GREVE DA PM: EM MEIO À “SELVAGERIA”, QUEREMOS A VOLTA DA “BARBÁRIE” JÁ TRADICIONAL


Greve aprovada em assembleia, dia 31, no Ginásio de Esportes dos bancários
(Foto: Reprodução da Internet)
Imagem do fim da greve: grupo posa após assembleia que acabou a
paralisação, dia 11 (Foto: Jadson Oliveira)
Análise da greve da Polícia Militar baiana, ocorrida de 31/janeiro a 11/fevereiro, datada de 7/fevereiro, portanto, durante a vigência da paralisação. É de autoria da Oposição Operária, articulação de esquerda que edita a revista semestral “Germinal”. O título original é “Nota da Oposição Operária sobre as greves das PMs”. Este blog adotou o título acima, manteve a maioria dos intertítulos e introduziu os destaques em negrito.


Há algo de novo no front???


Existem determinados momentos na história nos quais ações e movimentos específicos de determinados sujeitos reais e concretos conseguem carrear uma grande quantidade de contradições internas de maneira a expor elementos de uma composição social que, no cotidiano, passam muito distante da possibilidade de compreensão da maioria dos indivíduos.


No geral, esses momentos são percebidos como explosões do real, como a constituição de situações-limites nas quais aquilo que permanecia contido em determinados espaços institucionais, aplacado por componentes ideológicos e suportado em função da própria lógica do ordenamento da sociedade, ganha os contornos de um paradoxo irreconciliável. Quando esses momentos são levados ao paroxismo, promovendo fissuras na estrutura de poder e fazendo emergir novos projetos de sociabilidade, podemos estar diante da caracterização leninista do que seria uma situação revolucionária. Talvez tenhamos sinais de processos históricos com essas características no que ocorre hoje no Egito, talvez na Síria, na Grécia, Espanha e em diversos outros rincões do planeta... Talvez.


Distante de uma mobilização de tamanha envergadura, a sociedade brasileira tem vivido momentos que evidenciam o êxito do projeto de cooptação de parte significativa dos movimentos sociais e da prevalência da atuação sindical subordinada aos interesses corporativos, eleitoreiros e, não raro, a um carreirismo deslavado que leva antigos próceres das mobilizações sociais a defenderem com todo vigor as estruturas do Estado e a governabilidade do seu projeto político pessoal a serviço da manutenção da “lei e da ordem” e daquilo que eles mesmos pomposamente chamam de “Estado democrático de direito”. É mesmo curioso ver a manifestação de muitos que ainda têm a coragem de se dizerem “comunistas” (sic) defenderem fervorosamente as estruturas de poder que mantêm a sociedade burguesa sob a justificativa de que esse é o governo do seu partido ou do partido aliado aos seus interesses.


Assim é que nos parece bastante emblemática a eclosão dos movimentos grevistas entre policiais militares aqui no país. Deixando de lado a greve dos bombeiros militares do Rio de Janeiro no ano passado, na PM já houve greves nos estados do Maranhão, no Ceará e agora na Bahia. Há ainda a perspectiva de greve em Pernambuco, no Rio de Janeiro e no Paraná, dando conta de que existe uma mobilização que já ganha contornos nacionais, com bandeiras públicas que vão desde a que estabelece um piso salarial (a tal PEC 300) até a de uma desmilitarização das polícias.


Tropa do Exército e da Força Nacional de Segurança Pública no cerco ao
prédio da Assembleia, ocupado durante nove dias por PMs grevistas
(Foto: Reginaldo Ipê, da Tribuna da Bahia)
Homens do Exército no cerco à Assembleia (Foto: Reginaldo Ipê)
Embora as greves anteriores tenham características bem instigantes, a que ocorre agora na Bahia assume contornos mais expressivos e com um grau de repercussão bem mais amplo. Com uma semana da greve, os policiais militares do Estado da Bahia conseguiram explicitar várias nuanças da concertação social capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores e seus satélites em torno de um projeto político-eleitoral de governabilidade que procura manter sob a sua batuta os mais diversos movimentos organizados.


É forçoso reconhecer que para quem se coloca na perspectiva de construir um novo modelo de sociedade que ponha abaixo o padrão de acumulação do capital, uma greve que ocorre no seio do principal instrumento político de repressão, necessariamente traz consigo uma série de desafios. Para aqueles que seguem à risca tradicional cartilha do estruturalismo, bastaria dizer que os policiais compõem o aparelho de repressão do Estado e portanto jamais será possível vê-los como integrantes da classe trabalhadora. Logo, são, tão somente, a personificação da repressão burguesa e agem como uma espécie de autômatos, ou melhor, como avatares em defesa da propriedade e das relações de poder dos capitalistas.


Para outros oportunistas de escopo um pouco diferente, mas não menos daninhos, trata-se de aproveitar a onda e desgastar até onde for possível o projeto político eleitoral do governo, em busca de auferir dividendos eleitorais que lhes possibilitem galgar a condição dos atuais gerenciadores do Estado.


