OS “DESAPARECIDOS” DO IMPÉRIO


(Foto: AFP/Reprodução do Página/12) 
Por Atilio A. Borón – cientista político argentino (Reproduzido do jornal argentino Página/12, edição de 14/01/2012)


Um artigo recente assinado por John Tirman, diretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês) e publicado no The Washington Post, alude a um aspecto pouco estudado das políticas de agressão do imperialismo: a indiferença da Casa Branca e da opinião pública em relação às vítimas das guerras desencadeadas pelos Estados Unidos. Como acadêmico “bem-pensante” ele se abstém de utilizar a categoria “imperialismo” como chave interpretativa da política exterior do seu país, mas sua análise revela claramente a necessidade de se apelar a esse conceito e à teoria que lhe dá sentido. Tirman expressa a preocupação que lhe suscita a incoerência em que incorreu Barack Obama – não esqueçamos, um Prêmio Nobel da Paz – quando em seu discurso pronunciado no Fort Bragg (14 de dezembro de 2011), para render homenagem aos soldados mortos no Iraque (uns 4.500, aproximadamente), não disse uma só palavra sobre as vítimas civis e militares iraquianas que morreram por causa da agressão norte-americana. O objetivo exclusivo dessa guerra, como a que ameaça iniciar contra o Irã, foi apoderar-se do petróleo iraquiano e estabelecer um controle territorial direto sobre essa estratégica zona no momento em que o abastecimento do produto deve ser feito confiando na eficácia dissuasiva das armas em lugar do que no século 18 se chamava “o doce comércio”.


Tirman recorda que as principais guerras que os Estados Unidos desencadearam desde o fim da Segunda Guerra Mundial – Coreia, Vietnam, Camboja, Laos, Iraque e Afeganistão – produziram, segundo suas próprias palavras, uma “colossal carnificina”. Uma estimativa que este autor qualifica como muito conservadora chega a um saldo pavoroso de pelo menos seis milhões de mortes causadas pela cruzada lançada por Washington para levar a liberdade e a democracia a esses infortunados países. Se se contassem operações militares de menor escala – como as invasões a Granada e Panamá, ou a intervenção apenas dissimulada da Casa Branca nas guerras civis da Nicarágua, El Salvador e Guatemala – a cifra se elevaria consideravelmente. Não obstante, e apesar das dimensões desta tragédia (às quais haveria que agregar os milhões de foragidos devido aos combates e à devastação sofrida pelos países agredidos), nem o governo nem a sociedade norte-americana têm demonstrado a menor curiosidade, preocupação, nem digamos compaixão!, para inteirar-se do ocorrido e fazer algo a respeito. Esses milhões de vítimas foram simplesmente apagados do registro oficial do governo e, pior ainda, da memória do povo norte-americano, mantido despudoradamente na ignorância ou submetido à deliberada tergiversação da informação. Como lugubremente reiterava o criminoso ditador argentino Jorge R. Videla, também para Barack Obama essas vítimas das guerras estadunidenses “não existem”, “desapareceram”, “não estão”.


Se o holocausto perpetrado por Adolf Hitler ao exterminar seis milhões de judeus fez com que seu regime fosse caracterizado como uma aberrante monstruosidade ou como uma estremecedora encarnação do mal, então que categoria teórica haveria de se usar para caracterizar os sucessivos governos dos Estados Unidos que semearam mortes em uma escala pelo menos igual, senão maior? Lamentavelmente nosso autor não se formula essa pergunta porque qualquer resposta poria em questão o crucial artigo de fé do credo norte-americano que assegura que os Estados Unidos são uma democracia. Mais ainda: que são a encarnação mais perfeita da “democracia” neste mundo. Observa com consternação, em troca, o desinteresse público pelo custo humano das guerras estadunidenses; indiferença reforçada pelo premeditado ocultamento que se faz daqueles mortos na volumosa produção de filmes, romances e documentários que têm por tema central a guerra; pelo silêncio da “imprensa independente” acerca desses massacres – recordar que, logo depois do Vietnam, a censura nas frentes de batalha é total e que não se pode mostrar vítimas civis e tampouco soldados norte-americanos feridos ou mortos; e porque as inúmeras pesquisas que diariamente se realizam nos Estados Unidos jamais perguntam sobre o tema.


