Fidel, sobre a reação da oligarquia chilena, apoiada pelo imperialismo: “É de se esperar que haja resistência forte e inclusive violenta” (Foto: Página/12) |
A histórica conversação é
apresentada pela primeira vez na televisão argentina, nos 39 anos do golpe no
Chile: quando Castro visitou Santiago, em novembro de 1971, manteve uma reunião
com o presidente chileno. Falaram sobre a revolução, o imperialismo, os meios
de comunicação e o futuro da América Latina. Hoje são mais comuns os encontros
entre líderes progressistas.
Por Emanuel Respighi (reproduzido do jornal argentino Página/12, de 12/09/2012)
Em
novembro de 1971, os olhos do mundo inteiro estiveram postos neste lado do planeta, provavelmente como nunca antes. É
que em 10 de novembro desse ano, o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro,
pisou o solo chileno para realizar um giro pelo país andino que duraria 20 dias
e numerosos discursos. A atenção mundial tinha um sentido: Castro se reuniria
com Salvador Allende, o presidente que havia logrado encabeçar o primeiro
governo socialista eleito (em “eleições burguesas”) da região. Se bem hoje
resultam habituais os encontros entre mandatários de governos progressistas da
região, para a época o encontro Allende-Castro era uma grande novidade. E
também representava uma ameaça para o status quo econômico e político de então.
Daquela visita, ficou registrada uma histórica e suculenta conversação que
mantiveram os líderes políticos, cuja gravação se acreditava perdida. No entanto,
mais de quatro décadas depois, O diálogo da América não só foi recuperado, mas
também restaurado para sua projeção, pela primeira vez na TV argentina, através
do Canal 7 (estatal), que o estreia hoje (dia 12/setembro/2012) às 22:30 horas.
Provavelmente
não tenham sido exploradas as possibilidades cinematográficas no seu tempo.
Seguramente, desde o ponto de vista técnico e criativo, o material deixe muito
a desejar. Mas nenhuma dessas carências visuais pode ofuscar o valor histórico
e político da conversação entre Castro e Allende em novembro de 1971.
O
encontro, que se produziu na casa presidencial de Tomás Moro, foi documentado
pelo jornalista Augusto Olivares e o cineasta Alvaro Covacevich. Por motivo dos
39 anos do golpe militar no Chile, aniversário ocorrido ontem
(11/setembro/2012), o Canal 7 apresenta dentro de Ficções do real (apresentação
de Pedro Brieger) esta espécie de “aula aberta e falada” entre duas das figuras
maiores da política latino-americana. Nela, os mandatários trocaram opiniões
sobre a revolução, o subdesenvolvimento, o imperialismo, a oligarquia, a
dependência cultural e econômica e o futuro da América Latina.
O diálogo
da América foi estreado mundialmente em Paris em abril de 1972, como testemunho
da luta pelo processo chileno, sendo apresentado pelo escritor (e poeta) Pablo
Neruda e pelo ator Marcel Marceau. Após sua apresentação, se perdeu a pista do
documentário, que recentemente foi recuperado entre o patrimônio de Covacevich,
que depois do golpe militar de 1973 se exilou no México. Para esta projeção na
TV argentina, o filme foi adaptado pelo Canal Encontro para cumprir certos
parâmetros técnicos, ainda que o diálogo tenha sido conservado na sua
totalidade e sem modificação alguma.
Numa
conversa à vontade, em pleno sol nos jardins da casa presidencial chilena,
Allende e Castro fazem reflexões sobre os processos revolucionários que – com
suas diferenças – cada um levava então nos dois países. Há quatro décadas de
produzido, o registro daquele diálogo íntimo, quase “familiar”, adquire
transcendência tanto pela atualidade de algumas problemáticas que os líderes
vislumbravam, como pelo anacrônico que resultam algumas de suas opiniões, em
virtude dos acontecimentos que, em 11 de setembro de 1973, acabariam com o
governo socialista e a vida do presidente chileno, que se suicidou no La Moneda após uma dura
batalha com as Forças Militares. Também ali, nesse dia, encurralado pelos
golpistas, se suicidou Olivares, o jornalista que conduziu a entrevista de O
diálogo da América.
A revolução e os obstáculos
– A
motivação dos povos na sua luta através da história é variadíssima. Como
poderia o senhor definir, Comandante, a motivação da luta do povo cubano?
Fidel
Castro: – Digamos
pelo menos, de acordo com nossa concepção, que o grande motor da história têm
sido as lutas das massas oprimidas contra os opressores. Em nosso país existia
a dupla motivação: era um país submetido e humilhado pelo imperialismo e, ainda
mais, dentro dessa situação, uma grande massa de camponeses sem terra, uma grande
massa operária explorada, nas condições de miséria espantosa, falta total de
assistência médica para as camadas pobres da população, deficiente sistema
educacional e percentual altíssimo de analfabetos, falta de perspectivas para a
juventude, centenas de milhares de desempregados. Quer dizer, havia uma
situação social desesperante, poderíamos dizer que a grande motivação do nosso
povo era a luta pela vida.
