Eles foram chegando pouco a pouco na grande casa afazendada lá pela bela Chapada Diamantina, interior da Bahia |
Contam que eles chegaram na grande casa afazendada 38
anos depois. Eram sete, prenhes de reminiscências, afetos, fantasias,
frustrações e ainda sonhos. Admirável! Ainda sonhos, velhas utopias que
teimavam. Foram chegando pouco a pouco como a lembrar velhas práticas de outros
tempos de coisas clandestinas. Mas não tão discretos como naqueles tempos. Ao
contrário, agora estrepitosos cumprimentos, abraços demorados, beijos? Beijos
não, que velhos comunistas não são disso. Tudo sob o manto de generoso
anfitrião, também um dos.
Contam que houve casos e mais casos. Muitos casos da
década de 70, a tirania militar onipresente, era de trevas, quando o “ousar
lutar, ousar vencer” era o credo, e jovens temerários podiam tudo ou quase
tudo: assaltar o céu, um Moncada (ou o quartel do Exército de Quitaúna em São Paulo, como fez, de dentro para fora, Lamarca),
ou ao menos pichar num muro da cidade “Viva Araguia”, como fez Elson em
Salvador. Assim, “Araguia”, porque na hora do aperto valeu e era preciso
divulgar de alguma maneira a guerrilha do Araguaia, apesar da crítica que ficou
na vasta historiografia da luta revolucionária, dando conta de que o único grupo
de militantes de massa que conseguiu fazer pichação pelo Araguaia na Bahia fez
“merda”. Foi o arrojado companheiro Elson que escreveu num muro “Viva Araguia”.
Viva! E viva a coragem do nosso Elson! (O episódio é citado, num contexto bem
crítico, sem identificar o militante, no livro “No avesso do paraíso - Vida clandestina
no tempo dos generais”, de autoria de Lucília Atas Medeiros, Editora da
Física, 1ª edição/2010).
(Apesar também da guerrilha ainda nem começada já ter
sido esmagada com truculência descomunal pelos militares, enquanto o dirigente
partidário maior propagava na Europa que a luta armada do povo brasileiro já
tinha “libertado” uma parte do território do país; e apesar também do jornal
partidário divulgar em suas páginas que a maioria da população brasileira
apoiava a guerrilha do Araguaia, no momento em que quase ninguém tinha
conhecimento sequer da sua existência, pois a censura da ditadura, apoiada com
gosto e/ou a contra gosto pelos órgãos da imprensa, não permitia).
Contam que o Elson era um dos sete materializados 38 anos
depois na casa afazendada e o próprio confirmou a grafia “Araguia”, fato
histórico contado no livro referido. Confirmou só a grafia, o mais, “o único grupo
de militantes de massa que...”, isso é de difícil confirmação. E esta foi
apenas uma das inúmeras lembranças revisitadas naquele final de semana, nos
arredores da cidade de Seabra, no interior baiano, na bela Chapada Diamantina,
que dizem ser região fadada a atiçar imaginações.
Mas o que contam e é reportado aqui muitos asseguram que
são fatos verídicos e se o cronista tivesse tempo poderia escrever um livro,
talvez de dois volumes, pois os sete velhos comunistas falaram, falaram,
falaram. Dizem até que falaram mais do que beberam e comeram, se bem que o
anfitrião não foi chamado a opinar a respeito: falam que só de uísque foram
três garrafas (não contam o vinho, a cerveja e a cachaça) e houve uma mesa de
refeição onde contaram, acuradamente, 15 itens, sem incluir iguarias básicas
como farinha, pimenta, café, leite e sucos.
Os casos, sim, é que renderam. Talvez o mais
surpreendente seja o de Sinhozinho, quiçá o mais comunista dos sete que
estiveram enfurnados na casa afazendada. Este cronista tem a ventura de
conhecê-lo e pode atestar que não justifica este “quiçá” usado aí por
fidelidade ao zelo jornalístico: foi comunista e segue sendo, tendo até um
empurrão da genética: seu pai participou do levante comunista de 1935, chamado
pela história oficial dos vencedores de “intentona comunista”.
Mesmo assim – e aí está o surpreendente -, nunca foi
catalogado como militante do partido, “fichado”, vamos dizer assim, mesmo sem
ficha física, clandestinamente, porque dois sabidões do partido atestaram que
ele só poderia ascender até a categoria de “simpatizante”. Foi barrado. Mas por
que? Porque o Sinhozinho nunca tinha dito que estava disposto a largar tudo, a
família, etc, e se colocar à disposição para ir fazer guerrilha no Araguaia
(outra vez o Araguaia!). Pode ser? Pode, sim. Era um tabu na época. Ele nunca confessou,
pelo menos em voz alta, mas suspeitam que carrega essa mágoa: nunca fui
comunista, quer dizer, nunca fui do Partido (assim com “P” maiúsculo, como a
gente escrevia na época).
