional da Verdade em 2012. O testemunho do coronel reformado Paulo Malhães nesta semana, no qual ele reconheceu torturas e assassinatos, marca os limites deste tipo de ziguezagues. Como vocês avaliam a situação no Brasil?


–Dos países que analisamos no Cone Sul, no Brasil é onde menos se avançou. Isto tem a ver com a Lei da Anistia, que é muito diferente das leis do resto dos países do Cone Sul. A vigência desta anistia e a relutância a levar em conta as recomendações do Sistema Interamericano levaram a não se poder  avançar em causas penais. No ano passado, o novo procurador (geral da República, Rodrigo Janot) se pronunciou a favor de desmantelar a anistia e de julgar estes crimes. Havia muitas expectativas pelas mudanças na composição da Corte Suprema (STF) para que esta iniciativa prosperasse, mas são avanços muito graduais. Temos que ver o impacto que terão tanto a Comissão da Verdade nacional e as estaduais que se formaram. Creio que a informação que está saindo está rompendo uma ideia muito forte instalada no Brasil de que aquilo foi uma “ditabranda” em comparação com o resto do Cone Sul por não ter levado adiante uma política sistemática de desaparecimento. A informação que está começando a ser gerada contesta esta ideia.


–No ano passado começou na Argentina um julgamento pelo Plano Condor. Que efeito teria uma condenação na Argentina para os militares ou civis implicados de outros países?


– Há que se ter em conta que, ainda que os réus que estão sendo julgados sejam argentinos e um uruguaio, as vítimas são de todo o Cone Sul. É claro que o julgamento está gerando impacto no restante dos países. Sem dúvida, é uma oportunidade para que fique plasmado numa sentença que analise e distribua responsabilidade penal em relação à coordenação da repressão entre distintos países. Se fala de coordenação em geral, mas ainda não está estudado como se realizou esta coordenação, o que implicou e que impacto teve. Este julgamento é também uma oportunidade para a produção de informação, o intercâmbio entre os países e a possibilidade de cooperar no envio de dados.


–Poderia terminar provocando processos contra militares ou civis de outros países?


–Temos que analisar as possibilidades de extradição que há em cada país. Neste julgamento há um imputado que é uruguaio, Manuel Cordero, que foi extraditado. O resto dos uruguaios implicados na causa Condor foram julgados e condenados em seu próprio país. A consequência direta disto é que poderiam ser extraditados à Argentina uma vez que terminaram de cumprir sua condenação no seu país. Há antecedentes, como o caso de Enrique Arancibia Clavel, o ex-agente da DINA chilena condenado pelo assassinato do general chileno Prats e sua esposa em Buenos Aires e que foi extraditado à Argentina, onde cumpriu uma sentença de 11 anos.

Tradução: Jadson Oliveira

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