Stálin, referido no texto como "o Chefe" ou "Joseph" (Foto: Internet) |
Para
falar dos oportunistas que se infiltram em todos os cantos, inclusive nas
revoluções; para falar, especialmente, dos oportunistas encarregados do
trabalho sujo:
“São
opacos, tristes, mas o fato de que assumem a repressão os faz invulneráveis por
uma razão de Estado que não é nenhuma razão, pelo menos como o apresenta Serge”.
“Espuma malsã
da sociedade, aparecem quando o sistema necessita deles e lhes confere uma
forma que não estava totalmente na cabeça dos que requereram seus serviços, mas
lhes deram os instrumentos necessários para desempenhar seu tenebroso trabalho”.
Por Noé Jitrik, escritor e crítico
literário argentino – parte dum texto traduzido do jornal argentino Página/12, edição de 17/01/2013, com o
mesmo título acima
Muito se disse sobre os julgamentos de Moscou (a partir de 1936, durante
a era Stálin, quando velhos revolucionários bolcheviques foram dizimados com a
pecha atroz de traidores) e de tudo mais. Não me sinto em condições de voltar a
esse fenômeno com olhos novos e por outro lado não quero repetir dados que já são
lugares comuns, um conto de nunca acabar. Me importam mais dois aspectos que se
desprendem do relato de Serge e que poderiam transcender ao stalinismo; talvez
introduzam uma compreensão de mecanismos políticos variados e repetidos, sempre
desconcertantes. Ambos se desprendem dos dois diálogos que Kondratiev mantém com
o Chefe.
(Para ajudar a compreensão: Serge é Victor Serge, escritor que atuou na
revolução soviética; Kondratiev é personagem de seu romance El Caso Tulaiev - não
sei o título duma possível edição em português, é formalmente uma obra de
ficção. Tal personagem dialogo com “o Chefe” ou “Joseph”, que não é outro senão
Stálin).
O primeiro ponto: quando a revolução logra o poder e se funde com o
aparato do Estado, termina por apelar para consolidar recém chegados, sujeitos (agentes,
protagonistas) que não faziam parte do elenco inicial; aparecem assim pessoas sem
história mas que falam em nome do Partido e do Estado, como se fossem os executores
mais fiéis de seu projeto: obviamente o projeto era único desde 1917 a 1926 e bem
outro nos anos que se seguiram. Em princípio isso responde a uma necessidade
mas logo, quando esse Estado muda de caráter, perde universalidade e suas metas
excedem os propósitos iniciais e começa a encontrar, reais ou inventados,
múltiplos inimigos, esses recém chegados se ocupam dos aspectos mais terríveis,
cumprem ordens de cima com um zelo e uma argumentação que os fundadores não haviam
imaginado, mas que não têm força para resistir. Duros, inescrupulosos, são uma
caterva feroz que desaparece assim que os inexistentes inimigos foram executados,
às vezes publicamente, outras vezes na sombra. Voltam a ser, talvez, bons pais
de família, não tiveram nada a ver com nenhuma execução brutal, quem os poderia
acusar? Esse elenco ocupa a cena que narra Serge em relação com os expurgos
soviéticos: personagens obscuros, quase mudos, que aparecem como a negação mesma
do sentido da revolução, mas que possuem armas muito mais eficazes do que a
mera argumentação racional. Nenhum deles procede como o fez o mítico Cruz quando
enfrentou Fierro: são opacos, tristes, mas o fato de que assumem a repressão os
faz invulneráveis por uma razão de Estado que não é nenhuma razão, pelo menos
como o apresenta Serge.
Não estranharia que este esquema se aplicasse a diversas situações
políticas, revolucionárias ou não no sentido bolchevique. Os nazistas chegaram
a controlar toda a sociedade recrutando guardas de assalto no lúmpen (escória
da sociedade); a ditadura argentina integrou suas cohortes com delinquentes e assassinos que juntou para formar os
tristemente célebres “grupos de tarefas”, apenas agora, quase 40 anos depois de
suas proezas, se começa a saber quem são; os “guardas vermelhos” maoístas não foram
algo diferente. E assim continua: espuma malsã da sociedade, aparecem quando o
sistema necessita deles e lhes confere uma forma que não estava totalmente na
cabeça dos que requereram seus serviços, mas lhes deram os instrumentos necessários
para desempenhar seu tenebroso trabalho.
O outro tema brota, quase com tristeza, dos lábios do próprio “Joseph”
frente a Kondratiev. “O que quer que eu faça com esta responsabilidade que caiu
sobre meus ombros?” Kondratiev poderia lhe dizer, “que não são fracos”, mas na
realidade pode pensar, porque o estima ainda, que Joseph está preso a uma
lógica relacionada com uma instância à qual nem quer nem poderia renunciar: a
lógica do poder. Se bem inicialmente esse poder não seja forte, há que se
cogitar que Joseph não tem outra alternativa do que consolidá-lo e reforçá-lo,
se não o faz pode perdê-lo e se isso ocorre seus inimigos não vacilariam em
eliminá-lo, como ele o fez com seus inimigos. Entraria, pensa, em contradição
consigo mesmo se não obedecesse a essa lógica acumulativa, mas fazê-lo é cada
vez mais custoso e terrível, sacrifica o mais básico, não só elimina a oposição,
mas também aqueles de dentro de suas próprias forças que poderiam chegar a ameaçá-lo
e, segundo Kondratiev, com certeza a sua própria vida. Joseph inicia assim uma
cadeia de ações cada vez mais iníquas, confunde o poder que acumulou com
especiosas razões de Estado, finalmente chega à velha fórmula monárquica, “O
Estado sou eu”, de modo tal que não lhe custa nada interpretar que discrepâncias,
reticências, críticas dirigidas a ele são atentados ao Estado. Nem sequer a
fidelidade lhe basta, até os mais fiéis devem ser eliminados porque sua mera
individualidade de homens que pensaram e fizeram aquilo que agora ele dirige
ameaça a coerência e homogeneidade do poder.
Este
texto foi pinçado no meio do artigo mencionado acima. Quem quiser lê-lo na
íntegra, em espanhol, deixo o link aqui:
Observação
do Evidentemente:
De
torturadores e delinquentes
No Brasil, não tivemos (até agora), infelizmente, nenhuma revolução,
pelo menos no sentido tratado no texto acima. Todas as mudanças ocorridas no
decorrer da história brasileira foram pactuadas entre as chamadas elites, os de
cima, de maneira que mudam as coisas sem que mudem de verdade.
De qualquer forma, pelo enfoque principal do texto acima, é impossível
não se pensar nos torturadores da última ditadura brasileira (1964-1985), os
que já morreram e os que ainda vivem, todos ainda impunes.
No filme de Silvio Tendler, Utopia e Barbárie, que vi recentemente
(inclusive postei neste meu blog), ele fala desses delinqüentes que atuaram na
repressão e tortura, integrantes da equipe do delegado de tenebrosa memória Sérgio
Paranhos Fleury.
Lembra que eles não tinham qualquer formação político-ideológica que
embasasse seu “tenebroso trabalho”, vinham dos grupos policiais já calejados,
os chamados “de extermínio”, acostumados a torturar e matar os “criminosos
comuns”, ou seja, as pessoas pobres (a maioria jovens e negros) envolvidas com
delitos (ou supostamente envolvidas).
Prática, aliás, que, no caso desses “criminosos comuns”, continua em
vigor desbragadamente (“Onde está Amarildo?” E os milhares de Amarildos? E os
assassinados na luta pela terra são “comuns” ou “políticos”?).
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