Junta Militar da ditadura argentina, presidida (no meio) pelo então general Jorge Rafael Videla (Foto: Página/12) |
Stella Segado, diretora de
Direitos Humanos do Ministério da Defesa, chefiará a análise dos documentos:
ela explica que os arquivos encontrados pela Força Aérea dão conta da “política
pública do golpe” e que até o momento se conheciam alguns papéis deste tipo,
mas que “a novidade é a unidade de conjunto”.
Por Ailín Bullentini, no jornal argentino Página/12, edição de 06/11/2013
A
diretora de Direitos Humanos do Ministério da Defesa, Stella Segado, não perde
seu ar de surpresa. Sente, simplesmente,
que durante os próximos seis meses “a história” estará passando por suas mãos. É
a chefe da equipe que analisará, sistematizará e digitalizará para enviar à
Justiça as 1500 pastas, livros e registros com informação relativa ao funcionamento
burocrático da última ditadura cívico-militar (1976-1983). “Pela primeira vez
temos diante de nós o registro burocrático daquilo que representa o marco
político da morte”, considerou em diálogo com Página/12, a partir da linha de largada ao caminho da análise
exaustiva.
Stella Segado conta que há “versões taquigráficas de reuniões da CAL com os diretores de diferentes empresas” (Foto: Guadalupe Lombardo/Página/12) |
Tal como
informou o ministro da Defesa, Agustín Rossi, na segunda-feira, dia 4, Segado
tomou contacto pela primeira vez com a documentação achada num subsolo do edifício
Condor da Força Aérea e desde então não voltou a trabalhar noutro tema. “Realizamos
um levantamento geral do material, sem examinar nada em profundidade. Tínhamos
proibido a nós mesmos parar para ler cada papel, porque do contrário não
terminávamos mais”, revelou. A equipe de investigação do setor que dirige se
dedicará em tempo integral a sistematizar
e analisar a documentação encontrada, junto com um grupo de arquivistas e
alguns experts em conservação de papel. No total, são 30 pessoas. Terão seis
meses para terminar o trabalho. A intenção de Segado é que, logo em seguida, os
documentos fiquem no arquivo da Força Aérea.
– Por que
deixá-los lá?
– Sou uma
defensora de manter os arquivos lá. De não removê-los para outra dependência, não
desgastá-los. Assim, junto com outros documentos encontrados na Força Aérea, há
muitos de Malvinas, por exemplo, dentro da mesma estrutura, se pode observar uma
real dimensão do que foi o circuito repressivo: sua burocracia, sua doutrina,
sua política. Tudo.
– De que falam
os documentos encontrados?
– Até o
momento fizemos um trabalho geral a partir do que podemos dizer que são
registros que revelam o funcionamento burocrático da última ditadura. É incrível
e fundamental. Primeiro porque, como destacou Rossi (Agustín Rossi, ministro da
Defesa), a mesma Força Aérea entregou os papéis. Eles descobriram todo este
papelório e assim que o descobriram fecharam a porta com cadeado e nos chamaram,
com a suspeita de que era inédito. A totalidade que os papéis abarcam é a outra
razão da importância, a unidade documental que significam e que dão conta da
política pública do golpe, duma política de extermínio não só da vida, mas sim
total e absoluta. No Arquivo Geral da Nação há alguns expedientes da Comissão de
Assessoria Legislativa (CAL), também algumas atas da junta. No Arquivo da Marinha
também há algumas outras. As informações estavam soltas, dispersas. A novidade
e o ineditismo do achado na Força Aérea é a unidade de conjunto.
– Poderão
ser resolvidas incógnitas que persistem sobre aqueles anos?
