RAMONET: FIDEL FALA SOBRE A TRADIÇÃO DOS MILITARES DE ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA



Ignacio Ramonet e Fidel Castro, em Havana, em 13 de dezembro último, data em que completava 19 anos do primeiro encontro de Fidel com Chávez (Foto: Alex Castro/La Jornada)
MAIS DUAS HORAS COM FIDEL (parte 2/final)

Fidel sobre o primeiro encontro com Chávez: “Me deixou impressionado... Por sua cultura, sua sagacidade, sua inteligência política, sua visão bolivariana, sua gentileza, seu humor... Ele tinha tudo!  Me dei conta que estava em frente a um gigante da talha dos melhores dirigentes da história da América Latina”.

“Me despedi com carinho dele e de Dalia. Particularmente feliz por ter constatado que Fidel continua tendo seu espetacular entusiasmo intelectual”.

Por Ignacio Ramonet, jornalista espanhol radicado na França, criador da edição em espanhol do Le Monde Diplomatique, autor do livro “Cem horas com Fidel” (editado inclusive no Brasil) e do recente “Hugo Chávez. Mi primera vida - conversaciones con el líder de la revolución bolivariana” (reproduzido do portal Carta Maior, de 02/01/2014, dividido aqui em duas partes; a primeira foi publicada em 03/01/2014 com o título “Fidel e as mentiras da imprensa: ‘Nosso problema é saber como difundimos a verdade”’; o título acima é deste blog) 

Falamos depois de nosso amigo comum Hugo Chávez. Senti que ainda estava sob a dor da terrível perda. Evocou o Comandante bolivariano quase com lágrimas nos olhos. Me disse que havia lido, « em dois dias », o livro « Hugo Chávez. Mi primera vida ». « Agora tens que escrever a segunda parte. Todos queremos ler. Deves isso a Hugo. », completou. Aí interveio Dalia (Soto Del Valle, mulher de Fidel) para comentar que esse dia [13 de dezembro], por insólita coincidência, fazia 19 anos do primeiro encontro dos dois Comandantes cubano e venezuelano. Houve um silêncio. Como se essa circunstância lhe conferisse naquele momento uma indefinível solenidade à nossa visita.

Meditando para si mesmo, Fidel se pôs então a lembrar daquele primeiro encontro com Chávez no dia 13 de dezembro de 1994. « Foi uma pura casualidade, relembrou. Soube que Eusebio Leal tinha convidado ele para dar uma conferência sobre Bolívar. E quis conhecê-lo. Fui esperá-lo ao pé do avião. Coisa que surpreendeu muita gente, incluindo o próprio Chávez. Mas eu estava impaciente por vê-lo. Nós passamos a noite conversando. » « Ele me contou, eu disse, que sentiu que você estava fazendo ele passar por um exame... » Fidel se larga a rir:

« É verdade! Queria saber tudo dele. E me deixou impressionado... Por sua cultura, sua sagacidade, sua inteligência política, sua visão bolivariana, sua gentileza, seu humor... Ele tinha tudo!  Me dei conta que estava em frente a um gigante da talha dos melhores dirigentes da história da América Latina. Sua morte é uma tragédia para nosso continente e uma profunda desdita pessoal para mim, que perdi o melhor amigo... »

« Você vislumbrou, naquela conversa, que Chávez seria o que foi, ou seja, o fundador da revolução bolivariana? » « Ele partia com uma desvantagem: era militar e havia se sublevado contra um presidente socialdemocrata que, na verdade, era um ultraliberal... Em um contexto latino-americano com tanto gorila militar no poder, muita gente de esquerda desconfiava de Chávez. Era normal.

Quando eu conversei com ele, há dezenove anos agora, entendi imediatamente que Chávez reivindicava a grande tradição dos militares de esquerda na América Latina. Começando por Lázaro Cárdenas [1895-1970], o general-presidente mexicano que fez a maior reforma agrária e nacionalizou o petróleo em 1938... »

Fidel fez um amplo desenvolvimento sobre os « militares de esquerda » na América Latina e insistiu sobre a importância, para o comandante bolivariano, do estudo do modelo constituído pelo general peruano Juan Velasco Alvarado. « Chávez o conheceu em 1974, em uma viagem que fez ao Peru sendo ainda cadete. Eu também me encontrei com Velasco uns anos antes, em dezembro de 1971, regressando de minha visita ao Chile da Unidade Popular e de Salvador Allende. Velasco fez reformas importantes, mas cometeu erros. Chávez analisou esses erros e soube evitá-los.  »

Entre as muitas qualidades do Comandante venezuelano, Fidel sublinhou uma em particular: « Soube formar toda uma geração de jovens dirigentes; a seu lado adquiriram uma sólida formação política, o que se revelou fundamental depois do falecimento de Chávez, para a continuidade da revolução bolivariana. Aí está, em particular, Nicolás Maduro com sua firmeza e sua lucidez que lhe permitiram ganhar brilhantemente as eleições de 8 de dezembro. Uma vitória capital que o afiança em sua liderança e dá estabilidade ao processo. Mas em torno de Maduro há outras pessoalidades de grande valor como Elías Jaua, Diosdado Cabello, Rafael Ramírez, Jorge Rodríguez... Todos eles formados, às vezes desde muito jovens, por Chávez. »

Nesse momento, se somou à reunião seu filho Alex Castro, fotógrafo, autor de vários livros excepcionais. Se pôs a tirar algumas imagens « para recordação » e se eclipsou depois discretamente.

Também falamos com Fidel do Irã e do acordo provisório alcançado em Genebra, no último dia 24 de novembro, um tema que o Comandante cubano conhece muito bem e que desenvolveu em detalhe para concluir dizendo: « O Irã tem direito a sua energia nuclear civil. » Para em seguida advertir do perigo nuclear que corre o mundo pela proliferação e pela existência de um excessivo número de bombas atômicas em mãos de várias potências que « têm o poder de destruir várias vezes nosso planeta ».

Preocupa-o, há muito tempo, a mudança climática e me falou do risco que representa a respeito o relançamento, em várias regiões do mundo, da exploração do carvão com suas nefastas consequências em termos de emissão de gases de efeito estufa: « Cada dia, me revelou, morrem umas cem pessoas em acidentes de minas de carvão. Uma hecatombe pior que no século XIX... »

Continua interessando-se por questões de agronomia e botânica. Me mostrou uns frascos cheios de sementes: « São de amoreira, me disse, uma árvore muito generosa da qual se pode tirar infinitos proveitos e cujas folhas servem de alimento para o bicho da seda... Estou esperando, dentro de um momento, um professor, especialista em amoreiras, para falar deste assunto. »

« Vejo que você não para de estudar. », lhe disse. « Os dirigentes políticos, me respondeu Fidel, quando estão ativos carecem de tempo. Nem sequer podem ler um livro. Uma tragédia. Mas eu, agora que já não estou na política ativa, me dou conta de que tampouco tenho tempo. Porque o interesse por um problema te leva a interessar-te por outros temas relacionados. E assim vais acumulando leituras, contatos e, de repente, te dás conta que te falta o tempo para saber um pouco mais de tantas coisas que gostaria de saber... »

As duas horas e meia passaram voando. Começava a cair a tarde sem crepúsculo em La Habana e o Comandante ainda tinha outros encontros previstos. Me despedi com carinho dele e de Dalia. Particularmente feliz por ter constatado que Fidel continua tendo seu espetacular entusiasmo intelectual.

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