Dentro da mesquita de Al Iman em Nasr City, a Irmandade Muçulmana cuida de seus mortos longe do controle das autoridades (Foto: AFP/Página/12 de 16/08/2013) |
Por Robert Fisk, The Independent | Tradução Cauê Seignemartin Ameni (Reproduzido de Outras Palavras, postagem de 15/08/2013 - só uma foto é do jornal argentino Página/12)
O
cristal egípcio rompeu-se. A “unidade” do Egito – aquela cola
patriótica e essencial que manteve o país unido desde a derrubada da
monarquia, em 1952 e o governo de Nasser – derreteu em meio aos
massacres, tiroteios e fúria, ontem (quarta, dia 14) no ataque brutal à Irmandade
Muçulmana. Uma centena de mortos – 200, 300 “mártires” [o número de
vítimas continua subindo: 638, na quinta-feira à noite, segundo o New York Times] -
não faz diferença o resultado: para milhões de egípcios, o caminho da
democracia tem sido dilacerado entre balas e brutalidade. Os muçulmanos
que buscam um Estado baseado em sua religião poderão confiar nas urnas
novamente?
Ajuda dos EUA: 1,3 bilhão |
Em
1992, na Argélia; no Cairo em 2013 – e quem sabe o que acontecerá na
Tunísia nas próximas semanas? – os muçulmanos que conquistaram o poder,
de forma justa e democrática através do voto, foram em seguida
derrubados do poder. E quem pode esquecer o bloqueio brutal sobre Gaza
quando os palestinos votaram – mais uma vez democraticamente – para o
Hamas? Não importa quantos erros a Irmandade Muçulmana tenha cometido no
Egito – nem quão promíscuas ou estúpidas fossem suas leis – o
presidente democraticamente eleito Mohamed Morsi foi derrubado pelo
Exército. Foi um golpe de Estado, e John McCain estava certo ao usar essa palavra.
A
Irmandade, é claro, deveria há muito tempo ter reprimido seu amor
próprio e tentado manter-se dentro da casca de pseudo-democracia
permitida pelo Exército no Egito. Não porque fosse justo ou aceitável,
mas para não ser obrigada a retornar à clandestinidade, prisões à
meia-noite, torturas e martírio. Este tem sido o papel histórico da
Irmandade – com períodos de colaboração vergonhosa com ocupações
britânicas e ditaduras militares no Egito. O retorno à escuridão sugere
dois resultados: que a Irmandade será extinta em meio à violência; ou
vai ter sucesso, em algum momento distante, na criação de uma autocracia
islâmica.
Os
sábios da mídia fizeram seu trabalho venenoso antes de o primeiro
cadáver ser sepultado. “O Egito pode evitar uma guerra civil”?,
perguntavam. Será que os “terroristas” da Irmandade Muçulmana pode ser dizimada pelo exército?
E aqueles que se manifestavam antes da queda de Morsi? Tony Blair foi
apenas um dos que falou sobre a importância de evitar o iminente “caos”,
ao conceder o seu apoio ao general Abdul-Fattah al-Sisi. Cada incidente
violento no Sinai, cada arma empunhada pelas mãos da Irmandade
Muçulmana vai ser usada para convencer o mundo de que a organização –
que na verdade é um movimento islâmico muito mal armado, e muito bem
organizado – era o braço direito da al-Qaeda.
A
história pode enxergar de outro modo. Será certamente difícil explicar
como milhares – talvez milhões – de liberais egípcios bem-formados
continuaram a dar suporte incondicional ao general, que passou boa parte
do tempo após a queda do ditador Mubarak justificando os teste de virgindade
do Exército entre as manifestantes do sexo feminino na Praça Tahrir.
Al-sisi estará sobre pressão nos próximos dias; ele que sempre foi
supostamente simpatizante da Irmandade, embora a origem dessa ideia
possa ser o fato de sua esposa sempre ter usado o véu para encobrir o
corpo todo, deixando apenas os olhos aparentes. Muitos intelectuais da
classe média que deram seu apoio ao exército, terão que espremer suas
consciências em uma garrafa para acomodar o futuro.
El Baradei, premiado com o Nobel da Paz de 2005, renuncia após massacre |
Poderia
Mohamed el-Baradei, Prêmio Nobel e especialista nuclear, a mais famosa
personalidade – aos olhos ocidentais, não egípcios – no “governo
interino" — ter permanecido no poder? Claro que não. Ele teve que ir,
pois ele nunca desejou tal resultado, quando apostou seu poder político e
concordou em sustentar a escolha de ministros feita pelo Exército,
depois do golpe no mês passado. Mas o círculo de escritores e artistas
que insistem em afirmar o golpe de Estado como uma continuidade da
revolução de 2011, terá que usar – depois do banho de sangue e da
renúncia de el-Baradei – alguma linguística bem angustiada, para escapar
da culpa moral.
Preparem-se,
é claro, para as habituais perguntas-jargões.
Será que isso significa o
fim do Islã político? No momento, certamente; a Irmandade Muçulmana não
terá disposição para tentar outras experiências na democracia – uma
recusa que é o perigo imediato no Egito. Pois, sem liberdade, há
violência. Será que o Egito se transformará em outra Síria? Improvável. O
Egito não é um Estado sectário – nunca foi, mesmo com 10% dos seus
habitantes cristãos –, nem inerentemente violento. Nunca experimentou a
selvageria das revoltas argelinas contra os franceses, ou as
insurgências sírias, libanesas e palestinas contra os britânicos e
franceses.
Mas muitos fantasmas curvarão suas cabeças
envergonhados, hoje. Entre eles, Saad Zaghloul, o grande advogado
revolucionário do levante de 1919. E o general Muhammed Neguib, cujas
exigências revolucionarias de 1952 são tão similares às exigências dos
que se reuniram na praça Tahrir, em 2011.
Mas
sim, algo morreu hoje no Egito. Não a revolução, porque em todo o mundo
árabe conserva-se íntegra — embora ensanguentada — a noção de que os
países pertencem aos povos, não a seus governantes. A inocência morreu, é
claro, tal como acontece após cada revolução. O que expirou hoje foi a
ideia de que o Egito era a mãe eterna da nação árabe, o ideal
nacionalista, a pureza da história segundo a qual o Egito considerava
todo o seu povo como seus filhos. Porque as vítimas da Irmandade – assim
como a polícia e os partidários do governo – são também filhas do
Egito. E ninguém disse isso. Eles haviam se tornado os “terroristas”, o
novo inimigo do povo. Esta é a nova herança do Egito.
Veja quem é Robert Fisk
Robert Fisk é um premiado jornalista
inglês, correspondente no Oriente Médio do jornal britânico The
Independent. Fisk vive em Beirute há mais de 25 anos. Considerado como
um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk
contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil
argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os
assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses
durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos
Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama
bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda (em 1993, no Sudão, em
1996 e em 1997, no Afeganistão).
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