RAFAEL CORREA: “NÃO ESTAMOS ADMINISTRANDO UM SISTEMA: ESTAMOS MUDANDO UM SISTEMA”



Rafael Correa: "Vocês precisam entender que, por aqui, o poder ‘midiático’ foi, e provavelmente ainda é, muito maior que o poder político. De fato, o poder ‘midiático’ tem imenso poder político, em função de seus interesses, poder econômico, poder social. E, sobretudo, tem poder monopolístico para informar".

Entrevista do presidente do Equador concedida ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange, reproduzida do site do jornal Brasil de Fato, onde foi postada com o título “Comunicação e soberania no Equador”. O título acima é deste blog.

O presidente Rafael Correa, segundo os telegramas diplomáticos dos Estados Unidos que o WikiLeaks divulgou, é o presidente mais popular na história democrática do Equador.



Mesmo assim, em 2010, foi preso e feito refém, numa tentativa de golpe de Estado. A culpa pela tentativa de depô-lo, segundo ele mesmo conta, foram os meios de comunicação corruptos. Correa pôs em marcha uma polêmica contraofensiva. Na avaliação dele, os meios de comunicação definem as reformas que seriam as únicas possíveis, para os próprios meios. Confira trechos da entrevista do presidente do Equador concedida ao programa “The World Tomorrow”, da rede RT (Russia Today), do jornalista e fundador do Wikileaks, Julian Assange, que publicou, em 2010, inúmeros documentos sobre crimes de guerra cometidos na Guerra do Afeganistão e na Guerra do Iraque pelo Exército dos Estados Unidos.

Julian Assange – O que pensam os equatorianos sobre os Estados Unidos e o envolvimento do governo desse país no Equador e na América Latina?

Rafael Correa – Como disse Evo Morales [presidente da Bolívia], os Estados Unidos são o único país que pode ter certeza de que lá jamais haverá golpes de Estado, isso porque não há embaixada dos EUA nos EUA.

Seja como for, quero dizer que uma das razões do mal-estar é que nós cortamos todo o financiamento que a Embaixada dos EUA pagava à polícia no Equador. Era assim antes do nosso governo e continuou ainda, por um ano e pouco. Demoramos a corrigir isso. Os chefes policiais eram selecionados pelo Embaixador dos EUA e pagos por ele. Mas são tempos que não voltarão ao nosso país e aos nossos países.

Seu governo fechou a base militar dos Estados Unidos em Manta. Pode dizer-me por que decidiu isso?

Você aceitaria uma base militar estrangeira no seu país? Se é assunto tão simples, se não há problema algum em os EUA manterem uma base militar no Equador, ok, tudo bem: permitiremos que a base de inteligência permaneça no Equador, se os EUA permitirem que estabeleçamos uma base militar do Equador em Miami.

Presidente Correa, por que o senhor pediu que revelássemos [que WikiLeaks revelasse] todos os telegramas diplomáticos?

Porque quem nada deve nada teme. Nós nada temos a ocultar. De fato, os [telegramas divulgados por] WikiLeaks nos fortaleceram. A Embaixada dos EUA nos acusava (como se fosse crime) de sermos excessivamente nacionalistas e defendermos a soberania do governo equatoriano. E é claro que somos nacionalistas! E é claro que defendemos a soberania do Equador! E os WikiLeaks falavam de todos os interesses que os EUA haviam investido nos meios de comunicação no Equador, dos grupos de poder que marcavam hora para pedir ajuda em embaixadas estrangeiras.

Como foi, para o senhor, tratar com os chineses? É um país grande e poderoso. Ao negociar com os chineses, o senhor não estaria trocando um demônio, por outro?

Quando 60% de nosso comércio e grande parte de nossos investimentos estavam concentrados nos Estados Unidos, e não nos davam 20 centavos para financiar o desenvolvimento do país, ninguém reclamou de demônio algum, era como se não houvesse problema. Agora, quando somos o país que mais recebe investimentos chineses na região – e talvez porque os chineses não são altos, louros, de olhos azuis, viram demônios e tudo é problema. Chega disso!

