Se dependesse das autoridades, protesto seria sempre ordeiro. Uma turminha bem comportada, carregando cartazes bem-feitinhos, dando voltas sem fim em algum lugar que não atrapalhe o trânsito ― num Sambódromo, ou quem sabe em um autódromo. Para participar, seria preciso se inscrever, apresentar RG, CPF, serviço militar quitado, Imposto de Renda, atestado de bom comportamento, e não ter antecedentes criminais. Vamos ser bem claros: protesto pacífico não serve pra muita coisa. A polícia não bate. A imprensa não dá espaço. Os governantes não dão bola. Protesto não é pra ser pacífico. Protesto é pra incomodar. Protesto é para questionar a ordem. Nada questiona tão bem quanto um soco, um incêndio, uma pedrada na vidraça.
Em protestos como vêm acontecendo no Brasil, uma minoria bem ínfima é que está quebrando, e agora saqueando. É essa minoria que ocupa muito espaço na cobertura televisiva. Por uma ótima razão: rende boa TV. Televisão é imagem, e imagem de gente brigando, correndo, botando fogo e enfrentando a polícia é mais emocionante que imagem de gente caminhando calmamente (por isso é que tem tanto seriado policial, e nenhum sobre gente que gosta de caminhar). E essa minoria aumenta muito o poder de fogo do conjunto dos manifestantes ― queiram os pacifistas do movimento ou não.
Vamos separar, por um minuto, as depredações dos saques. Vimos grupos, e não tão ínfimos assim, que se dedicaram a apedrejar, pichar, quebrar as frentes da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Palácio dos Bandeirantes e a prefeitura em São Paulo, e outros prédios públicos. São alvos absolutamente legítimos. A massa dos manifestantes, e praticamente todo mundo que acompanha o movimento, identifica governadores, prefeitos e a classe política como parte do problema, não da solução. São, nesse sentido, o inimigo. Estão sempre protegidos pela polícia, porque sabem que são alvos, e que merecem ser alvos. No limite, o governo sai matando de um lado, e os revoltosos saem matando do outro ― vide Síria.
Vamos seguir o mesmo raciocínio. Vimos outros alvos ontem, não-públicos. Quebraram agências de bancos. Os bancos são amigos ou inimigos da população? Quebraram McDonald's. De que lado você colocaria a rede de fast-food? Não deixaram Caco Barcellos trabalhar, botaram fogo em uma carro da reportagem da TV Record. De que lado você põe a mídia, a seu lado ou contra você? A decisão é de cada um, e de cada um que está nos protestos. Uns são muito radicais, outros muito moderados. Quem decidir ir pro pau, vai sabendo que pode levar porrada e talvez, ir para a cadeia.
Nos últimos dias, ficou mais complicado decidir a quem você se opõe. Agora toda a imprensa está simpática (se bem que cobrindo muitíssimo mal, em geral), a PM está bem contida, os políticos aplaudem, tá todo mundo vendo "beleza" nos protestos, como disse o governador do Rio. Da boca pra fora, claro ― ninguém se mexeu um milímetro para atender as reivindicações dos manifestantes, pelo menos nas grandes cidades (lembrar que o artigo é datado de 19/junho). Mas o bloco do "a favor" está crescendo, inchando até. Virou obrigação aplaudir. Todos os famosos apoiam, e se os famosos apoiam deve ser boa coisa, né?
Mas todo esse a favor para quando começa o pau. Todos aplaudem os protestos, e todos são unânimes em satanizar os baderneiros, os infiltrados, os vândalos. E mais ainda os que roubam. Saquear lojas atravessa uma fronteira muito importante. Na linha acima, é fácil entender porque alguns manifestantes muito radicalizados veem esses grandes magazines como templos do consumo, símbolos do capitalismo, e portanto alvos válidos. Mas na hora que você sai correndo com uma TV, um celular ou um microondas, que vai levar pra sua casa e usufruir, passa a ser visto como um ladrão comum.
Em um contexto de desobediência civil, é estratégia sólida dar um chega-pra-lá nas regras cotidianas do consumo, e dar uma banana para a lei. Na época da ditadura militar, guerrilheiros roubavam bancos e ricaços e, com o dinheiro, financiavam ações contra o regime. Não era roubo, era "expropriação", diziam. A presidente da república, Dilma Rousseff, colaborou em ações do gênero. Vi um senador na televisão dizendo que manifestações violentas são incompatíveis com o regime democrático. Os militares também garantiam que vivíamos em uma democracia nos anos 70. Democracia não é o que senador diz, é o que o povo sente.
(...)O Brasil não vive um cenário de transformação radical. Mas nosso País é muito violento, o tempo todo, e particularmente com os mais pobres. Violência do crime, e violência do Estado, que nos leva o dinheiro e nos dá tão pouco em troca. Não se trata de defender quem depreda e saqueia. Se trata de ter consciência de que nossa paz é diariamente quebrada, que muitas empresas depredam o País cotidianamente, e que o poder público não nos protege. Donde que é ser muito ingênuo achar que todo protesto vai ser sempre pacífico e polido. É fácil pra classe média alta boazinha, que vive em condomínio, paga seguro saúde e escola, põe insulfilm no carro e depende muito menos do Estado, cobrar que todo mundo se comporte...
É preciso, também, descobrir outras maneiras de protestar. Não podemos ficar entre o quebra-quebra e esses passeios sem fim pela cidade, gritando palavras de ordem e "violência não". Desobediência civil ― e criativa ― é um dos melhores caminhos. Ainda mais se beneficiar diretamente a população que hoje não está nas ruas.
(...)Olha, eu sou o cara mais pacífico do mundo. Mas vamos botar a mão na consciência. O País atravessa uma turbulência que não tem precedentes na campanha pelo impeachment de Collor, ou pelas Diretas. É outro Brasil, outro mundo, são outros descontentamentos e anseios, são outros governantes e manifestantes. Quem protesta não enxerga hoje na tal sociedade civil quem o represente. Nem partidos, nem instituições. Os políticos que marcharam pelas diretas, e contra Collor, hoje estão no poder, e são amiguinhos dos herdeiros da ditadura, e do próprio Collor. É de se estranhar que tenha gente que quer quebrar tudo?
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