– Duvido
que se encontrem dados relativos ao destino dos bebês apropriados ou dos
desaparecidos, mas nada indica que não possa aparecer entre tanta ordem alguma
ponta que possa dar algum indício. É que nestes papéis, pelo que pudemos ver
até agora, sequer se apropriam de sua política de morte: quando falam dos
desaparecidos o fazem como se fosse mentira: como fazemos para que os
desaparecidos não incomodem a partir da repercussão na opinião pública, como se
tinha que tratar nesse aspecto as declarações sobre os desaparecidos. Em nenhum
ponto do que lemos até agora se responsabilizam como sendo seus assassinatos.
Atas das reuniões das Juntas e livros de "entradas e saídas" (Foto: Pablo Piovano/Página/12) |
O livro de entrada das reclamações na Casa Rosada em que figura o pedido de Abuelas de Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio) (Foto: Guadalupe Lombardo/Página/12) |
– Por que
é tão importante este roteiro burocrático?
– Até agora,
sempre aconteceu que a pedra documental, aquele papel valioso era o que revelava
diligências, oferecia nomes de pessoas ou de estratégias sobre as quais já se tinha
conhecimento. A prova. Aqueles documentos que oferecem um fato delituoso,
penal. A busca desses papéis que forneciam esses dados fazia com que os advogados
queimassem as pestanas rearmando a estrutura
geral do genocídio, aquilo que dava marco à morte. Pela primeira vez temos o
registro burocrático daquilo que deu marco político à morte. Diante de nós
aparecem documentos nos quais a junta militar designa quem seria o responsável
por tal ou qual assunto, como o de cuidar do “problema” do Papel Prensa, por exemplo.
Aparecem responsabilidades, não aparecem os nomes, mas a partir daí se pode começar
a rastrear. Teremos que fazê-lo. Também estão as provas de todos os pedidos que
chegavam diariamente à junta. Pedidos de organismos de direitos humanos, como o
de Hebe (Hebe de Bonafini, dirigente de Mães da Praça de Maio) ou o de Abuelas
(Avós da Praça de Maio), pedidos de pessoas individualmente.
– Em que
consistirá seu trabalho?
– Trabalharemos
num catálogo muito preciso do achado com uma descrição minuciosa de cada coisa.
Iremos digitalizando e com isso organizaremos unidades temáticas para mandar à
Justiça. Não vamos esperar que a Justiça nos peça ou que os advogados venham
buscar. Nós mesmos vamos entregar.
– Por onde
vão começar?
– Pelas
atas, que estão arrumadas quase cronologicamente, além de muito bem
preservadas. Ademais estão os escritos em que os secretários organizavam o temário,
com anotações a lápis, discussões internas que são mais provas da luta de poder
no interior do núcleo militar. Os informes da Comissão de Assessoria
Legislativa (CAL) nos vão tomar mais tempo porque estiveram guardados em pastas
de cartolina, uma por cada decreto do Poder Executivo Nacional, estão todas aí,
e todas úmidas, já que estiveram expostas num lugar que inundava. Teremos que
restaurá-las. Há regulamentos, o livro de entrada e saída de expedientes. Encontramos
o “Documento final da Junta Militar sobre a guerra contra a subversão e o
terrorismo”, a carta de saída dos genocidas do governo com todos seus rascunhos,
nos quais debateram porque não usar a palavra desaparecidos, por exemplo. O
manejo das privatizações com as objeções e posturas de cada uma das forças; que
dizia Economia, que dizia a CAL. Há, por exemplo, versões taquigráficas de
reuniões da CAL com os diretores de diferentes empresas e as discussões que se faziam
aí.
– Voltarão
a fazer buscas nas dependências a partir deste descobrimento?
– Fizemos
buscas em quase todas as unidades do país. Fomos a Córdoba, Mar del Plata, Porto
Belgrano. As forças as registraram na sua totalidade. O que acontece é que a
gente procura nos lugares onde se acredita que possam chegar a ser depósitos de
documentação. Neste caso, os documentos foram encontrados num porão, como se fosse
a oficina duma casa.
Tradução: Jadson Oliveira (Postadas logo abaixo
declarações de dois dos vários artistas incluídos nas chamadas “listas negras”
da ditadura)
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