Que bom que nos ajude para fazer aqui uma extração responsável de petróleo! Mas não recebemos financiamentos só da China. Recebemos financiamento russo, brasileiro, diversificamos nossos mercados e nossas fontes de financiamento. Mas há gente que nasceu no cabresto, com sela e rédea, e quer continuar com a dependência de sempre. É só isso.

Como o senhor sabe, luto, há muitos anos, a favor da liberdade de expressão, pelo direito de as pessoas se comunicarem, pelo dever de publicar e dar ao público informação verdadeira. O que o senhor fará, para que suas reformas não acabem com a liberdade de expressão?

Você mesmo é ótima mostra, Julian, de como é a imprensa, essas associações como a Sociedade Interamericana de Imprensa, que nada são além de um clube de donos de jornais na América Latina. Sobre seu WikiLeaks, publicaram-se muitos livros, o mais recente dos quais é de dois autores argentinos, no qual analisam país por país, Wiki Midia Leaks.

No caso do Equador, demonstra como, desavergonhadamente, os veículos não publicaram os telegramas que os prejudicavam. Por exemplo, disputas entre empresas de comunicações. E todos, afinal, decidiram não publicar suas próprias sujeiras, para não prejudicar nenhum deles.

Nós acreditamos que os únicos limites que devem pesar sobre a informação e a liberdade de expressão são os que já existam nos tratados internacionais, na Convenção Interamericana de Direitos Humanos: a honra e a reputação das pessoas; e a segurança das pessoas e do Estado. Quanto a todo o resto, quanto mais gente saiba de tudo, melhor.

Vocês precisam entender que, por aqui, o poder ‘midiático’ foi, e provavelmente ainda é, muito maior que o poder político. De fato, o poder ‘midiático’ tem imenso poder político, em função de seus interesses, poder econômico, poder social. E, sobretudo, tem poder monopolístico para informar.

Quando tomei posse na presidência, havia aqui sete canais de televisão nacionais. Nenhum público; todos privados. Cinco pertenciam a banqueiros. Imagine a situação: eu queria tomar uma medida contra os bancos, para evitar, por exemplo, a crise e os abusos que, hoje, todos estão vendo acontecer na Europa, sobretudo na Espanha. E houve uma campanha violentíssima, pela televisão, para defender os interesses dos banqueiros empresários donos das empresas, dos proprietários dessas cadeias de televisão, todos banqueiros.

O senhor não tem interesse em criar um sistema que permita o fácil acesso ao mercado editorial, de modo a que empresas jornalísticas editoriais pequenas e indivíduos sejam protegidos (não regulados) e as grandes empresas editoriais e grupos ‘midiáticos’ sejam separados e regulados?

Julian, estamos tentando fazer exatamente isso. Há mais de dois anos discute-se uma nova lei de comunicação, para dividir o espectro radioelétrico, quer dizer, o espectro para TV e rádio, para que só 1/3 seja privado com finalidades comerciais; 1/3 para propriedade comunitária; e 1/3 de propriedade do Estado – não só o governo nacional; também os governos locais, municipais, departamentais.

Mas a lei não avança. Há dois anos, apesar de haver ordem constitucional aprovada nas urnas em 2008, ratificada pelo povo equatoriano por consulta popular no ano passado, a nova lei foi e continua a ser sistematicamente bloqueada pelas grandes empresas, nos grandes veículos. Para eles, é “lei da mordaça”. Para eles e para deputados e senadores assalariados que as empresas mantêm, a soldo, na Assembleia Nacional, e que lá estão para defender aqueles interesses.  

O que estamos fazendo é claro: democratizar a informação, a comunicação social, a propriedade dos veículos e meios de comunicação. Por isso mesmo, obviamente, enfrentamos a acérrima oposição que nos fazem os proprietários dos veículos e meios de comunicação e dos seus corifeus alugados, que atuam em todo o espectro político no Equador.

Recentemente, entrevistei o presidente da Tunísia, e perguntei a ele se o surpreendera o pouco poder que os presidentes têm para mudar as coisas. O senhor também observou isso?

