Juan Delgado é o médico cubano recebido em Fortaleza em meio a um corredor polonês por médicos e médicas cearenses que gritavam ‘escravo’ |
“É possível ser um povo com
dignidade, que busca seus próprios caminhos, que não se está condenado a uma
única opção econômica, social, política e cultural, que valores como igualdade,
fraternidade, solidariedade podem estar presentes na vida de cada um e cada uma
e na história de uma nação”.
Por Selvino
Heck, em Adital, de 25/10/2013
(enviado por Telma Araújo, militante
do movimento de solidariedade a Cuba; conheci a companheira no Grito dos
Excluídos deste ano em Belo Horizonte/MG)
Eu estava
lá, vi e vivi. Encontro o colega Manoel Messias, da Secretaria Nacional de
Relações Políticas e Sociais da Secretaria Geral da Presidência da República,
que me diz: "Acabei de ligar para minha mulher assistir na NBR. Ela me respondeu
que está vendo e está chorando”. Ao seu lado o Paco – Júlio Hector Marin –, um
chileno há muitos anos no Brasil, da Secretaria de Relações Institucionais,
olhos vermelhos, emocionado. Eu, tentando segurar o choro e as lágrimas, digo
numa rodinha: "É o gesto e o fato em si, mas é também muito mais. É o
simbolismo, Cuba, América Latina, tudo”. Dias depois encontro o ministro
Alexandre Padilha no prédio onde ambos moramos, dou-lhe os parabéns e conto que
vi muita gente chorando. Ele: "Dei-me conta quando vi o Ferreira (deputado
federal Paulo Ferreira) chorando na minha frente”.
Foi o
clima da cerimônia de sanção da Lei que instituiu o Programa Mais Médicos no
Palácio do Planalto. Muita emoção, gente para todos os lados, médicos e médicas
cercando a presidenta querendo uma foto, imprensa como poucas vezes vi. O choro
de muitos aconteceu quando a presidenta Dilma entregou ao médico cubano Juan
Delgado o documento de que ele poderia trabalhar no Brasil. Ficaram conversando
por vários minutos. Nas fotos de capa dos jornais, a presidenta aparece toda
sorridente e feliz, vestida de vermelho, ele, de branco, documento nas mãos,
alegre, como se estivesse em casa. Foi quando muita gente chorou.
Juan
Delgado é o médico cubano recebido em Fortaleza em meio a um corredor polonês
por médicos e médicas cearenses que gritavam ‘escravo’.
A
presidenta Dilma abriu seu discurso dizendo: "Primeiro, eu queria
cumprimentar o Juan. Não apenas pelo fato de ele ter sofrido um imenso
constrangimento quando chegou ao Brasil, o que do ponto de vista pessoal e em
nome do governo, e eu tenho certeza, do povo brasileiro, eu peço desculpas a
ele. Mas também pelo fato de nós estarmos aqui hoje e eu queria cumprimentar
cada um dos médicos e das médicas aqui presentes. Eles representam –eu
conversei com eles antes – eles representam muito a grande nação
latino-americana. Por isso, quando nós nos olhamos, é como se nós víssemos os
brasileiros representados em cada um deles, como eu vejo todos os
latino-americanos, os argentinos, eu vejo os salvadorenhos, eu vejo os cubanos,
eu vejo os venezuelanos, eu vejo os bolivianos, os equatorianos. Então, eu
queria saudar esses médicos que vieram de longe para ajudar o Brasil a ter uma
política de saúde que levasse esse serviço essencial a todos os brasileiros e
brasileiras”.
Muitos e
muitas de nós que choramos no Palácio do Planalto vivemos e crescemos
acompanhando a revolução cubana, sua resistência heroica à potência do Norte, a
capacidade imensa do povo cubano de ser feliz no meio das dificuldades e
privações, colocando saúde, educação e esporte em primeiro lugar, dizendo para
todos que é possível ser soberano numa ilha a poucos quilômetros de Miami e
ajudar outros países mais pobres, que é possível resistir ao consumismo
desvairado, que é possível música e literatura de alta qualidade, que é
possível ser um povo com dignidade, que busca seus próprios caminhos, que não
se está condenado a uma única opção econômica, social, política e cultural, que
valores como igualdade, fraternidade, solidariedade podem estar presentes na
vida de cada um e cada uma e na história de uma nação. Por isso, choramos com
Juan Delgado sendo recebido pela presidenta Dilma e ele dizendo em Fortaleza,
‘sim, sou escravo da saúde’.
O
ministro Alexandre Padilha resumiu nosso sentimento: "Aquele corredor
polonês da xenofobia que te recebeu em Fortaleza não representa o espírito nem
do povo brasileiro nem da maioria dos médicos brasileiros”.
Antes
servir que servir-se. Os médicos cubanos são influenciados até hoje pelo
programa de medicina familiar, comunitária e coletiva implantado pelo também
médico, guerrilheiro e revolucionário argentino, Che Guevara. Che foi, como
escreveu alguém, um embrião e propagador do homem do novo tipo. Esse Che que,
segundo o filme Diários de Motocicleta, em sua viagem pela América do Sul nos
anos 1950, da Argentina à Venezuela, para por um tempo para atender leprosos no
Peru. No dia do seu aniversário, faz um brinde à unidade latino-americana que um
dia chegará. Em seguida, abandona a festa de aniversário, atira-se na água,
atravessa o rio e vai festejar com os leprosos sob o som da belíssima ‘Al Otro
Lado del Río’ do uruguaio Jorge Drexler: "Clavo mi remo en el agua/ Llevo
tu remo em el mío./ Creo que he visto uma luz al outro lado del rio”.
O
simbolismo da unidade latino-americana está expresso nos médicos cubanos e de
outros países que se dispuseram a trabalhar com as dores do povo brasileiro. O
simbolismo da unidade latino-americana está expresso em Juan Delgado dizendo não ser escravo de
ninguém, mas da saúde dos mais pobres e sofridos. O calor humano da presidenta
Dilma e do Palácio do Planalto de Niemeyer deram de novo sentido ao novo homem
e à nova mulher que Che tanto pregou: "Acima de tudo, procurem sentir no
mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em
qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um Revolucionário.”
"Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma
injustiça no mundo, então somos companheiros”.
Somos
companheiros, Juan.
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