COLÔMBIA: PRIMEIRO BALANÇO DOS DIÁLOGOS DA PAZ



Membros da delegação das FARC nas conversações de paz em Havana: Jesus Santrich, Pablo Catatumbo e Ivan Márquez, chefe da delegação (Foto: Página;12)
Só o fato de conceder a palavra às FARC e permitir que suas vozes ressoem claramente na Colômbia destruiu, em poucas semanas, os estereótipos que as haviam criminalizado e abriu consideravelmente a agenda política.

Por Atilio A. Boron (*), sociólogo argentino – reproduzido do jornal Página/12, edição de 16/02/2014

De Havana (Cuba) - Prontos para completar os dois anos, os Diálogos da Paz levados a cabo em Havana entre as FARC e o governo colombiano  contabilizam algumas conquistas importantes. A primeira: a ruptura da longa invisibilidade do conflito armado na Colômbia, negado por uma enganosa retórica oficial que satanizava os insurgentes como “narcoguerrilheiros” ou “narcoterroristas” e que concebia a guerrilha mais antiga do planeta como se fosse uma atividade meramente delituosa, ocultando suas raízes estruturais e sua natureza e objetivos sócio-políticos. Não é um dado menor que quem propalava estas mentiras, Uribe e seus corifeus, são gente que segundo a DEA e o FBI têm provadas vinculações com o narcotráfico. Com um total de 80 parlamentares condenados ou processados por suas vinculações com os narcos, a direita colombiana ostenta o Record Guinness no campeonato mundial da narcopolítica. Os Diálogos não só contribuíram para acabar com essas calúnias, mas também que a cobertura midiática das conversações fez possível que o povo colombiano pudesse escutar as propostas das FARC e romper o cerco informativo que as mantinha no isolamento e que os meios de comunicação – quase todos controlados pela direita – denunciavam como sinistras organizações criminosas. Já não mais: nas periódicas aparições após cada ciclo de conversações com os representantes do presidente Santos, os negociadores da guerrilha aparecem diante da opinião pública colombiana como pessoas razoáveis e sempre portadoras de concretas iniciativas patrióticas.

A segunda, é que os representantes das FARC desmancharam as acusações sobre o suposto vínculo entre a guerrilha e o narcotráfico, fazendo pública uma iniciativa que seu então líder, o comandante Manuel Marulanda Vélez, apresentara publicamente no ano 2000 para acabar com o cultivo de coca na Colômbia. O plano propunha a substituição da coca por outros cultivos de corte tradicional. Mas a materialização deste projeto dependia da ativa participação dum governo que o adotasse, coisa que Bogotá não o fez. Sua política, a proposta de Washington, foi queimar as plantações de coca sem oferecer nada em troca aos camponeses. O resultado: a disseminação desse cultivo por quase todo o país. Nas considerações de Marulanda, o custo desta reconversão agrária, que erradicaria realmente a coca, devia ser financiado conjuntamente por organismos internacionais de crédito, por um programa especial da ONU e, obviamente, pelo governo colombiano. Esta iniciativa, que refuta inapelavelmente a conjunção de interesses entre os narcos e as FARC, porque efetivamente acaba com o cultivo da coca, havia circulado profusamente na Colômbia. No entanto, encontrou ouvidos surdos nos gabinetes oficiais.

Terceira e última: os representantes das FARC também promoveram diversas iniciativas para melhorar a pobre qualidade da democracia colombiana. Uma delas serviria para remover os pérfidos argumentos que impedem um dos personagens mais populares da Colômbia, a ex-senadora Piedad Córdoba, de desempenhar qualquer posto público por um período de 18 anos. A causa deste disparate: os incansáveis esforços de Piedad para pôr um fim no conflito armado.

Outra iniciativa política: as FARC propõem a constituição duma espécie de comissão histórica da memória e da verdade que deveria ser integrada por inatacáveis personalidades internacionais e colombianas. A comissão teria por missão estabelecer as responsabilidades que cabem aos diversos atores pelo prolongado banho de sangue a que foi submetido esse país no último meio século, e que ainda continua. Como muito bem aprendemos na Argentina, a paz não pode ser construída sobre o esquecimento e a impunidade do terrorismo de Estado. Aqueles que mataram a granel jovens recrutados supostamente pelo exército para em seguida ser assassinados e apresentados como guerrilheiros abatidos em combate – os “falsos positivos”– não podem continuar desfrutando dos benefícios da liberdade. O mesmo vale para aqueles que utilizaram fossas comuns para fazer desaparecer centenas de pessoas aniquiladas pelas forças oficiais e pela corja que, nos anos 80, assassinaram uns cinco mil militantes da União Patriótica (incluindo dois candidatos a presidente da República e inúmeros candidatos a prefeito e ao Congresso), quando a guerrilha deixou suas armas e ingressou na competição política “democrática”, à qual havia sido convidada pelo governo de então. Sabemos, por experiência, que a impunidade é um tema tabu para os criminosos de ontem e de hoje, e para seus protetores nas alturas do Estado. Porém, nenhum governo pode encarar seriamente um Diálogo da Paz condenando este tema ao esquecimento.

Conclusão: a abertura das conversações de Havana colocou o governo de Santos na defensiva. Só o fato de conceder a palavra às FARC e permitir que suas vozes ressoem claramente na Colômbia destruiu, em poucas semanas, os estereótipos que as haviam criminalizado e abriu consideravelmente a agenda política. Falta ainda muito caminho por percorrer, mas os diálogos de Havana devem contar com a solidariedade dos povos e dos governos democráticos da Nossa América para pôr fim a mais de meio século de lutas fratricidas na querida terra colombiana.

* Diretor do PLED. Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini.

Tradução: Jadson Oliveira

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