(Ilustração: slideshare.net) |
“Desde
logo todas e todos estamos atravessados por lógicas do capitalismo e da
modernidade, o que nos dificulta a visualização dum horizonte pós-capitalista”.
“...na
medida em que avança a redistribuição se vai criando uma classe média que já não
tem o empurrão dos setores subalternos, e que continua buscando ascender
socialmente, algo muito legítimo mas que deve ir acompanhado duma formação
política e ideológica...”
“Temos conteúdos suficientes para construir o socialismo comunitário do ‘Bem-Viver’, o Socialismo do Século 21 ou o Bem Comum da Humanidade proposto por François Houtart”.
Por Katu Arkonada (foto - pesquisador social basco,
militante internacionalista), no site Rebelión,
com o título “Reflexões a partir dum diálogo
com François Houtart - Tensões e transições nos processos de mudança”, de
11/11/2013 (o título acima é deste blog)
"O desafio fundamental para a Bolívia, a Venezuela
e o Equador é definir a transição sob um novo paradigma pós-capitalista"
François Houtart
Recentemente publicamos um diálogo com François Houtart em forma de entrevista [1]. Vou abordar neste breve espaço três debates que são apresentados ao longo do diálogo e que penso se entrelaçam e é necessário dissecar e continuar aprofundando sobre eles para seguir pensando nossos processos de mudança a partir da esquerda. Em primeiro lugar teríamos a situação desses processos e os limites que encontram em seu desenvolvimento, as propostas políticas que podem gerar um horizonte de mudança e transformação nesses processos, e as contradições que tem a esquerda na hora de gerar um discurso nitidamente anti-imperialista, anti-colonialista e anti-capitalista.
Limites dos processos
Parece evidente que os processos se encontram num ponto de inflexão. Neste momento histórico se concatenam acontecimentos que necessitam dum olhar pausado e reflexivo. A morte do Comandante Chávez parece ter tornado mais lento o ritmo político do continente e dos processos de integração regional. Integração que sofre ademais - nada é casual - a investida duma ferramenta chamada Aliança do Pacífico, desenhada para provocar rupturas e lentidão nos ritmos e intensidades dessa integração.
E neste momento histórico, nos encontramos com vários limites dos processos, tanto internos como externos.
A nível interno, um limite importante são os atuais modelos de desenvolvimento herdados dum Norte capitalista e depredador do Sul, de seus povos, pessoas e natureza. Temos modelos de desenvolvimento extrativista porque nunca nos deixaram construir outro modelo, o capitalismo não podia gerar a taxa de lucro e benefício se a correlação de forças mudava e o Sul recuperava sua dignidade e soberania. Não é casualidade a atual crise da social-democracia e dos Estados do bem-estar do Norte agora que o Sul põe em marcha processos de mudança e recupera o controle sobre seus recursos naturais. Diante disso, a social-democracia europeia, e uma latino-americana em construção, só nos propõem gerenciar o capitalismo duma maneira mais amável, colocar nele rosto humano. Mas isso nos deixa a tensão de não termos modelos alternativos nos quais nos fixar para construir um Estado e uma sociedade que vão mais além do que já conhecemos, um Estado que se insira numa sociedade pós-capitalista, que vá muito mais além dos atuais processos pós-neoliberais.
François Houtart, sociólogo e sacerdote belga (Foto: Internet) |
A este limite principal, se soma que os processos entram numa etapa de refluxo, onde na medida em que avança a redistribuição se vai criando uma classe média que já não tem o empurrão dos setores subalternos, e que continua buscando ascender socialmente, algo muito legítimo mas que deve ir acompanhado duma formação política e ideológica para que não se sintam tentados em abandonar o processo ou se deixar enganar por outras alternativas, ou melhor dito, gestores burocratas disfarçados de alternativa.
E ainda se não fossem poucos os limites internos, a partida se joga no campo dum sistema-mundo capitalista que vê com receio qualquer tentativa de mudar as regras do jogo. Basta observar a crise econômica sem precedentes que sofre a Venezuela e o desabastecimento de produtos básicos importados provocados pelas elites políticas e econômicas.
O ‘Bem-Viver’ (Vivir Bien ou Buen Vivir) como horizonte sustentado nos pilares do anti-imperialismo, anti-colonialismo e anti-capitalismo
É neste cenário de construção de alternativas que devemos desenvolver esse conceito em construção e em disputa chamado ‘Bem-Viver’. Não importa tanto o nome, mas sim os conteúdos, e está claro que esse equilíbrio entre o direito ao desenvolvimento e os direitos da Mãe Terra, o impulso ao comunitário, especialmente no interior do modelo econômico, a descolonização e a despatriarcalização, a interculturalidade e o controle social são elementos fundamentais.
Mas este projeto não estaria totalmente completo se nos esquecemos de bases que compuseram o ideário de projetos socialistas no passado e que continuam mais vigentes do que nunca. Talvez nossas social-democracias tenham se esquecido dessas bases que não se encaixam tanto nos esquemas da democracia liberal e dos discursos ocidentais dos direitos humanos, mas o anti-imperialismo, anti-colonialismo e anti-capitalismo como algo mais que um discurso retórico, e sim como uma posição política a defender com esperança, são as únicas bases sobre as quais podemos construir um projeto político nacional-popular e internacionalista, que olhe para a América Latina e para o Sul em geral.
Porque o imperialismo continua agredindo a América Latina com golpes de Estado, bases militares, espionagem, tratados comerciais, e sequestros aéreos de presidentes; porque o colonialismo do século 21 segue mantendo prisões desumanas no território cubano, ocupando Porto Rico, as Malvinas ou negando à Bolívia o acesso soberano ao mar; e porque o capitalismo só traz o despojo de nossas sociedades, a miséria e a competitividade sob as leis desse eufemismo chamado mercado, atrás do qual se escondem as elites econômicas nacionais e transnacionais.
Temos conteúdos suficientes para construir o socialismo comunitário do ‘Bem-Viver’, o Socialismo do Século 21 ou o Bem Comum da Humanidade proposto por François Houtart. Vamos perdendo alguns arquitetos desses nossos processos, mas deixam o caminho sinalizado, apesar das sombras, tensões e contradições que vivemos e sofremos a cada dia. Provavelmente só nos falte audácia, mais audácia como reclamava Samir Amin, para a construção coletiva desses processos sobre bases sólidas. Pode parecer que vamos devagar, mas é porque vamos muito longe.
Nota:
[1] http://www.rebelion.org/noticia.php?id=176401
Rebelión publicou este artigo com a permissão do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando sua liberdade de publicá-lo em
outras fontes.
A entrevista com François Houtart a que se refere o autor do artigo foi publicada aqui no Evidentemente, dividida em duas partes, a segunda em espanhol. Quem quiser ler ou reler, clique aqui e aqui.
Tradução: Jadson Oliveira
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