Allende, sobre o uso da liberdade de imprensa no Chile: “É uma libertinagem da imprensa. Se deforma, se mente, se calunia, se tergiversa” (Foto: Internet) |
–Presidente
Allende, a experiência política chilena é seguida com atenção em todo o mundo.
É uma experiência que tem obstáculos. Como poderia o senhor definir esses
obstáculos?
Salvador
Allende: – Você se
dá conta, Fidel? Três minutos para definir os obstáculos duma revolução que
temos de realizar dentro da democracia burguesa e com os entraves legais dessa
democracia! Temos avançado. Obstáculos... nascem de que. Em primeiro lugar,
duma oligarquia com bastante experiência, inteligente, que defende muito bem
seus interesses e que tem o respaldo do imperialismo, dentro do marco duma
institucionalidade onde o Congresso tem peso e atribuições, e onde o governo
não tem maioria.
Daí então as dificuldades são bastante sérias e fazem com que o
processo revolucionário chileno, dentro dos marcos desta legalidade, encontre
cada dia e em cada momento obstáculos para o avanço do cumprimento do programa
da Unidade Popular. Você compreende que as dificuldades no nosso caso também
estão relacionadas com uma liberdade de imprensa que é muito mais que uma
liberdade de imprensa. Que é uma libertinagem da imprensa. Se deforma, se
mente, se calunia, se tergiversa. Os meios de difusão com que contam são
poderosos, jornalistas vinculados a interesses externos e a grandes interesses
nacionais. Não somente não reconhecem como deformam as nossas iniciativas. Tudo
isto, tendo nós que respeitar as conquistas que o povo alcançou e das quais
logicamente faz uso e mau uso a oposição ao governo popular. Por isso, e você
tem dito também, e reconhece que as dificuldades que se nos apresentam
são bastante...
F. C.: – São enormes as dificuldades que
vocês têm!
S. A.: – Você vê.
– E apesar
dos obstáculos, se pode levar adiante o processo?
S. A.: – E se avança. Já o disse: o cobre
é nosso, o ferro é nosso, o sal é nosso, o aço é nosso; quer dizer, as riquezas
básicas conquistamos para o povo.
F. C.: – Bem, eu tenho uma impressão, que
essa resistência atende aos procedimentos clássicos, além disso mais
desenvolvidos. É um procedimento que nós qualificamos de fascista e que tratam
portanto de ganhar massa com a demagogia, se possível dos setores mais
atrasados das camadas humildes, e ganhar massa nas camadas médias. E então fica
uma questão por demonstrar: se esses interesses vão se resignar passivamente às
mudanças de estrutura que a Unidade Popular e o povo chileno querem levar
adiante. E é de se esperar, se nós vamos analisar teoricamente esta questão,
que haja resistência forte e inclusive violenta. De maneira que esse é um fator
que não se pode descartar em absoluto na atual situação chilena, na minha
opinião, que é a opinião dum visitante, que vem dum país que está em outras
condições. É como uma viagem dum mundo para outro mundo.
S. A.: – Você disse e eu creio que é muito
justo: os revolucionários nunca provocaram a violência. São os setores dos
grupos prejudicados pela revolução que provocam a violência na
contra-revolução.
F. C.: – Mantiveram os sistemas pela
violência, assim os defendem, pela violência.
As convicções e o golpe
– Que
pensa o senhor, presidente, o que ocorreria no Chile se a contra-revolução se
levantasse?
S. A.: – O povo está no governo, se eles
lograssem, o que não vão conseguir, derrubar este governo, se cairia no caos,
na violência, na luta fratricida...
F. C.: E no fascismo!
S. A.: Ah! Claro. O imperialismo, que tem
estado e está por trás de todos os processos para sufocar a revolução, que
significa as mudanças e sua derrota, no Chile não vai poder desembarcar. No
Chile não vai intervir materialmente. Porém busca outros caminhos, busca
estimular os grupos reacionários e gerar os grupos fascistas, e utilizam a
demagogia e mobilizam os grupos de menor consciência social. Mas tenho a
segurança e a certeza absoluta da resposta implacável e dura do povo, e
pessoalmente: eu cumpro uma tarefa. Eu não estou aqui para satisfazer uma
vaidade pessoal. Eu sou um lutador toda minha vida. Tenho dedicado meu esforço
e minha capacidade para fazer possível o caminho ao socialismo. E cumprirei o
mandato que o povo me entregou. Cumprirei implacavelmente. Cumprirei o programa
prometido à consciência política do Chile. E aqueles que desataram sempre a
violência social, se desatam a violência política, se o fascismo pretende
utilizar os meios com que sempre arrasou os que pretenderam fazer a revolução,
se defrontarão com a nossa resposta e minha decisão implacável. Eu deixarei de
ser presidente da república quando cumprir meu mandato. Terão que me matar,
como o disse ontem, para que eu deixe de atuar.
F. C.: – Eu realmente admiro muito esse
teu pronunciamento. E isso será uma bandeira para o povo. Porque quando os
dirigentes estão dispostos a morrer, o povo está disposto a morrer e disposto a
fazer o que seja necessário. E isso tem sido um fator essencial em todo
processo político revolucionário.
Tradução:
Jadson Oliveira
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