Houtart: "Se deve inventar e é muito difícil inventar dentro do sistema" |
François Houtart, sacerdote e sociólogo belga: “O
desafio fundamental para Bolívia, Venezuela e Equador é definir a transição sob
um novo paradigma pós-capitalista”.
“Em primeiro lugar devemos dizer
que é o único continente no mundo onde existem esforços para sair do
neoliberalismo. Isso não encontramos em nenhum outro continente e por isso o
papel da América Latina hoje em dia é central”.
“Há limites em dois planos, limites
que vêm do exterior, do sistema mundial, e limites que provêm do projeto
interno”.
Por Katu Arkonada,
no Nodal – Notícias da América Latina e Caribe, de 06/11/2013 (a
entrevista foi dividida em duas partes e o título acima é deste blog)
François
Houtart (Bélgica, 1925), sacerdote da diocese de Bruxelas, estudou Sociologia
da Religião, fazendo seu doutorado sobre Sociologia do Budismo em Sri Lanka. Ajudou
na criação do Instituto de Sociologia do Vietnã, trabalhou em numerosos países
da Ásia e África, além de fundar o Centro Tricontinental (CETRI) na Universidade
de Lovaina (Bélgica). É professor emérito da Universidade de Lovaina e professor
honorário do Instituto de Altos Estudos Nacionais (IAEN) do Equador. Fortemente
ligado à Teologia da Libertação, é secretário executivo do Foro Mundial das
Alternativas, presidido por Samir Amin, encontrando-se ambos estreitamente
ligados ao nascimento do Foro Social Mundial.
Katu
Arkonada (KA) - François, como você caracteriza o atual momento histórico e a
conjuntura política da América Latina?
François
Houtart (FH) - Em
primeiro lugar devemos dizer que é o único continente no mundo onde existem esforços
para sair do neoliberalismo. Isso não encontramos em nenhum outro continente e
por isso o papel da América Latina hoje em dia é central. Quando digo esforços
para sair do neoliberalismo, ou o que Samir Amin chama avanços revolucionários,
significa que são processos com suas contradições, talvez não necessariamente pós-capitalistas,
mas sim processos com políticas pós-neoliberais.
KA - Em
que momento se encontram estes processos? Como a morte do Comandante Chávez afetou
a construção desse cenário pós-neoliberal?
FH - A morte de Chávez foi um
fenômeno extremamente grave porque ele foi um dos que iniciaram este processo e
teve evidentemente uma liderança regional muito importante, pensemos na ALBA (Aliança
Bolivariana para os Povos da Nossa América) e outras iniciativas como a CELAC
(Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos). Neste sentido tanto
para a Venezuela como para o continente em geral é um golpe. O importante agora
é como seguir os processos de integração em função de uma integração realmente
da Nossa América, como dizia (José) Martí, e não da integração com o Norte,
como alguns projetos atuais. Também devemos ver quem pode realmente assumir uma
liderança, como continuar a herança que nos deixou Chávez, especialmente a nível
regional. O continente tem que institucionalizar os processos postos em marcha.
ALBA, CELAC, UNASUR, Mercosur, etc., devem institucionalizar-se para criar
realmente uma força, um polo regional realmente importante.
KA - Mas
parece, não sei se é casual, que logo que Chávez morre, por um lado o
imperialismo se rearma no continente mediante uma ferramenta dirigida a frear
os processos de integração, a Aliança do Pacifico, e ao mesmo tempo parece que os
processos de mudança no continente começam a apresentar alguns limites. Você
acredita que existam esses limites? Como os caracterizaria?
FH – Sim, eu penso que
evidentemente há limites em dois planos, limites que vêm do exterior, do
sistema mundial, e limites que provêm do projeto interno.
Quando
vemos os países latino-americanos, deixando de lado os que se situam claramente
numa integração de tipo neoliberal com o Norte, encontramos vários modelos de
reorganização. Por exemplo, temos o Brasil, a Argentina ou o Uruguai numa direção
que podemos chamar social-democrata, que aceitam de maneira quase oficial o
capitalismo como modelo de crescimento, buscando, por sua vez, ter uma política
social de redistribuição do excedente do país. Isso deu resultados, não podemos
negar os resultados no Brasil, onde 40 milhões de pessoas saíram da pobreza
extrema. Porém não se deu uma mudança das estruturas e sim uma certa adaptação
do modelo capitalista, que ademais não leva em conta o que podemos chamar em
economia as externalidades, isto é, o que não entra no cálculo do mercado, como
os danos ecológicos e os danos sociais.
Discurso anticapitalista e
medidas antiimperialistas mais claros
No
entanto, é diferente em países como a Venezuela, o Equador ou a Bolívia, que têm
um discurso anticapitalista muito mais claro, além de também adotar medidas de
soberania frente ao império muito mais claras. Inclusive no Equador e na Bolívia
temos o discurso sobre o Bem Viver ou Viver Bem, que parece colocar no debate e
na agenda propostas novas.
Mas nestes
processos também encontramos limites tanto internos como externos.
Internamente
me parece que o limite é a concepção do modelo de desenvolvimento, muito semelhante
à concepção que o capitalismo desenvolveu. Vejo isso em todo o mundo, não
somente aqui, vejo na China, vejo no Vietnã, Angola ou Moçambique, em movimentos
que eram radicais, inclusive comunistas, no final na hora de colocar em marcha
um desenvolvimento humano regressam às mesmas lógicas. Isso o vemos também no Equador,
onde se fala duma nova matriz produtiva, mas quando se trata de definir o que isto
significa, vemos como se traduz em desenvolver a mineração, o petróleo, a
extensão das monoculturas para agro-combustíveis, transgênicos, etc. Não se veem
muitas diferenças com as bases dum desenvolvimento de tipo capitalista, exceto talvez
no vocabulário e num modelo que poderíamos chamar neo-desenvolvimentista. É um fato
que me parece que cada vez mais entra em contradição com os grandes princípios
do Bem Viver.
Então nos
encontramos com um limite interno já que não existe outra concepção do desenvolvimento,
não há outro modelo, se deve inventar e é muito difícil inventar dentro do
sistema.
Mas também
temos limites que vêm do exterior, do sistema-mundo, como define Wallerstein, e
que põe sua lógica na organização global da economia.
Outro
elemento importante é que esses processos têm um forte apoio popular. Por isso
deveríamos nos perguntar se a opinião pública, se o povo está pronto para
entrar num novo modelo de desenvolvimento.
Portanto,
nos encontramos com três elementos que se combinam: a formação dos líderes atuais
é uma formação crítica do capitalismo, ou do neoliberalismo, mas é muito
difícil encontrar modelos para mudar realmente as coisas; em segundo lugar, a força
do sistema mundial; e em terceiro lugar, uma opinião pública que apoia porque
recebe benefícios na forma de bônus e políticas públicas, mas levando em conta
- e isto inclusive Rafael Correa o reconhece -, que uma boa parte das políticas
continua sendo assistencial.
Me parece
que para o futuro não se trata de negar que houve avanços, mas se trata de ver
que estamos numa situação mundial tal, que este modelo leva à destruição da
natureza e a desastres humanos e que devemos também ter uma visão global e uma visão
holística na hora de buscar soluções. (Continua)
Tradução: Jadson Oliveira
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