Muitos trabalham para satanizar os líderes políticos, porque uma das grandes crises pelas quais a América Latina passou nos anos de 1990, até o começo desse século, durante a longa e triste noite neoliberal, foi a crise de lideranças políticas.

Afinal, o que significa “ter liderança”, “ser líder”? Significa capacidade para influir sobre os demais. É claro que pode haver boas lideranças políticas, pessoas que usam a capacidade que têm para liderar, para servir a causa dos outros. E claro que também há maus líderes – dos quais, lamentavelmente, houve muitos na América Latina –, que utilizam a capacidade que têm, mas apenas para servir-se dos demais.

Entendo que os líderes são importantes sempre, mais ainda em processos de mudança. É possível imaginar a independência dos Estados Unidos, sem os comandantes que houve lá? Sem aqueles líderes?

É possível imaginar a reconstrução da Europa depois da II Guerra Mundial, sem os grandes líderes que houve lá? Contudo, quando se trata de fazer oposição às mudanças na América Latina, onde há líderes fortes, mas líderes democráticos e democratizantes, inventam logo que a liderança é caudilhista, populista; sempre má liderança, nunca boa liderança.

Essa liderança é ainda mais importante quando não se está administrando um sistema. Na América Latina, no Equador, hoje, não estamos administrando um sistema: estamos mudando um sistema. Porque o sistema que nos acompanhou ao longo de séculos foi fracasso total. Fez de nós a região de maior desigualdade no mundo, onde só a miséria é muita, a pobreza, e numa região que tem tudo para ser a região mais próspera do mundo. As coisas aqui não são como nos EUA.

Que diferença há entre republicanos e democratas, nos EUA? Há mais diferença entre o que eu penso pela manhã e o que eu penso à noite, do que entre um republicano e um democrata estadunidense. Isso acontece porque, lá, estão administrando um sistema.

Nós, aqui, estamos mudando um sistema. Aqui as lideranças são necessárias e importantes. Aqui, é indispensável que o poder seja legítimo e democrático, para que a mudança seja legítima e democrática, para que se mudem as estruturas e as instituições e a institucionalidade nos nossos países, agora em função das grandes maiorias.

Minha impressão é que o presidente Obama não é capaz de controlar as enormes forças que se movem à volta dele. Que força, afinal, é essa, que permite que o senhor faça algo, no Equador, que Obama não consegue fazer, nos Estados Unidos?

Permita-me começar pelo fim. O compromisso, as concessões, o consenso é desejável, mas não é um fim em si. Para mim, mais fácil seria conseguir algum consenso; chegaria mancando, cedendo, e satisfaria muita gente. Mas não mudaria coisa alguma. Satisfaria, principalmente, os poderes de fato nesse país. E tudo continuaria como antes. Há momentos em que o consenso é impossível. Às vezes, é necessário o confronto. Com a corrupção, por exemplo, não há consenso possível. A corrupção tem de ser enfrentada. O abuso do poder? Tem de ser enfrentado. Não há consenso possível, com a mentira; a mentira tem de ser desmascarada. Absolutamente não se pode fazer concessões a esses vícios sociais, tão graves para nossos países.

É erro imaginar que o que está sendo feito no Equador esteja sendo feito por mim. É erro. Os povos mudam, os países mudam. Não precisam de liderança para mudar. Talvez precisem de algum tipo de líder para coordenar. Mas se o país muda, é por vontade de todo o povo. Nosso governo foi levado ao poder pela indignação de todo o povo equatoriano.

Talvez aí esteja o que ainda falta, um pouquinho, ao povo norte-americano, para que o presidente Obama obtenha capacidade para promover mudanças reais no país. Que a indignação que já está nas ruas, esse “Occupy Wall Street”, esse protesto de cidadãos comuns, normais, contra o sistema, que ganhe impulso, que se torne mais orgânico, mais permanente. E que, nesse caso, dê forças ao presidente Obama para que possa fazer as mudanças pelas quais o sistema terá de passar, nos Estados Unidos. 

Tradução de Vila Vudu 

"Há muitos cânceres na sociedade que precisam ser extirpados", diz o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, em entrevista ao jornal Brasil de Fato. Para ler, clique aqui.

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