A VERDADE MORREU




Capa do jornal espanhol, edição de 24/01/13 (Foto: Página/12)
Por José Pablo Feinmann, filósofo e escritor argentino (traduzido do jornal argentino Página/12, edição de 28/01/2013. O assunto foi objeto de postagem deste blog no dia 24)


O tema da verdade é um dos mais complexos da filosofia e a ela pertence, corresponde. Deixemos de lado os gregos porque, do contrário, não terminaremos nunca. Mas acompanho Protágoras e a sua formidável frase “O homem é a medida de todas as coisas”.


Durante a Idade Média o problema não foi difícil. Deus possuía a verdade e a revelava aos homens. Ou melhor dito aos pastores. À instituição eclesiástica. Surge isso que Foucault (ao qual recorreremos muitas vezes) chama “poder sacerdotal”. Os bons servos de Deus sempre se sentem em pecado, acodem ao bom sacerdote e, no confessionário, contam as opacidades de sua alma. O pastor conhece tudo do servo e o bom homem não sabe nada do pastor. Assim, o confessionário é como a CIA (Agência de Inteligência dos EUA) da Igreja. Tem um fichário de todos os servos de todos os lados. A “verdade” que Deus revela a recebe a Igreja e quem não a cumpre será castigado pela Inquisição. Descartes vem estabelecer uma nova verdade. Ao duvidar de tudo duvida também de Deus. O que é que lhe permite duvidar de tudo? Seu pensamento. O que é aquilo do qual não pode duvidar? Claro está: de seu pensamento. A verdade que vem  instaurar Descartes é a da razão: ego cogito, ergo sum (Penso, logo existo). Mas há outra verdade que Descartes deveria provar. A externa. Como sair do cogito? Através de Deus. A revolução não foi total. Se vejo tudo isso aí em torno é porque deve existir; se não, Deus não me faria ver. Ou seja, a única verdade que Descartes vem estabelecer é a do pensamento, a da subjetividade. A do homem. Mas esse homem é incapaz de provar a existência do mundo exterior. Tudo muda com Kant. Kant é um filósofo fundamental. O que fez ainda serve. Diz: todo conhecimento começa pela experiência mas não se reduz à experiência. A primeira parte da frase é uma concessão ao pensamento de Hume, ao empirismo inglês, o qual Kant respeitava muito. Ou seja, todo conhecimento começa pela experiência, pelo real, pelo empírico. Pelos fatos. Hegel dirá: O verdadeiro é o todo. Tomemos qualquer instância da dialética histórica. Há três momentos: afirmação, negação da afirmação e negação da negação. O terceiro momento é a síntese dos outros dois e os contém numa totalidade que os contém enquanto superação. Este terceiro momento é a totalidade. E a totalidade – em Hegel – é o verdadeiro. Sobretudo ao constituir-se enquanto sistema. Adorno (no século XX), opondo-se à dialética hegeliana, lançará um famoso dito: A totalidade é o falso. Sartre, na Crítica da razão dialética, dirá que a totalidade nunca fecha: apenas totaliza já se destotaliza. Mas sempre há algo que nunca falta: o empírico, a materialidade. Nietzsche diz: “Não há fatos, há interpretações”. Mas sim: há fatos. Só que a verdade se estabelece por meio da interpretação dos fatos. Só que, sem fatos, não há interpretações. Sejamos redundantes porque aqui está o centro da questão: ainda quando a primazia da interpretação dos fatos parece levar a um relativismo, essa interpretação parte também do real (“fáctico”). Dos fatos. Sem fatos, não há interpretações. Foucault partindo de Nietzsche e Heidegger estabelece a verdade como luta de interpretações. A verdade é deste mundo, diz em Microfísica do poder. Em A verdade e as formas jurídicas estabelece que há uma luta pela verdade. Algo que também faz em Poder e verdade. Se luta pela verdade porque a verdade é quem estabelece o poder. Em suma, de todas as interpretações dos fatos vão triunfar aquelas que possam acumular mais poder. Daí o interesse dos monopólios em conservar o que conquistaram. É fácil: se eu tenho duzentas ou trezentas bocas comunicacionais através das quais enuncio minha interpretação da realidade, esta se transforma na verdade porque logro convencer a maioria. A verdade é filha do poder. Hoje mais do que nunca pelo alcance sufocante dos meios de comunicação. Isto não significa que não existam verdades alternativas à do poder midiático. Porém serão muito débeis. Já que o monopólio midiático (e, não o esqueçamos, os meios de comunicação são o partido político da direita) foi devorando todas as forças competitivas do mercado. O mercado não é livre e é anti-democrático: o devoram os monopólios e os oligopólios, que concentram o poder juntando-se com os competidores ou levando-os à ruína. O que é fácil: qualquer monopólio pode vender um ano com prejuízo e liquidar as pequenas empresas do mercado. Aí as compra ou deixa que entrem em processo de falência, para que as compre ou se liquidem.


