UM GOLPE DURO PARA O ESTRATEGISTA DO PT

José Dirceu, declarado culpado pela compra de votos em julgamento marcado pela política (Foto: EFE)

Condenado sem provas, o artífice do triunfo eleitoral de Lula espera a sentença: num agitado desfile de vaidades exacerbadas, de egos hiper-inflados, com demonstrações claras de soberba e ressentimento por parte dos juízes, o julgamento do mensalão se transformou num espetáculo circense.

Do jornal argentino Página/12, edição de 13/10/2012 

A primeira vez que enfrentou um tribunal, José Dirceu tinha 22 anos. Era um tribunal militar, em plena ditadura, e o dirigente estudantil foi condenado a 14 meses de prisão. O julgamento e o tribunal eram de exceção. O réu havia sido detido meses antes, passou pelas rotineiras sessões de torturas e maus-tratos, mas poucos dias depois foi liberado, junto com outros 14 presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano Charles Elbrick, sequestrado no Rio de Janeiro por militantes da resistência. Exilado em Cuba, Dirceu foi declarado “banido” (desterrado) pela ditadura. Perdeu todos seus direitos de cidadão, começando pela nacionalidade.

A segunda vez foi agora, acusado de comandar um gigantesco esquema de corrupção. Dadas as peculiaridades do julgamento, carregado de forte e claro peso político e sob a pressão avassaladora dos grandes meios de comunicação, muitos juristas e analistas consideram que, uma vez mais, o veterano militante foi submetido a um claro tribunal de exceção. Foi condenado na base de argumentos e ilações.

Nem a acusação, a cargo do Ministério Público, nem ninguém, conseguiram produzir uma única prova concreta de que Dirceu fosse o chefe dum esquema de compra de votos de parlamentares. A propósito, sequer se provou a existência do esquema: tudo foi decidido seguindo uma linha tortuosa de raciocínio. Um dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) lançou um argumento insólito: disse que era impossível supor que, pelo poder que detinha, José Dirceu não soubesse do esquema de corrupção. E mais: com tanto poder, tinha que ser necessariamente o chefe. É um bom argumento para um papo de bar no final da noite. É assombroso que seja o argumento de um juiz duma corte suprema.

Num agitado desfile de vaidades exacerbadas, de egos hiper-inflados, com demonstrações claras de soberba e ressentimento por parte dos juízes, o julgamento –freneticamente aplaudido por uma opinião pública que oscila entre a ignorância política, o conservadorismo primário e o deixar-se encantar por uma manipulação sórdida – se transformou num espetáculo circense. Porém está feito: em breve se saberão as penas de Dirceu e dos demais condenados.

Seria o final duma carreira política vivida intensamente a cada minuto? Em termos eleitorais, muito provavelmente sim. Mas José Dirceu é, em primeiro lugar e acima de tudo, um animal político. Dentre os que continuam em atividade, talvez seja o mais consistente quadro da esquerda brasileira nas últimas três décadas.

Foi o artífice da vitória de Lula em 2002, após três tentativas frustradas, e da estruturação do Partido dos Trabalhadores numa agremiação efetivamente poderosa. Homem de partido e de combate, ao chegar à Casa Civil de Lula, em janeiro de 2003, culminou uma carreira iniciada na militância estudantil e burilada ao longo de décadas. O rapaz esbelto e bonito, de cabelos longos e discurso rápido, ágil, incisivo e incendiário do final dos anos 60, estrela máxima das assembleias e comícios relâmpago em São Paulo, soube curtir-se nos anos de exílio e treinamento em Cuba. Sua duvidosa aptidão para ações armadas o levou a transformar-se num quadro político de extrema habilidade. Um conspirador como poucos.

Em 1975 voltou clandestino ao Brasil, após uma cirurgia plástica que mudou sua fisionomia, se instalou em Londrina, interior do Paraná. Se casou, teve um filho, abriu uma butique de roupas femininas que justificava seus deslocamentos para várias capitais de estado. Fez tudo isso sem que sua mulher jamais desconfiasse de que era outro seu nome, outra sua vida. Que, para os cubanos, era o militante Daniel. Que entre uma viagem e outra, muito mais que trazer novidades da moda à distante Londrina, levava novidades e informações a outros grupos resistentes espalhados pelo país e em permanente contato com Cuba.

Quando se decretou a anistia, em 1979, voltou clandestino a Havana, para desfazer os efeitos da operação plástica. Reassumiu seu rosto e seu nome, e voltou a fazer política às claras. Contou a verdade à sua mulher, que o deixou e diz que até hoje não se recuperou do espanto.

Perdeu o posto de homem forte do primeiro governo de Lula (2003-2006), teve seu mandato parlamentar cassado por seus pares. Mas manteve seu poder e sua influência ao longo desses sete anos longe de qualquer cargo público. Continuou sendo um articulador político de primeira grandeza, e continuou exercendo uma forte liderança junto à militância do PT e da esquerda brasileira em geral.

Amigos e inimigos, aliados e adversários, todos reconhecem, unanimemente, o segredo de se manter tantos anos no centro do poder: uma disciplina de ferro, uma obstinação à toda prova, uma competência admirável e uma capacidade de entrega cabal a um projeto político iniciado há quase meio século.

Agora mesmo, enquanto se desenrola o julgamento que o condenou, tem sido um articulador importante nas disputas municipais, com destaque especial para São Paulo. Antes, em 2009 e 2010, foi fundamental para reunir os apoios que ajudaram Dilma Rousseff, que como ele veio da guerrilha que enfrentou a ditadura, a chegar à presidência do Brasil.

Desde a anistia de 1979 e logo em seguida à criação do PT, José Dirceu colocou toda sua capacidade de análise e de estrategista para traçar um projeto de país. Para tanto, era necessário chegar ao poder pela via já não das armas, mas dos votos. Assim que não hesitou na hora de afastar as correntes mais radicais da esquerda do PT, aglutinar e fortalecer as correntes mais moderadas, estruturar o partido para que deixasse de ser um amontoado de lideranças isoladas e se transformasse numa força unida.

Foi peça chave na estratégia que levou Lula à presidência, ao dialogar com setores moderados e conservadores do empresariado e decidir pela apresentação de uma “Carta aos brasileiros”, na qual Lula assegurou respeitar e manter certos princípios da economia que eram o contrário do que havia defendido em suas frustradas campanhas anteriores. Se Lula tem o carisma popular e uma intuição política sobrenatural, Dirceu é a capacidade máxima de organização, disciplina, visão estratégica e articulação. Muito mais do que por afinidade pessoal, os dois funcionaram e funcionam com base na complementariedade. À sua maneira, cada um exerceu sua parcela de poder.

Agora, Dirceu se depara com um futuro nebuloso. Segundo a pena, poderá ir efetivamente preso. Foi condenado sem prova alguma. Não poderá recorrer: ao fim e ao cabo, foi julgado pela instância suprema da Justiça brasileira.

Tradução: Jadson Oliveira