(Foto: gráfico animado de Pedro Miguel Cruz sobre corrupção, do site http://apodrecetuga.blogspot.com.br)
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Desde
menino pobre do interior baiano, ele já apelava na luta pela sobrevivência para
pequenos expedientes que poderiam ser classificados de corruptos, ou pelo menos
demonstrativos duma certa tendência à corrupção, uma instituição bem entranhada
no caráter brasileiro – quiçá no caráter humano. Ele contava, por exemplo, que
de quando em quando ganhava umas moedas de outros meninos mais endinheirados em
troca de levantar a saia de determinadas garotas (já na trilha da tradição
brasileira, ele seria o corrupto, o “criminoso”, enquanto os corruptores apenas
perdoáveis rapazes da elite local, traquinagens da juventude).
Mais
crescidinho veio para a capital, a perseguir seu ideal de “enricar”, fosse como
fosse, não importa. Estudar? Só o mínimo possível, olhe se ele ia perder tempo
com escola. Uma vez, já adulto, ele me disse: “Meu amigo, você é gente boa,
gosto muito de você, mas vou ser sincero: você é um besta, esse negócio de ler
e estudar, ficar preocupado com essa coisa que você chama de injustiças
sociais, isso é pura perda de tempo, meu caso é outro, meu caso é enricar” (ele
parecia amar esta palavra, “enricar”, quando lembro esta palavra, lembro dele,
quando lembro dele, lembro desta palavra).
Ele
iria trabalhar, de preferência num lugar onde pudesse fazer relações com gente
que mexesse com dinheiro, onde surgissem oportunidades de golpes, tudo dependia
de oportunidades e também da sorte, nunca se deve desprezar a sorte, ela está
sempre por aí, com fé em Deus. De fato. Tanto cavou, tanto cativou gente bem
situada nos escalões sociais que conseguiu um emprego de ofice-boy num banco.
Ali
começou a se sentir como peixe n’água. O rapaz realmente levava jeito, sabia se
virar, uma gorjeta ali, um pequeno suborno acolá, ia vivendo. Gostava de
recordar uma vez em que ele exagerou ao dissimular na hora de um daqueles
pequenos subornos: foi quando ele “quebrou o galho” pra um prefeito do
interior, cliente do banco. O prefeito, como de praxe, seria generoso: meteu a
mão no bolso e estendeu a grana pra Zelindo (era assim seu nome, lembrei
agora). Aí ele negaceou, fez cena, fez charme: o senhor sabe, o banco é muito
rigoroso nessas coisas, os funcionários estamos aqui pra servir aos clientes,
não podemos receber nenhum “agrado”. O homem pareceu não acreditar e, corrupto
e corruptor como era, insistiu. E nosso herói negaceando. Ficou aquele impasse,
até que o prefeito, mesmo surpreso, acreditou e foi levando a mão de volta ao
bolso. Epa! Zelindo deu um salto e agarrou a mão do homem ainda a tempo: “Bom,
desta vez eu vou aceitar”.
E se
foi entrosando no mundo bancário. Porém, não podia subir na carreira bancária
porque era semi-analfabeto, não podia, por exemplo, passar a escrevente ou a
escriturário. Mas o que podia ele fazia. Comprou um táxi à prestação, era
popular, bem relacionado com os colegas, ganhava bem mais que um simples
ofice-boy ou contínuo, como se chamava na época. Vamos que vamos, começou a
gastar mais do que ganhava e entrou na ciranda dos cheques sem fundo. Naquele
tempo não havia essa coisa de “dinheiro plástico”, caixa eletrônico, era de
papel, era cheque, que entrava na conta de noite, através da câmara de
compensação (quem era bancário nas décadas de 60 e 70 manja bem disso).
Sua
vida virou um inferno, passou a girar em função dos cheques sem fundo que ele
teria que cobrir na manhã seguinte. Era realmente uma agonia perene, renovada
todas as manhãs, de segunda a sexta-feira. E mantida nos finais de semana, na
expectativa de como cobrir os cheques “voadores” na manhã da segunda-feira. Uma
vez me confessou que não estava mais conseguindo “namorar” com sua mulher
(nesta altura já estava casado, sustentava sua família e mais sua velha mãe que
trouxe do interior). Ia começando o “namoro”, tudo bem, mas aí ele lembrava dos
cheques que teria de cobrir amanhã de manhã e aí era uma merda, a tesão sumia
na hora.
Num
momento de desespero ele me revelou um sonho seu que poderia salvá-lo
definitivamente. Aliás, frisou que era um sonho acalentado por toda a sua vida.
Seria sua sorte grande: era ele, num golpe de sorte espetacular, salvar o filho
do governador que iria ser atropelado por um carro. O governador iria lhe
agradecer e perguntar o que ele queria como recompensa por sua ação heróica.
Ele tinha o pedido na ponta da língua: “Senhor governador, quero ser ‘fiscal de
renda’, vou ficar eternamente agradecido”. Pronto, explicava, aí vou “enricar”,
posso ser corrupto profissional, com todo o respeito. (Naquele tempo era famoso
o cargo de “fiscal de renda” dentro do Fisco estadual e não havia essa coisa de
concurso público, o governador nomeava, estava nomeado).
Para
fechar a história do nosso Zelindo: com tanto cheque sem fundo acabou demitido
do banco, mas continuou a faina diária de taxista e foi relativamente bem
sucedido. Não “enricou”, mas sempre manteve boas relações com gente mais ou
menos endinheirada, corruptos ou não. Era um bom amigo. Morreu relativamente
jovem e deixou saudades.
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