SURFANDO NAS ONDAS DO TEMPO E DA PAIXÃO (devaneios)



Vale do Anhangabaú, São Paulo, em foto dos anos 70: foi dali, subindo as escadas rolantes da Galeria Preste Maia, há mais de 40 anos... (Foto: Blog do Flavio Gomes)
...vá lá que o escudeiro filósofo Sancho Pança tenha dito que “enquanto não se morre, tudo é vida”, mas até o meu louco favorito Dom Quixote morreu, perdeu a louca certeza de reencarnar os cavaleiros andantes...

Me perdoa, amor, soube que você não foi feliz, ou melhor dizendo, tem sido mais infeliz do que feliz, mas eu tinha outros sonhos, queria viver a grande utopia da minha geração, tinha outras prioridades, como busquei me explicar na época, não tinha tempo de viver um grande amor, também não podia adivinhar que talvez seria o maior amor da minha vida, era cedo demais, a juventude palpitante, os caminhos se abriam à minha frente, a esperança, uma grande esperança, como eu poderia supor tantas promessas, tantas auroras, tantos entardeceres? com você, sem você... como vou saber todas as diferenças? depois de tantos anos, tantas águas, surfando nas ondas do tempo e da paixão, a primeira vez que te vi deixando o Anhangabaú, coalhado de ônibus, era o grande terminal de transporte coletiva da cidade imensa, lembra? numa manhã paulistana típica de muita chuva e muito frio, subindo as escadas rolantes da Galeria Prestes Maia naquele tempo naquela hora entupidas de gente, aquele aperto de capas e guarda-chuvas/sombrinhas eu como que enlouqueci e meti a mão em você e alisei suas coxas grossas, depois fui ver que elas eram brancas, bem brancas, “branquinhas como leite do curral da Cana-Brava”, eu dizia nos momentos de intimidade e fervor, e você não reclamou, não me deu um tapa na cara como seria o convencional nos filmes e novelas, você gostou e me sorriu, eu fiquei pirado total, “que menina louca!, mais louca do que eu”, admirei e desde aquele dia então foi tudo enlevo e piração, e você me chamou de “meu Deus grego!”, eu confesso que não tinha ideia de como seria um Deus grego, mas pensei “só pode ser bem bonito”, depois andei lendo a mitologia grega pra entender, mas achei um troço muito chato embora gozasse de muito charme nos meios intelectuais daqueles tempos, “e depois, foi tanto querer bem” como dizia a canção cantada por aquele colega lá no extinto Palace Lila, já em Salvador na Bahia, no número 15 da então Rua Joaquim Nabuco, que não existem mais nem aquele velho prédio número 15 nem a rua que voltou a ser Rua Nova de São Bento, “tanto querer bem, alguém dizendo a alguém, meu bem...” seja na gruta lá na bela Chapada Diamantina, você com aquela calça azul bem claro com uns desenhos em delicado alto-relevo ou no terraço dum bar no boêmio bairro do Rio Vermelho, você vestida mais apropriadamente com uma saia leve e curta, são lembranças, retratos de momentos especados na memória, são mais de 40 anos, agora soube que você não foi feliz, será? não teve outros amores para apreciar suas coxas grossas e “branquinhas como leite”?, me perdoa, amor, e eu me pergunto se sou feliz, se tenho sido, acho que sim... tive outros amores, alimentei minha utopia, vivi meus sonhos, tenho vivido, aliás, embora no declinar do viver apareçam dúvidas, vá lá que o escudeiro filósofo Sancho Pança tenha dito que “enquanto não se morre, tudo é vida”, mas até o meu louco favorito Dom Quixote morreu, perdeu a louca certeza de reencarnar os cavaleiros andantes, consertador de tortos, desfazedor de todos os agravos do mundo e amparo das órfãs e viúvas, morreu porque perdeu o raro dom da estranhíssima loucura, murchou de vez porque deixou de acreditar na inacreditável vocação, tenho certeza de que foi por isso que ele morreu, Cervantes não diz mas foi, bem que Sancho Pança na sua imensa sabedoria estranhou que na última “venda” na qual se hospedaram no final da terceira e última rodada de aventuras ele a viu como uma simples e ordinária “venda”, não era mais um castelo como dantes, era o fim ou o começo do fim...

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