(Foto: Reprodução de parte da capa do Calendário 2012) |
Por Antonio Olavo – cineasta (Texto de abertura do Calendário 2012
sobre a revolta baiana de 1798, também chamada de Revolução dos Alfaiates,
Conjuração Baiana, Sedição de 1798 e Inconfidência Baiana. “Revolta dos Búzios”,
o filme, tem previsão de lançamento em 2013).
A
PORTFOLIUM Laboratório de Imagens está completando 20 anos. Tempo de muitas
realizações, frustrações e, sobretudo, resistência. Fundada em janeiro de 1992,
por mim e pelo fotógrafo Josias Santos, amigo de todas as horas, desde o início
trabalhamos com a linguagem visual (cinema, fotografia etc.), buscando contribuir
com a valorização da memória dos movimentos sociais, na Bahia e no Brasil.
Certamente que não tem sido fácil manter ativa e digna uma pequena empresa
ousada, cheia de sonhos e rebeldias, nestes tempos de domínio quase absoluto do
“mercado” e do “sistema”, novos eufemismos que denominam o velho e carcomido
capitalismo.
Contudo,
ao olhar para trás, o sentimento é de um imenso orgulho com o já produzido. Foram três filmes longa
metragem: Paixão e Guerra no Sertão de Canudos (1993), Quilombos da Bahia (2004)
e Abdias Nascimento Memória Negra (2008), já vistos por centenas de milhares de
pessoas, porquanto mais de 30.000 cópias numeradas circulam pelos rincões
afora, sendo exibidas frequentemente em espaços ávidos por boas imagens que
contam boas histórias: salas de cinema, escolas, bibliotecas, centros
culturais, associações comunitárias, terreiros de candomblé etc. Além dos
filmes longas (e outros curtas), promovemos muitos cursos de fotografia (na
saudosa época dos banhos químicos) e editamos livros, revistas e nove
Calendários de Parede.
Em
2012 a PORTFOLIUM apresenta um novo Calendário, desta feita com o tema Revolta
dos Búzios, que inspira um projeto mais abrangente, cuja ponta é um filme
documentário longa metragem, atualmente em fase de produção. A Revolta dos
Búzios, também chamada de Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana, Sedição
de 1798 e Inconfidência Baiana, é um movimento que ocorreu na Cidade do
Salvador, capital da Província da Bahia, no ano de 1798. Possui importância
ímpar para a história política do país, visto que já nesta época os
conspiradores baianos, influenciados pelas ideias iluministas da Revolução
Francesa (1789), planejaram um Levante que pretendia derrubar o Governo
Colonial, proclamar a independência e implantar uma República democrática,
livre da escravidão, onde haveria “igualdade entre os homens pretos, pardos e
brancos”.
Esta
“tentativa de independência do Brasil”, no dizer do historiador Braz do Amaral,
foi denunciada antes da deflagração e o governo instalou uma Devassa que,
durante 15 meses, convulsionou a cena política da Bahia, atingindo centenas de
pessoas com ameaças, interrogatórios, detenções, condenações de açoites
públicos, prisões, degredo perpétuo, e até a pena de morte, sentença máxima que
se abateu sobre quatro homens negros: os soldados Luiz Gonzaga (36 anos) e
Lucas Dantas (23 anos), e os alfaiates João de Deus (27 anos) e Manoel Faustino
(22 anos), enforcados e es-quartejados em 8 de novembro de 1799 na Praça da
Piedade, em Salvador.
Junto
a estes quatro mártires, temos o dever de consciência de acrescentar o nome de
Antonio José, escravo boleeiro de um tenente coronel, que ordenou sua prisão.
Antonio era homem ativo na conspiração e deu entrada na Cadeia Pública em 28 de
agosto de 1798. No dia seguinte, ainda cedo, foi encontrado morto em sua cela,
com um punhado de comida na boca e o corpo apresentando evidentes sinais de
envenenamento. A notícia da morte logo se espalhou na cidade e as muitas bocas
nas conversas diziam que Antonio foi assassinado para garantir o silêncio. O
fato é que a misteriosa morte de Antonio José jamais foi esclarecida e se
tornou mais um, entre os muitos enigmas do longo processo de Devassa. Antonio
José, portanto, é o quinto mártir da Revolta dos Búzios.
A
Revolta dos Búzios é uma história que precisa e merece ser conhecida mais
amplamente, saindo das sombras das efemérides oficiais. No seu estudo, tomamos
como principal fonte de pesquisa os “Autos da Devassa”, documento de inegável
valor histórico, com mais de 2.000 páginas escritas no “calor da hora”,
contendo o desdobramento minucioso da grande investigação que o governo mandou
proceder, após o surgimento dos “papéis revolucionários” em 12 de agosto de
1798. Estes “Autos” cobrem um período de agosto/1798 a novembro/1799 e são
transcrições de dezenas de sessões da Devassa, incluindo a íntegra dos
depoimentos de mais de 70 pessoas que foram interrogadas. Trata-se de um texto
viciado e absolutamente parcial, escrito por homens que integravam a estrutura
do poder colonial, comprometidos a priori com a condenação dos conspiradores,
acusados de crime de lesa-majestade. Contudo, dele se pode obter informações
valiosas, se lhes for dedicado uma “leitura a contrapelo”, como diria Walter
Benjamin.
Algo
novo na nossa história, diferente de outros movimentos separatistas da América
Portuguesa, a conspiração baiana de 1798 defendia as bandeiras da
Independência, que só viria em 1822, da República, proclamada apenas em 1889, e
avançava na defesa do fim da escravidão, conquistada somente no ano de 1888.
Isso nos leva a crer que, no Brasil atual, onde a população afrodescendente é
majoritária (50,74%, IBGE 2010), não é mais possível continuar desconhecendo
movimentos sociais protagonizados pelo povo negro, que teve grande importância
na formação histórica e política do país. É neste sentido que a realização
deste projeto contribui para preencher uma lacuna na história da Bahia e do
Brasil, que necessitam de iniciativas como esta, fundamentais para a afirmação
e consolidação da autoestima e identidade étnica de seu povo.
Sem
pretensão de análise, os textos do Calendário têm uma narração descritiva dos
acontecimentos, um esboço da tentativa de “esquartejamento” dos “Autos da
Devassa”, mais do que nunca necessário, para que a gente não fique falando do
que não conhece, contrapondo o ocultamento indesejado, a desinformação generalizada,
que, a despeito das boas intenções, produz danos históricos também graves.
Faço
um agradecimento especial à Secretaria da Educação do Estado da Bahia, que
adquiriu uma cota do calendário para distribuir nas escolas públicas e, assim,
possibilitou que o projeto fosse realizado. Às outras instituições (púbicas e
privadas) que não alcançaram esse entendimento..., não alcançaram. Mais
importante que isso foi o nosso desejo de contribuir com o desvelar de uma
história importante para a Bahia e o Brasil.
Agradeço
também as valiosas leituras críticas de Luciene Maria, Léa Costa Santana Dias,
Graça Leal e Sergio Guerra Filho, que contribuíram muito para reduzir as
imperfeições do trabalho. E aos sempre presentes Sergio Guerra, Josias Santos,
Raimundo Laranjeira e Raimundo Bujão, sem eles, eu não o faria.
Por
fim, dedico também este Calendário a minha linda flor Mariana Ayana, de seis
anos, idade/tempo que dediquei a conhecer a apaixonante Revolta dos Búzios.
(Quem quiser conhecer todo o calendário, clique aqui)
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