ATILIO BORON: RAIVA EMANCIPADORA



(Foto: AVN/Agência Venezuelana de Notícias)
O império se monta sobre esta retrógrada ambição para tentar fazer na Venezuela o mesmo que fez no Iraque, na Líbia, no Afeganistão e agora pretende fazer com a Síria e a Ucrânia. Em todos os casos, em nome da democracia, dos direitos humanos e da liberdade, proclamas belíssimos mas que, na boca dos seus maiores transgressores, se convertem numa porção venenosa que os povos da Nossa América não parecem dispostos a engolir.

Por Atilio A. Boron, cientista político e sociólogo argentino – do jornal Página/12, edição de hoje, 5/março, no primeiro aniversário da morte de Hugo Chávez

A direita, articulada como nunca antes à escala mundial por obra e graça do fenomenal poderio midiático estadunidense, confiava em que com a morte do líder bolivariano se acabaria o chavismo. Na sua pequenez intelectual se consolava dizendo que “morto o cachorro se acabou a raiva”. Porém a história foi até mesquinha com seus anseios. A “raiva” dos povos é consequência da iniquidade, desigualdade e opressão que incessantemente segrega o capitalismo. E aqui se amalgamou com uma bicentenária tradição político-intelectual emancipadora personificada, entre muitas outras, nas figuras gigantescas de Bolívar e Martí. Desse feliz encontro entre a “raiva” e essa tradição política brotam os ventos que percorrem nossa geografia desde começos do século, impulsionados por essa verdadeira força desatada da natureza que foi Hugo Chávez.

Ventos que ainda que amainaram sua intensidade, continuam soprando. Nicolás Maduro se impôs nas eleições presidenciais de 14 de abril de 2013 por 1,5% do voto popular, e apesar disso Barack Obama persiste em desconhecer sua vitória. Seria o caso de lhe lembrar que nas presidenciais de seu próprio país em 1960, John F. Kennedy ganhou por uma diferença de 0,1%: 49,7 a 49,6 de Richard Nixon. E que nas de 2000, George W. Bush, com 47,9%, perdeu para Al Gore, que obteve 48,4%. Grande decepção na direita venezuelana após a inesperada derrota de abril. Encorajada pelo silêncio da Casa Branca, desconheceu o resultado, denunciou uma suposta fraude e, pela boca de Capriles, lançou um novo intento sedicioso (antes: o golpe de abril de 2002, em seguida o blecaute petroleiro) que produziu uma dezena de vítimas fatais e enormes prejuízos materiais.

Diante da inconsistência das denúncias de fraude, depois de rigorosas auditorias que confirmaram a lisura das eleições, Obama e seus aliados abriram uma nova frente de luta: desabastecimentos programados e estocagem de produtos de primeira necessidade, corrida contra o bolívar (moeda venezuelana) e desenfreada especulação dos preços foram as três frentes da sabotagem econômica, como o recomenda Eugene Sharp em seus manuais. Dando mostras duma notável incapacidade para ler a conjuntura, fizeram das eleições municipais de 8 de dezembro um referendo nacional. “Se o chavismo perde – diziam –, Maduro deve renunciar.” Não haveria então razões para esperar até 2016 para convocar um referendo revogatório. Longe de perder, o chavismo bateu com uma diferença de 900.000 votos o conglomerado da direita, quase 10% dos votos.

Isto, unido à consolidação de um dos principais sonhos de Chávez, a Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos), que realizou sua Segunda Cúpula nada menos que em Cuba, fez com que a direita abandonasse qualquer escrúpulo e abraçasse de vez a via da sedição, mal dissimulada por trás da desculpa do direito da oposição a se manifestar pacificamente. Na realidade, não é senão uma artimanha para ocultar o verdadeiro projeto: derrocar Maduro, como o explicitara o líder dos sediciosos, Leopoldo López Mendoza, seguindo a cartilha dos “democratas” sublevados contra Khadafi em Benghazi e dos neonazistas por estes dias na Ucrânia. Tocará ao governo de Maduro traçar uma fina linha para diferenciar a oposição que respeita as regras do jogo democrático da que aposta na insurreição e na sedição. Diálogos de paz com a primeira, mas – como ensina a jurisprudência estadunidense – todo o rigor da lei penal para os segundos. Do contrário se estaria alentando a subversão.

A um ano de sua partida, a herança de Chávez aparece com uma invejável vitalidade: o chavismo continua sendo invencível nas urnas e os processos de unidade e integração promovidos pelo grande patriota latino-americano seguem seu curso. Daí a intensificação da contra-ofensiva reacionária, que concebe a luta de classes como uma guerra sem trégua e sem limites morais ou jurídicos de nenhum tipo. O objetivo imediato, angustiante devido à deterioração da posição dos Estados Unidos no grande tabuleiro da geopolítica mundial, é apoderar-se da Venezuela, com a cumplicidade das classes e setores sociais que usufruíram do despojo da renda petroleira nas mãos das grandes transnacionais durante um século. Gente que jamais perdoará Chávez por ter devolvido essa riqueza ao povo venezuelano, e que por isso saem a destruir a ordem constitucional.

Esta é a natureza profunda do seu reclamo “democrático”: o petróleo para os Estados Unidos e o governo para que as velhas classes dominantes e seus linguarudos políticos organizem o saque. O império se monta sobre esta retrógrada ambição para tentar fazer na Venezuela o mesmo que fez no Iraque, na Líbia, no Afeganistão e agora pretende fazer com a Síria e a Ucrânia. Em todos os casos, em nome da democracia, dos direitos humanos e da liberdade, proclamas belíssimos mas que, na boca dos seus maiores transgressores, se convertem numa porção venenosa que os povos da Nossa América não parecem dispostos a engolir. A um ano de sua partida, Chávez ainda está demasiado vivo na consciência e no imaginário dos nossos povos.

Atilio A. Boron é diretor do PLED, Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini.

Tradução: Jadson Oliveira

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