Este pesado manto de silêncio se explica, segundo Tirman, pela persistência do que o historiador Richard Slotkin denominara o “mito da fronteira”, uma das constelações de sentido mais arraigada da cultura norte-americana, segundo a qual uma violência nobre e desinteressada – ou interessada só em produzir o bem – pode ser exercida sem culpa ou dores de consciência sobre os que se confrontam com o “destino manifesto” que Deus reservou para os norte-americanos e que, com piedosa gratidão, as notas de dólar recordam em cada uma de suas denominações. Somente “raças inferiores” ou “povos bárbaros” rechaçam os avanços da “civilização”. A violenta pilhagem sofrida pelos povos originários das Américas, tanto no Norte como no Sul, foi justificada por esse racista mito da fronteira e adocicada com infames mentiras. Na Argentina, a mentira foi denominar como “conquista do deserto” a ocupação territorial a sangue e fogo da terra, que não era precisamente um deserto, dos povos originários. No Chile, batizou-se como “a pacificação da Araucanía” a nada pacífica e sangrenta dominação do povo mapuche. No norte, o objeto da pilhagem e da conquista não foram as populações indígenas e sim uma fantasmagórica categoria, apenas um ponto cardeal: o Oeste. Em todos os casos, como anotara o historiador Osvaldo Bayer, a “barbárie” dos derrotados residia no seu... desconhecimento da propriedade privada!


Em suma: esta constelação de crenças – racista e classista até a medula – presidiu a fenomenal pilhagem de que foram vítimas os povos originários e liberou os pios cristãos que perpetraram o massacre de qualquer sentimento de culpa. Essa ideologia reaparece em nossos dias, claro que de forma transfigurada, para justificar o aniquilamento dos selvagens contemporâneos. Segue “oprimindo o cérebro dos vivos” e fomentando a indiferença popular ante os crimes do imperialismo. Com a incalculável contribuição da “indústria cultural” hoje a condição humana é negada aos palestinos, iraquianos, afegãos, árabes, afro-descendentes e aos povos que constituem 80% da população mundial.


Tirman conclui sua análise dizendo que esta indiferença ante os “danos colaterais” e os milhões de vítimas das aventuras militares do império afunda a credibilidade de Washington quando pretende erigir-se no campeão dos direitos humanos. Mas não é só a credibilidade de Washington que está em jogo. Mais grave ainda é o fato de que a apatia e o entorpecimento moral que invisibilizam a questão das vítimas garante a impunidade dos que perpetram crimes de lesa humanidade contra populações civis indefesas.


Não por casualidade os Estados Unidos têm guerreado incessantemente nos últimos 60 anos. Os preparativos para novas guerras estão à vista: começam com a satanização de líderes desafetos, apresentados ante a opinião pública como figuras despóticas, quase monstruosas; segue com intensas campanhas publicitárias de estigmatização de governos e povos desobedientes; em seguida vêm as condenações por supostas violações dos direitos humanos ou pela cumplicidade daqueles líderes e governos com o terrorismo internacional ou o narcotráfico, até que finalmente a CIA ou algum esquadrão especial das Forças Armadas se encarrega de fabricar um incidente que permita justificar perante a opinião pública mundial a intervenção dos Estados Unidos e seus compinchas para pôr fim a tanto mal. Nos tempos recentes isso se fez no Iraque e depois na Líbia. Na atualidade há dois países que atraem a maliciosa atenção do império: Irã e Venezuela, por pura casualidade donos de imensas reservas de petróleo.


Isto não significa que a funesta história do Iraque e da Líbia vá necessariamente se repetir, entre outras coisas porque, como observara Noam Chomsky, os Estados Unidos só atacam países débeis, quase indefesos, e isolados internacionalmente. Afortunadamente, nem Irã nem Venezuela se encontram nessa situação. De todo modo terão que estar alertas.


Tradução: Jadson Oliveira


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