"É que não se entende que o continente latino-americano mudou” |
“Nos países em que ainda está
vigente, o neoliberalismo não para de exibir rotundos fracassos, mas, no
entanto, inclusive nos países em que foi derrotado politicamente, não o foi nos
planos ideológico e cultural. Ali permanece atuante, vigoroso, incisivo”, diz
Dênis de Moraes.
“Sem dúvida que o que acontece na Venezuela diz
respeito à América Latina, e isso soube ler muito rapidamente o Brasil, o
entendeu Lula e depois o entendeu Dilma Rousseff. Aos Estados Unidos o que
interessa é controlar os recursos, o petróleo, o gás, e também a biodiversidade,
e aí a Amazônia é um elemento central. E a Venezuela é uma peça chave porque
implica petróleo, mas também é uma porta para a Amazônia e recursos vitais como
a água”, diz Juan Carlos Monedero.
Por Sandra Russo (jornalista argentina), no jornal Página/12, de 08/03/2014
Há uma
semana, numa entrevista que fiz no meu programa de rádio Deixa-me pensar, o
estudioso brasileiro Dênis de Moraes ampliava um conceito que, a rigor, eu havia
lido numa entrevista publicada neste diário, assinada por Natalia Aruguete. Era
que no que concerne à região, o neoliberalismo foi derrotado na década passada
no aspecto político, mas não no cultural. Moraes é autor, junto com Ignacio
Ramonet e Pascual Serrano, dum livro publicado pela editora Biblos, Meios (de
comunicação), poder e contrapoder, que compila ensaios dos três. Me interessou
essa distinção que o acadêmico brasileiro formulava porque nem sempre se tem
presente que, entre outras, a noção de política que persiste no imaginário
social insuflada pelos poderes econômicos é aquela que “manchava” nos anos 90. E,
por outro lado, é uma distinção que os próprios meios de comunicação hegemônicos
ocultam, para ocultar a incidência de sua própria hegemonia cultural. “Nos
países em que ainda está vigente, o neoliberalismo não para de exibir rotundos
fracassos, mas, no entanto, inclusive nos países em que foi derrotado politicamente,
não o foi nos planos ideológico e cultural. Ali permanece atuante, vigoroso,
incisivo”, diz Moraes. Desta ideia se depreende que a política em si mesma – a
política que se autodetermina, a que tem representação popular – é na prática e
em mais de um sentido um contrapoder que, no cultural, não conseguiu derrotar o
conjunto hegemônico de ideias que, esparramadas no sentido comum por enormes
dispositivos de difusão, se fundem nas subjetividades de milhões de pessoas.
Os três
autores desse livro pertencem a uma corrente de intelectuais e acadêmicos latino-americanos
e europeus que veem tanto a crise global, como a europeia e a que começa a
cercar a América Latina num sentido muito distinto do que flui sem parar a
partir dos meios hegemônicos, e esses ensaios, precisamente, permitem entender
por que há discursos e ideias que continuam sendo varridos para debaixo do
tapete midiático. Outro nome forte dessa corrente de pensamento é o espanhol
Juan Carlos Monedero, professor de Ciência Política na Universidade
Complutense. Foi assessor do governo venezuelano de 2005 até 2010, mas nos
últimos tempos Monedero está se ocupando da crise espanhola, um sintoma
particular da crise europeia e global. Seu último livro, apresentado em fevereiro,
se chama Curso urgente de política para gente decente. De que se trata, ele o
explica: “Nos estão dizendo que não busquemos alternativas, porque as
alternativas vão ser piores. Nos estão dizendo que não devemos tocar em nada,
porque vamos estropiar. Nos estão dizendo que não cavemos para buscar outro
tipo de soluções, porque vamos romper as que eles nos dão. Tudo isso constrói um
fetiche que nos deixa sem vontade. Necessitamos dum espelho que nos ilumine, ângulos
aos quais não estamos acostumados. A única possibilidade de superar este
inferno, esta incerteza, é nos atrever a voltar a tomar as rédeas das metas
coletivas. E isso se chama política”.
Monedero
aí fala a leitores espanhóis, mas o que diz se pode ler também deste lado do
mar, no que se refere à acepção da
política. No primeiro aniversário da morte do presidente Hugo Chávez, nesta
semana, numa entrevista realizada também para o Deixa-me pensar, Monedero
define Chávez como o homem que legou a esta região “aprender a se respeitar, a se
autogovernar, e a perder o medo de ter sido considerada pelos Estados Unidos
como seu quintal. O presidente Chávez ensinou a América Latina a tratar o
presidente dos Estados Unidos por você. Foi recuperar algo perdido há 500 anos”.
Sobre a
crise que castiga a Venezuela nestas semanas, diz que ainda que haja demandas
estruturais e derivadas do próprio modelo chavista que é necessário escutar, não
resta dúvida de que essas demandas estão sendo usadas pelos Estados Unidos para
voltar a se apossar da região porque ainda não admitem que ela não seja sua. O
que acontece na Venezuela “é um sinal claro de que o que se pôs em marcha com
Chávez foi um sinal muito poderoso, porque continua tendo efeitos, e que se
concentre tanto ódio e tantos esforços para derrocar o governo constitucional
indica que a Venezuela continua sendo um farol que ilumina o resto da região. E
por isso essa concentração de esforços nessa suposição, a qual, por outro lado,
é falsa, essa crença de que se cai a Venezuela em seguida cairão pelo efeito
dominó outros governos latino-americanos. É que não se entende que o continente
latino-americano mudou”.
Monedero
afirma que a desestabilização colocada em marcha na Venezuela tem como pano de
fundo o interesse norte-americano nos recursos naturais e a posição geopolítica
da qual alguns governos populares ou populistas da região privaram os Estados
Unidos. “Sem dúvida que o que acontece na Venezuela diz respeito à região, e isso
soube ler muito rapidamente o Brasil, o entendeu Lula e depois o entendeu Dilma
Rousseff. Aos Estados Unidos o que interessa é controlar os recursos, o
petróleo, o gás, e também a biodiversidade, e aí a Amazônia é um elemento
central. E a Venezuela é uma peça chave porque implica petróleo, mas também é uma
porta para a Amazônia e recursos vitais como a água. Desde anos se sabe que querem
essa porta, é uma peça de sua própria geopolítica. Hugo Chávez foi quem freou
esses planos que já estavam muito bem desenhados. Se se olham textos como o de
Zbigniew Brzezinki, o grande assessor da política exterior norte-americana, em
seu livro El gran tablero mundial (O grande tabuleiro mundial), ele nem sequer
considerava a América Latina como algo exterior aos Estados Unidos em matéria
geopolítica. Viam a América Latina como incorporada aos interesses norte-americanos.”
Tradução:
Jadson Oliveira
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