O SILÊNCIO QUE FAZ BEM, OU MAL, A ALMA


Por Otto Filgueiras* (foto – jornalista baiano que vive em São Paulo há muitos anos)

Eu quero voltar pra casa, meu pai, quero voltar. Depois de tanto girar, esqueci ou desconheço o meu primeiro endereço, a luz do primeiro lar. Entrei nesta multidão que atravanca este planeta, sem cartão, sem tabuleta e sem identificação. Sei que cheguei neste mundo num tempo de desordem quando aqui a fome reinava. Vim para o meio do povo onde encontrei a revolta e cresci com ela. Assim está se passando o tempo que me foi concedido nesta terra.

Agora quero voltar, mas os caminhos são escuros, só enganos, e eu com sessenta e dois anos não sei falar manso e já não sou carinhoso. É certo que aprendi a lutar por um mundo melhor e pelejei contra a tirania quando havia apenas injustiça e não protesto. Mas não me dei conta que, de quando em quando, tornei-me eu mesmo opressor dos entes mais queridos e demorei a entender que o ódio, mesmo contra a degradação, contorce as feições, que a ira, mesmo contra a tirania, deixa a voz áspera.

Sempre foi costume ter-se piedade de uma criança perdida, tonta e estranha na cidade. Hoje, tem até gente com dó de mim, é próprio do ser humano e querem me levar para casa. Querem sim, para os meus pais, ou para os meus irmãos.

Mas eu, com sessenta e dois anos, já não sei dizer de onde vim. Estou sozinho, igual quando aqui cheguei. A gente nasce chorando e acho até que nem mudei. Chegamos feio e enrugado, sem cabelo na cabeça, pequenino desdentado. Hoje tudo é parecido: os meus cabelos estão caindo e os meus dentes quase se acabaram. É verdade que as rugas sumiram, mas depois elas voltaram. E quanto a chegar chorando, posso dizer também que choro de quando em quando e choro com o ninguém.

Ainda ouço a mamãe gritando e você, meu pai, berrando por mim. Quando a mãe e pai chamam, o filho vai, pois é o caminho. Até que apuro bem os ouvidos e um triste silêncio cai. Já não ouço seus gritos e sequer sussurros.

Estou perdido, não tenho nem mãe nem pai, há muito a mulher se foi e os filhos, com razão, não querem conversa comigo.

Acho que estou vivo, mas sem um objetivo, de quem vem ou de quem vai. Nada me dá um motivo, nada me prende ou me atrai, nada me empurra ou me abrasa para poder continuar. Sempre disse que me bastava apenas a honra, vermelha. Não basta.

Mulheres e homens precisam aprender a sonhar, acreditar nos seus sonhos, examinar atentamente a vida real, confrontar seus sonhos com a realidade e realizar suas fantasias.

Já não tenho tantos sonhos e não realizei fantasias, o amor é pouco e a fé não existe. Papai e mamãe não me chamam, partiram, não vão mais voltar.

Labuto para terminar o livro sobre a Ação Popular e teimo em voltar para casa, mas não lembro o lugar.

*Texto inspirado em um revolucionário soviético, num dramaturgo alemão e nos adoráveis versos de um poeta paraibano

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