(Foto: EFE/Página/12) |
Por Washington Uranga, no jornal argentino Página/12, edição de 21/09/2013
A
extensa entrevista que o papa Francisco concedeu ao padre Antonio Spadaro,
diretor da Civiltà Cattolica (a versão completa em espanhol pode ser lida em http://www.razonyfe.org/images/stories/Entrevista_al_papa_Francisco.pdf), para ser publicada
nas revistas dos jesuítas em todo o mundo, não só oferece mais elementos que
permitem compreender o rumo que Bergoglio quer dar à Igreja Católica, como
também ratifica outro modo de comunicação do pontífice com a sociedade e com sua
própria comunidade, e volta a surpreender a esta comunidade e a estranhos com
algumas definições.
O texto é um verdadeiro documento de quase 30 páginas obtido ao longo de três jornadas que totalizaram mais de seis horas de diálogo entre o jornalista e o Papa. Há novidades que falam das aberturas que Francisco quer fazer na Igreja, mas sempre cuidando de não modificar nenhum dos leitos ortodoxos da doutrina e da moral católicas. As “audácias” de Bergoglio, se é que assim se podem denominar, têm a ver com seus gestos, sua disposição ao diálogo e, fundamentalmente, com sua insistência em que a religião e, portanto, a Igreja Católica, tem que ajudar as pessoas a viver melhor, aportando seus valores e pontos de vista, mas sem obrigar e sem se constituir em juiz e árbitro. Esta é, talvez, uma das diferenças mais importantes entre o “Bergoglio cardeal” e o “Bergoglio Papa”.
“Deus nos fez livres: não é possível uma ingerência espiritual na vida pessoal”, sustentou o Papa para dizer que “não podemos continuar insistindo somente em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual e ao uso de anticonceptivos. É impossível”. Francisco não renega a doutrina, porém pretende, pelo menos no momento, deixar estas discussões em segundo plano: “Temos que encontrar um novo equilíbrio, porque de outra maneira o edifício moral da Igreja corre o perigo de cair como um castelo de cartas, de perder o frescor e o perfume do Evangelho”, diz com grande cota de realismo. No mesmo sentido assinala que as consequencias morais devem vir depois do anúncio positivo do Evangelho e da salvação. E redobra a aposta: “Um cristão restauracionista, legalista, que quer tudo claro e seguro, não vai chegar a nada (...). Aquele que hoje busca sempre soluções disciplinares, que se incline para a ‘segurança’ doutrinária de modo exagerado, que busca obstinadamente recuperar o passado perdido, possui uma visão estática e involutiva, e assim a fé se converte numa ideologia entre tantas outras”. Também conhece o risco das divisões: “Temos que caminhar unidos nas diferenças: não existe outro caminho para nos unir”.
Apesar de Spadaro, o entrevistador, sustentar que “é óbvio que o papa Francisco está mais acostumado à conversação do que à cátedra”, é evidente que ao falar, também neste caso, Bergoglio não perde de vista que o que ele diga terá impacto, e para abordar alguns temas conflituosos continua utilizando a linguagem ambígua que tantas vezes mereceu críticas na Argentina. Nisto é fiel ao seu estilo de sempre. Lá e aqui. Desse modo deixa preservada a interpretação de suas audiências, mas ao mesmo tempo abre caminhos, promove o debate e, além do mais, tem a possibilidade de medir reações, de observar alinhamentos para, chegado o momento, voltar a arremeter. “Sou atento, sei me mover”, confessa. Ainda que compense com algo de difícil comprovação: “Ao mesmo tempo sou bastante ingênuo”.
“Não se pode falar de pobreza se não a experimenta”
Bergoglio se declara “pecador”, reconhece erros históricos em sua forma de condução, porém sustenta que “jamais foi de direita”. Com habilidade utiliza a autocrítica para introduzir o valor da consulta e das responsabilidades compartilhadas no governo da Igreja. Esta é outra das linhas de ação que Francisco escolheu para seu pontificado, que ratifica agora e que pode conduzir a uma gestão mais colegiada da Igreja, o que poderia desembocar na convocação de sínodos especiais e inclusive de um concílio. Bergoglio disse agora que há que encontrar a maneira destas instâncias de consulta serem “menos rígidas” porque “desejo consultas reais, não formais”. O colegiado episcopal na Igreja abriu caminho após o Concílio Vaticano II e o papa Paulo VI o impulsionou decididamente. Com João Paulo II, e em seguida com Bento XVI, as conferências episcopais perderam peso, e a condução se fez cada vez menos participativa e mais concentrada na burocracia eclesiástica do Vaticano.
Outra das afirmações que chamam a atenção é aquela que na linguagem política poderia se traduzir como “o povo não se equivoca”. Francisco diz que “o povo é sujeito” e que “o conjunto de fiéis é infalível quando crê e manifesta essa sua infalibilidade ao crer”. O Papa quer dizer que tanto ele como os bispos devem prestar mais atenção ao povo em sua forma de viver a fé e em suas práticas religiosas do que aos mesmos teólogos? É o que parece. Insiste em que “há que perguntar ao povo” e não somente à “parte hierárquica” (os bispos) da Igreja. E retoma a ideia da Igreja entendida como “a casa de todos, não uma capelinha na qual só cabe um grupinho de pessoas seletas”, nem “um ninho protetor de nossa mediocridade”. Muitos bispos, também argentinos, devem sentir neste momento que o Papa está batendo em suas portas.
A afirmação serve para traçar um perfil dos bispos: “misericordiosos” que “se encarregam das pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que as lava, limpa e consola”, que sejam “pastores e não ministros ‘clérigos de despacho’”. Em outro momento disse que quer uma “Igreja pobre”, e bispos “com cheiro de ovelha” e não príncipes.
Agora acrescenta que “quando se fala dos problemas sociais, uma coisa é se reunir estudando o tema da droga duma favela, e outra coisa é ir lá, viver lá e captar o problema desde adentro e estudá-lo”. Porque “não se pode falar de pobreza se não a experimenta, com uma inserção direta nos lugares onde se vive essa pobreza”.
Em síntese, Francisco define uma Igreja Católica protagonista e servidora da sociedade, mas ao mesmo tempo aberta ao diálogo e aceitando as diferenças, dentro e fora de suas fronteiras. E exige que os “ministros” eclesiásticos estejam a serviço e presentes no meio do povo, abertos a escutar antes de impor normas morais ou doutrinárias. É o papa Francisco de hoje que, sustentam alguns, poderia ter polemizado com o cardeal Bergoglio de ontem.
Tradução: Jadson Oliveira
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