Por Marcos Bagno (foto) - Transcrito de sua coluna Falar Brasileiro, na revista Caros Amigos, edição 179, de fevereiro de 2012
Eu queria muito saber quem foi a pessoa alucinada que tirou do bolso do colete a regra estapafúrdia de que não se deve escrever “num”, “numa”, “nuns”, “numas”. Essa é mais uma daquelas prescrições sem sentido que infelizmente grassam no nosso ambiente escolar, nas salas de revisão das editoras, jornais, revistas etc. As contrações “num”, “numa”, “nuns”, “numas” existem no português há mais de 800 anos e sempre foram empregadas com toda a naturalidade pelos falantes e escritores da língua ao longo desse tempo todo. Agora, de repente, e só no Brasil, para todo lado é um tal de “em um”, “em uma” etc. Até nos textos que escrevo para uma revista de educação, quando saem publicados, aparecem sem meus “num” e “numa”, para minha ira profunda. Será que foi o mesmo paspalho que proibiu a expressão “risco de vida” dizendo que só pode ser “risco de morte”? Não, nem ele chegaria a tamanha estupidez...
Existe na nossa tradição escolar um vício pedagógico que infelizmente impera até hoje. É a mania de dizer aos alunos que evitem determinadas formas linguísticas e prefiram outras, porque aquelas são “coloquiais”, representam “interferências da fala na escrita” e outras bobagens do gênero. Um clássico dessa mania é mandar que os alunos eliminem os “que” de seus textos e substituam todos por “o qual”. O resultado disso fervilha, por exemplo, na internet: “a casa o qual moro”, “a empresa o qual trabalhei”, “as cidades o qual passei” e outros primores. A prescrição se limita a mandar substituir, mas sem nenhuma justificativa sólida, sem nenhuma explicação adequada de como e por quê usar esse pronome relativo.
Parece que nem mesmo esses docentes se dão conta de que “o qual” varia em gênero e em número e de que, muitas vezes, deve vir precedido de uma preposição, de modo que “as cidades pelas quais passei” é o que se esperaria de um texto bem escrito. Mas esse nem é o problema maior: o problema maior é achar que se escreve bem simplesmente pelo uso mecânico e irrefletido de certas palavras no lugar de outras. Isso também acontece com o uso de “mas”, que mandam substituir por “porém, contudo, entretanto, no entanto, todavia”, como se isso fosse possível sem alterar a coerência e a coesão do texto. Outra mania recente é a de usar o verbo “possuir” como uma espécie de substituto chique para o bom e velho “ter” ou, pior, como uma espécie de coringa para ocupar lugares que outros verbos mais precisos deveriam ocupar. Resultado: “o senhor possui filhos?”; “esse carro possui três anos de garantia”; “as mulheres possuem salários inferiores aos dos homens” e outros valha-me-deus desse tipo. Também se vê a torto e a direito o uso de “o mesmo” onde um simples “ele” daria conta do recado ou, então, pronome nenhum. E somos obrigados todos os dias a topar com a inexorável plaquinha que nos adverte: “Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado no andar”. Um clássico do juridiquês, que prima pela hipercorreção, isto é, o rebuscamento tão rebuscado que acaba incorrendo no erro puro e simples.
Por isso de agora em diante, meus caros e eventuais leitores, conclamo todos e cada um a lutar em favor da restauração do “num”, do “numa” etc. Vamos parar de encher os textos de supostas formas elegantes ao lado de verdadeiras catástrofes textuais, frases desconexas, pensamento truncado, vocabulário pífio e outras misérias da nossa educação ruim.
Contra a exclusão social
“MARCOS BAGNO (escritor, tradutor, linguista e professor da Universidade de Brasília) vem se tornando conhecido por sua luta contra a discriminação social por meio da linguagem. Para ele, o preconceito linguístico precisa ser reconhecido, denunciado e combatido, porque é uma das formas mais sutis e perversas de exclusão social. Por causa desta militância, MARCOS BAGNO vem recebendo amplo apoio de todos aqueles que desejam construir uma sociedade verdadeiramente democrática, governada pelo respeito às diferenças e pelo acesso aos bens culturais de prestígio”. (de www.marcosbagno.com.br )
Outra campanha em favor de “do”, “da”, etc
Conheci nosso linguista aí através da Caros Amigos, pra mim foi um grande achado. Há uns tempos atrás escrevi um e-mail pra ele:
“Tenho ojeriza ao uso de "de o" e "de a", no lugar de "do" e "da", coisa que se tornou moda nos últimos tempos nos nossos jornais e revistas (a Carta Capital, por exemplo, uma revista que sempre leio, adota esta coisa). Fica parecendo o espanhol, embora eles tenham o "del".
Acho esta coisa um absurdo, não sei se estou errado. Bem que você poderia dar uma comentada”.
Acho esta coisa um absurdo, não sei se estou errado. Bem que você poderia dar uma comentada”.
Ele me respondeu: “Sobre o "de o", "de a", também acho a maior babaquice do mundo. Na gramática do Bechara, ele dá uma bela explicação sobre o fenômeno da contração, homologando o uso de "do" e "da". Isso só comprova que os puristas querem ser mais realistas do que o rei”.
(...) língua errada do povo/língua certa do povo (...)
"A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada"
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada"
(Versos do poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira)
Quem quiser conhecer mais o nosso linguista é só clicar aqui.
Comentários