CHÁVEZ: RUMO À MITOLOGIA?



Chávez participou ativamente da eleição na qual se reelegeu em 7/outubro, mas já estava num leito de hospital em Havana (Cuba) quando do último pleito para eleger governadores em 16/dezembro (Foto: Internet)
Do blog de Atilio Boron, cientista político e sociólogo argentino

Alô!  Compartilho um artigo sobre Chávez de William Ospina, um dos mais talentosos escritores, ensaístas e jornalistas da Colômbia. Há algumas observações muito pertinentes sobre as quais creio que vale a pena refletir. Não me agrada que, já no final, sua matéria se converta quase num necrológio. Se é verdade que Chávez está numa situação de extrema gravidade, ninguém deveria se surpreender caso consiga reverter tal situação e recuperar sua saúde. Suas probabilidades são pequenas mas nem por isso inexistentes. E outra coisa que não me agradou, num texto com muitas observações muito acertadas, é quando diz que "a melhor maneira de admirar, de respeitar e honrar os Estados Unidos, é temê-los, e não cairmos em enganos sobre eles". Digo: nem admirá-los nem temê-los, e quanto ao respeito fazê-lo como se respeita um inimigo. Ospina nos exorta, com razão, a não cairmos em enganos sobre eles. Isto quer dizer, concretamente, que não devemos esquecer nunca que o imperialismo é nosso inimigo, nosso mortal inimigo, e como dizia o Che, "nele não se pode acreditar nem um tantinho assim". Feitas estas ressalvas, vai aí o artigo:

“ÀS PORTAS DA MITOLOGIA”

Um dos grandes inimigos do imperialismo é Hugo Chávez. Por isso, ainda que ninguém possa lhe atribuir crimes como os que mancham as mãos de tantos poderes no mundo, para muitos analistas políticos e meios de comunicação é um ditador e um tirano.

Por William Ospina (foto) - 7 de janeiro de 2013

Uma vez perguntei a García Márquez se não havia sido muito difícil o momento em que boa parte da intelectualidade latino-americana rompeu com a Revolução Cubana, e somente ele e uns poucos continuaram sendo seus amigos. Gabo não respondeu com uma teoria mas com algo mais visceral: “Para mim, disse,  Cuba foi sempre uma questão do Caribe”. Na minha opinião, ele queria dizer que não se tratava de marxismo ou teorias revolucionárias e sim da luta dum povo por sua soberania e sua cultura frente ao assédio de poderes invasores.

Os governos dos Estados Unidos, que compraram a Flórida e roubaram o México, que se apoderaram de Porto Rico e separaram o Panamá, teriam anexado com prazer a bela ilha de Cuba se esta não tivesse sido sempre tão irredutível em sua rebeldia e tão firme em sua resistência.

Já em (José) Martí estava tudo o que faria de Cuba um país tão zeloso de sua independência. García Márquez, que conhece as traições do “bom vizinho” porque desde menino soube do massacre das empresas bananeiras na praça de Ciénaga, compreendeu que era vital manter à distância o afã hegemonista daquele país que respeita tanto a lei dentro de suas fronteiras e a ignora tanto fora delas. A história da América Latina tem sido a história dessa saudável tensão ante os poderes do norte. Faz pouco visitei no norte do México, na Cidade Juárez, o Museu da Revolução. Nada me impressionou tanto, mais inclusive do que o crânio de vaca numa mesa sob a brilhante luz do deserto, que uma fotografia onde a sociedade de El Paso, Texas, cavalheiros com “sombreros” e damas floridas com trajes enfeitados com bijuterias, presenciava desde a margem do rio Grande, como num piquenique, a luta no outro lado da fronteira, onde homens de grandes “sombreros” e grandes pistolas se lançavam contra a ditadura. A viva imagem duma sociedade de bem-estar que se diverte com o espetáculo de tragédias alheias, esperando o momento de entrar em ação para se aproveitar dos resultados.

A melhor maneira de admirar, de respeitar e honrar os Estados Unidos, é temê-los, e não cairmos em enganos sobre eles. Para eles somos outro mundo: matérias primas, floresta, imigrantes, governos que se submetem e assinam sem maiores exigências os contratos. E aqui ninguém os ama tanto como os que se beneficiam desses contratos.

Muitos meios de comunicação do continente têm feito um grande esforço para converter os adversários dos Estados Unidos nos grandes equivocados. Tentaram com Cuba e mais recentemente com a Venezuela, até o ponto de que suas eleições vitoriosas são sempre eleições suspeitas. Não importa que na Colômbia comprem votos ou dobrem eleitores com promessas ou ameaças: esta democracia nunca está sob suspeita. Não importa que os paramilitares produzam em 10 anos 200 mil mortos em massacres com todas as formas de atrocidade: a democracia colombiana segue sendo exemplar, porque os poderes da plutocracia seguem no comando. Mas se alguém é inimigo, não dos Estados Unidos mas dos abusos do imperialismo, isto o torna réu.

Um desses grandes inimigos do imperialismo é Hugo Chávez. Por isso, ainda que ninguém possa lhe atribuir crimes como os que mancham as mãos de tantos poderes no mundo, para muitos analistas políticos e meios de comunicação é um ditador e um tirano. Eu creio que tem sido um grande homem, que tem amado seu povo, e que tem tentado abrir caminho para um pouco de justiça num continente escandalosamente injusto. Para isso, tem sido duro com os donos tradicionais do país e isso não o perdoam. Um dia o perdoarão: quando entenderem que tudo o que se faz em favor dos povos sempre excluídos, cedo ou tarde frutifica em sociedades mais reconciliadas consigo mesmas.

Um amigo me dizia há pouco que um homem que se faz reeleger três vezes é inimigo da liberdade. Não compartilho essa ideia limitadora da democracia. A rainha Isabel da Inglaterra, que não foi eleita por ninguém, leva 60 anos, quer dizer, para nós, toda a história universal, como soberana de sua terra, e não vejo ninguém protestando contra esse abuso. Na Colômbia levamos 200 anos reelegendo o mesmo tipo com caras diferentes, mas com exatamente a mesma política. O único um pouco diferente era Álvaro Uribe, só porque era um pouco pior. Porém o problema não são os homens e sim as ideias que governam, e na Colômbia governam as mesmas ideias desde o início do século 19, e a consequencia catastrófica se vê por todas as partes.

Caso seja necessário convocar novas eleições, o mais provável é que as maiorias chavistas sejam maiores ainda do que nas eleições passadas, que já se celebraram sem sua presença (eleições para governadores do dia 16/dezembro, quando o chavismo ganhou em 20 dos 23 estados).

E talvez nos será dado assistir à passagem de Chávez da história à mitologia, à novelesca mitologia latino-americana, da qual fazem parte igualmente María Lionza e José Gregorio Hernández, Rubén Darío e José Martí, Carlos Gardel e Eva Perón, Martín Fierro e Jorge Eliécer Gaitán, Simón Bolívar e Túpac Amaru, Frida Kahlo e Pablo Neruda, Eloy Alfaro e Salvador Allende, o Che Guevara e Emiliano Zapata, Vargas Vila e Jorge Luis Borges, Benito Juárez e Morazán, Pedro Páramo e Aureliano Buendía.

Uma mitologia da qual hoje talvez tenhamos vivos somente Fidel Castro e Gabriel García Márquez.

Tradução: Jadson Oliveira

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