ENTREVISTA COM ATILIO BORON
(parte 1)
“O programa Bolsa Família
equivale a apenas um mês do pagamento de juros da dívida pública brasileira”
“O problema é que o protesto
social sem um projeto político está condenado à derrota”
Por Diego Diehl, de Buenos Aires (Argentina) – reproduzida do sítio do
jornal Brasil de Fato, com o título “Nos
falta um Brasil com visão continental”, postada em 10/01/2014. (Vai aqui
dividida em quatro partes; o título acima é deste blog).
Poucos
cientistas sociais acumulam uma compreensão tão profunda sobre os processos
políticos em curso no continente latino-americano quanto Atilio Boron.
Professor de Teoria Política e Social na Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade de Buenos Aires (UBA), o argentino tem dedicado anos de
investigação ao papel que os países da região têm desempenhado no sistema
internacional.
Seu mais
recente livro descreve o lugar da América Latina na geopolítica do
imperialismo, cada vez mais crucial na estratégia de sobrevivência do
capitalismo. É onde
está metade da biodiversidade do planeta, incluindo 45% do volume de água doce.
Nesta
entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Boron atendeu à reportagem na
sede do Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini, onde fica seu
escritório na capital portenha. Destacou que o futuro da região depende da
liderança efetiva do Brasil.
“O país
precisa entender seu papel de liderança latino-americana, especialmente a
partir da União das Nações Sul-americanas (UNASUL). Se não fizer, pagará um
preço muito caro”, aponta. O sociólogo explica que o contexto mundial põe em
risco os recursos naturais brasileiros e menciona as 23 bases militares dos EUA
que cercam o país.
Boron
também analisou a dimensão dos protestos sociais ocorridos em junho passado no
Brasil. “O que houve tem mais a ver com as desigualdades econômicas e sociais,
que persistem muito grandes mesmo após quase 30 anos de democracia”.
Para o
entrevistado, não há dúvida da legitimidade das mobilizações, protagonizadas
pela juventude e movimentos populares. Porém, ele faz um alerta: “o protesto
social sem um projeto político está condenado à derrota”. A seguir, a
entrevista:
Brasil de
Fato – Há algum paralelo que possamos fazer entre as mobilizações de junho no
Brasil e os processos que ocorreram na chamada da “Primavera Árabe”, os
“Indignados” na Espanha, ou os “Occupy” nos EUA? Até que ponto essas
comparações são corretas considerando o contexto brasileiro e latino-americano?
Atilio
Boron – Em
primeiro lugar, me parece que há um clima de época no qual estas manifestações
populares contra governos capitalistas estão se difundindo por todo o mundo. Há
uma crise capitalista muito forte, e ela é sentida em determinados países de
forma mais intensa que em outros. Porém, me parece que os protestos no Brasil
têm mais a ver com os “Indignados” e os “Occupy”, já que, no caso da “Primavera
Árabe”, um elemento fundamental foi o súbito aumento do preço dos alimentos,
ademais de se tratar de países que viviam sob ditaduras. O que houve no Brasil
tem mais a ver com as desigualdades econômicas e sociais, que persistem muito
grandes mesmo após quase 30 anos de democracia. O fato é que o Brasil é um dos
países mais desiguais do mundo, e essa situação se agrava com o que a Ciência
Política chama de “políticas de prestígio”, a partir do impulso que o governo
brasileiro tem dado a megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.
Ademais,
há uma atitude muito ingênua por parte do governo brasileiro, de achar que
esses megaeventos são o passaporte para a condição de país desenvolvido, que
ignora, afinal de contas, outros exemplos históricos, como é o caso do México,
que já teve Copa do Mundo e Olimpíadas e atualmente passa por uma situação
desastrosa. Na verdade, essas políticas de “pão e circo” exacerbam as tensões
sociais, os conflitos e o ressentimento daqueles que passam necessidades e que,
ao mesmo tempo, veem o Estado destinando volumes gigantescos de recursos para
atividades que não vão gerar uma melhoria concreta em suas vidas. Pelo
contrário, hoje em dia, os preços no Brasil têm subido muito e parte disso já
em função do Mundial – que não faz grande diferença para os turistas que
estarão na Copa do Mundo –, mas faz para a população mais pobre.
Então,
você tem um padrão distributivo muito desigual, uma indiferença do governo em
relação a esse tema e um desequilíbrio orçamentário que apenas reforça esse
aspecto, já que o programa Bolsa Família equivale a apenas um mês do pagamento
de juros da dívida pública brasileira. Tudo isso acaba reforçando as tensões de
uma sociedade frustrada por um projeto político aparentemente reformista, mas
que não avança em temas como a reforma agrária, a carestia, o péssimo
transporte público. E quando há um aumento da remuneração do trabalhador de dois
para três salários mínimos, ele não deixa de ser pobre. Diante de tudo isso,
vendo um governo pródigo injetando dinheiro em obras faraônicas, em estádios de
futebol em vez de escolas e hospitais, creio que essa foi a faísca para a
explosão social que ocorreu.
Ademais,
esse cenário de fundo que propicia as mobilizações já existia há muito tempo,
mas foi de alguma forma contido pela direita brasileira, uma das mais
inteligentes do continente, que havia ficado muito assustada com os incidentes
argentinos de dezembro de 2001. Esse medo lhes levou a permitir a chegada de
Lula à presidência em 2002, e tenho para mim que se isso não tivesse
passado na Argentina, as elites brasileiras não permitiriam que Lula chegasse
ao governo. E creio que é isso que os setores mais lúcidos da elite chilena
estão fazendo neste momento, resgatando Bachelet para conter os protestos
sociais. Mas essa inteligência tem um limite, e esse limite foi expressado
pelas manifestações de junho no Brasil.
Portanto, esse não foi um movimento
fascista, mas um movimento popular, da juventude, de gente de baixo,
desorganizada, sem experiência política, que não sabia o que fazer, que tinha
medo de colocar projetos políticos e queria manter-se apenas como protesto
social. O problema é que o protesto social sem um projeto político está
condenado à derrota.
Foi,
portanto, uma erupção. Agora, as coisas se acalmaram, mas os problemas não
foram resolvidos, o que significa que muito provavelmente teremos um novo ciclo
de grandes mobilizações no período do Mundial, quando as pessoas deverão sentir
na própria pele os diversos problemas que vão passar. (Continua)
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