Mas tudo mudou. Uma mudança na ética jornalística. Vimos que todas as filosofias partiam dos fatos. Kant requeria a experiência. Daí que seja nosso exemplo predileto. Todo conhecimento começa pela experiência. O jornalismo nasceu para dizer a verdade. Se diferencia nisto da literatura. O bom jornalismo diz a verdade, a boa literatura mente. Esta é uma frase indiscutível e cheia de orgulho para os escritores. O escritor escreve ficções. (Não vou entrar aqui nas interpretações que afirmam que interpretar a realidade é uma ficção porque seria estender muito. Quem levou esta interpretação ao extremo é Hayden White em A ficção da narrativa. Mas é uma posição muito discutível). Digamos que Kant jamais diria que não parte da experiência. Que Nietzsche não negaria que parte dos fatos para interpretá-los. E que essa guerra pela verdade que postula Foucault também se baseia na realidade. No jornalismo isto é o que morreu. O jornalismo já não parte dos fatos. Esta foi sua tarefa primordial desde seu nascimento. O jornalismo informava. Pretendia informar imparcialmente. Aí radicava sua seriedade. Pretendia ser um ferrão para manter em alerta os homens e advertir-lhes que não aderissem à falsidade. Ou pretendia ser um clarim (em espanhol “clarín”, nome do principal monopólio privado das comunicações na Argentina) sobre os grandes problemas argentinos, não para encobri-los, e sim para enfrentá-los, para dizer, sobre eles, a verdade. A contra-capa que publicamos ontem foi provocativa (Página/12 publicou no dia anterior, 27, a mesma foto acima, com o mesmo título: A verdade morreu, acrescentando: Matou-a “o jornalismo independente”). Porém, acreditamos, contundente. Agora o jornalismo já não trabalha sobre materialidade alguma. Ao estar em constante estado de beligerância deixa de lado o real. Já não parte dos fatos, os inventa. Essa foto do suposto Chávez na capa de El País é a prova. El País foi um diário respeitável e louvável, progressista. Hoje é parte do complô midiático contra os governos populares da América Latina que nós – sentimos muito mas são nossas convicções, pedimos que as respeitem e não se rebaixem insultando-nos – defendemos. Esse “Chávez” não se baseia em nenhuma “materialidade”, em nenhum “fato”. Todos os filósofos que citei diriam que assim não se consegue a verdade. Que não é o caminho para se chegar a ela. Porque sem base material não é possível a interpretação. E se não há interpretação, o que há é a mais recalcitrante e vergonhosa mentira. Senhores, vocês estão liquidando o jornalismo. Custará muito que recuperem a fé dos leitores, ou de muitos deles que não se deixam enganar facilmente. Vocês, senhores, ao apelar para a mentira como arma de antagonismo, estão matando a verdade. E isso não tem retorno. E é, ademais, imperdoável.


Brevemente: vamos à Argentina onde tudo isto infelizmente abunda. Na Feira do Livro, faz um par de anos, o médico psiquiatra Marcos Aguinis, junto com Jorge Fontevechia,  diagnosticou, sem conhecê-la, sem nunca tê-la visto, sem tê-la tido como paciente, “depressão bipolar” em Cristina Fernández. Além disso, um diagnóstico não se dá em público, na Feira do Livro! Um médico, se é honesto, guarda o diagnóstico como todo paciente o merece. Uma indecência. Falei isto com vários psiquiatras e psicólogos amigos. Sobretudo, com um que havia sido professor de Aguinis e lhe havia indicado pacientes. “Marquitos fez isso? Que absurdo. Era uma boa pessoa.” Ainda não há legislação penal sobre isso, mas não importa. O que importa, o que alarma, é a impunidade para mentir. Porque a mentira é a morte da verdade. E a verdade morreu. Pelo menos na capa de El País no dia em que publicaram essa foto obscena do falso Chávez. E, cotidianamente, em muitos outros meios de comunicação da pretensiosamente chamada “imprensa independente”.


Tradução: Jadson Oliveira

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