Os dois sabidões: Anísio e Gregório. Os dois estavam lá
também e confirmaram e se penitenciaram. Aliás, consta que foram os mais
loquazes. Especialmente o Gregório, que no primeiro dia da reunião ficou
“ligado” – é o que relatam, talvez com algum exagero, embora talvez o exagerado
seja o próprio – 18 horas e meia: das 2:30 horas da tarde às 9:00 horas do dia
seguinte. “Ligado” significa que só ele falou, ninguém mais, ao menos por perto
dele (mas não se assustem, isso ocorre somente quando há bebida alcoólica na
jogada).
Como ele não era conhecido de alguns dos sete (“sumiu” de
Salvador logo em meados dos anos 70), contam que o Anísio, seu companheiro de
militância desde o início, teria feito uma apresentação mais ou menos assim:
olha, vou lhes contar um caso, para vocês saberem como é o Gregório: uma vez eu
ia me encontrar com ele em Salvador. Convidei um outro amigo: “Pedão, vamos lá
na Rodoviária, você vai conhecer um amigão meu”. Fomos lá, ficamos uma hora e
meia conversando e tomando umas. Depois, Gregório, com uma latinha de cerveja
na mão, embarcou, bateu a mão em despedida. Quando o ônibus foi se afastando,
Pedão exclamou todo seu assombro: “Rapaz, que homem é esse!? Não deixa a gente
falar nada! Teve uma hora que ele tomou fôlego, eu aproveitei e abri a boca...
ele gritou: ‘peraí, peraí, que eu não acabei não’”.
Então, depois das 18 horas e meia de Gregório, houve mais
espaço para os outros. Jonas recordou, dentre os muitos casos de militância,
seu primeiro contato com o partido. Foi com o Anísio: fui instruído – relembrou
– para esperar em determinado ponto de ônibus, em determinado horário, usando
uma camisa vermelha e com uma revista debaixo do braço. E o mais importante, a
senha: uma pessoa vai aparecer e te perguntar: aqui passa ônibus pra
Barroquinha? E você vai responder: Passa sim, de quatro em quatro horas. E
assim foi que passou a ter contato com o companheiro Anísio. Se bem que Jonas
já conhecia o Anísio, com nome verdadeiro e tudo mais, do ambiente de trabalho.
Anísio é que não conhecia o Jonas.
Coincidências e azares das atividades clandestinas.
Contam muito disso em toda parte, momentos de tensão hoje recordados entre
sorrisos e gozações. Talvez também uma mostra de como os comunistas éramos
poucos. Vilson também passou por episódio com certa semelhança: era “assistido”
pelo camarada Carlos. Um dia este lhe comunicou que fosse a um lugar assim e
assado, que ele ia ser abordado por alguém e este alguém passaria a ser seu
“assistente”. Aquele “abordado” ficou marcado em seu juízo e em sua alma pelo
resto da vida, enfatizou Vilson entre emocionado e divertido. O tal alguém era
- nada mais, nada menos – seu chefe no trabalho, que vinha a ser o Elson, já
mencionado acima.
E o mesmo Vilson – tudo conforme vazou do encontro e como
conta a gente dos arredores – lembrou ainda um vexame acontecido quando ele
levava um companheiro para uma reunião partidária, clandestina, claro. Ao
entrar no edifício onde morava e onde ia se dar a dita reunião, a pessoa de
olhos baixos, semi-fechados, para não identificar o local, de acordo com as
regras de praxe, foi saudada efusivamente pelo porteiro do seu edifício: “Oi
doutor Fulano, como está o senhor? O que o senhor está fazendo por aqui?”
Transtornos daqueles tempos que hoje provocam risadas.
E tantos outros casos houve – ou teriam havido – naquelas
48 horas de boa camaradagem na casa afazendada da bela Chapada Diamantina. Mas
dentro dos parâmetros deste blog já chega. Daria um livro, como disse, se
fossem reportadas tantas reminiscências. Há alguns que duvidam dos casos
contados, o que é compreensível, pois teriam sido vetadas gravações. Mas pelo
menos quanto à existência da afamado reunião, não parece haver dúvida. Foram
localizadas, por acaso, no computador do Carlos (conhecido por sua afeição ao
ofício da fotografia) algumas fotos, as quais, tudo indica, comprovam
incontestavelmente o semi-sigiloso encontro dos sete velhos comunistas.
Tais fotos por certo serão o passaporte para a história.
Porque aconteceu que, quando a notícia do tal evento começava a se espalhar
pela região circunvizinha, a imprensa local (isto é, de Seabra) baixou lá, por
volta do meio-dia do domingo, e não havia sequer um pé de comunista. Pairou uma
certa admiração: “Oh! desencarnaram!? Mas não dizem que os comunistas são
ateus!?”
Protagonistas e coadjuvantes do afamado encontro semi-clandestino:
Deuzito (João de Deus Goberto) |
Dona Noemi Brandão |
Ana Maria Rodrigues (com Zezinho) |
Zupa (Eusupério Neto) |
Louro (Lorisvaldo Francisco) |
Comentários
Conheço 3 dos sobrevivevres.
Grande abraço.
Aloísio