É exatamente por isso que essas greves, mesmo quando ocorrem em momentos de notório refluxo dos movimentos que questionam diretamente as relações de poder, possibilitam a exposição de variados elementos que integram a totalidade dessa nossa formação social.


Polícia e policial: história e subjetividades


Óbvio é reconhecer o papel da força policial enquanto instrumento de manutenção da “lei e da ordem” que, por sua vez, são a expressão política da hegemonia e da dominação de classes. O recente episódio da desocupação da comunidade do Pinheirinho é um grande exemplo do que isso representa. (Clique em Revista Germinal para ler sobre Pinheirinho). 

Soldado do Exército domina um grevista
em choques durante o cerco (Foto:
Reprodução da Internet) 
Grevista mostra coxa ferida por bala de borracha
atirada pelas tropas federais em choques durante
o cerco à Assembleia (Foto: Jadson Oliveira)
Entretanto, temos também que considerar que a manutenção das condições de opressão nesse tipo de sociedade passa pela necessidade de institucionalizar as desigualdades de classe, tornando as atividades repressivas uma expressão institucional dessa relação de poder. A contradição está em que: quem domina não pode fazer isso per si, daí tem que recrutar a personificação do aparato repressivo exatamente dentre aqueles que são o alvo potencial dos mecanismos de repressão. Assim, a denúncia das características particulares dessa condição opressão, não pode, por conta disso, negligenciar quem são os verdadeiros responsáveis pela imposição das condições opressivas.


Subjetivar a condição de classe daquele que é recrutado para fazer valer a dominação burguesa torna-se então uma necessidade e ao fazermos isso precisamos também notar as potencialidades dessa contradição. É fundamental que estejamos atentos para sempre denunciar a prática repressiva que se manifesta em nosso cotidiano, também por meio de relações étnico/raciais, de gênero, geração, orientação sexual, etc, mas, para além de uma emotividade irracional e baseada no senso comum ou naquilo que é só aparente num fenômeno bem mais complexo, é importante perceber que o exercício dessa prática, via de regra, escamoteia parte significativa dos elementos que sustentam essa repressão. Vemos bem claro o policial que joga bombas de gás, o que espanca, e o que mata, mas não vemos tão facilmente assim o que está por detrás da sua condição de existência.


Queremos dizer com isso que da mesma forma que a condição de vendedor da força de trabalho não revela toda a potencialidade analítica da atuação do policial, também a sua condição de agente das forças de repressão não é capaz de sintetizar a sua subjetividade histórica. É preciso problematizar esses elementos, afinal, é muito mais provável que, num futuro não muito distante tenhamos que contar com algumas deserções a fim de levarmos adiante um processo de transformação revolucionária da sociedade.


Mote para exposição do verdadeiro teatro do absurdo

Em meio às consequências da greve dos policiais, tornou-se comum o clamor pela volta da “normalidade” e pelo restabelecimento da rotina nas ruas das cidades. O que impressiona é que os dados apresentados como referências para essa rotina evidenciam a barbárie social já instalada em meio a um cotidiano sem nenhum sentido.


Os números oficiais divulgados até dia 06 de fevereiro dão conta de 92 homicídios ocorridos só na Região Metropolitana de Salvador desde o início da greve. Sem sombra de dúvidas um número escabroso que torna justificável o clima de tensão, pânico e terror verificado nesses dias. Mas, sem desconsiderar a densidade da ocasião, o que mais espanta é que o “estado de normalidade” pretendido pelos que preconizam o fim da “anomia” atual aponta para os 171 homicídios ocorridos em todo o mês de fevereiro no ano passado. Poderia até ser um mote para exposição do nosso verdadeiro teatro do absurdo.


Grevistas manifestam-se de armas em
punho (Foto: Reprodução da Internet)
PM mascarado nas manifestações dos grevistas durante o cerco
(Foto: Jadson Oliveira)
Isso para não falar do que representa a “normalidade” cotidiana da atuação policial nas periferias e comunidades populares para fazer valer as relações de poder instituídas, por meio das quais trabalhadores, mulheres, negros, homossexuais, velhos e crianças percebem a sua condição de inserção social.


As ações de greve


Mais um dos paradoxos produzidos pelo movimento grevista diz respeito à reação de muitos indivíduos quanto ao caráter de algumas das ações que vêm sendo tomadas pelos policiais, muitas delas capitalizadas a partir da inserção dos tradicionais veículos de comunicação que, com o apoio do governo, procuram criminalizar os grevistas.


A primeira delas foi quanto ao uso das armas de fogo durante a greve. Nesse caso é interessante notar que o Brasil talvez seja um dos países mais condescendentes com o porte e a utilização de armas por policiais. É comum vermos soldados portando pistolas, fuzis e metralhadoras transitando ao nosso redor com a justificativa de que é preciso acompanhar o aparelhamento dos criminosos. Poucos são os que se questionam quanto ao número de cidadãos, bandidos ou não, assassinados nos chamados “autos de resistência”, mas agora, como expressão de uma hipocrisia redentora, é imperioso questionar a chamada “greve armada”.


Outro momento significativo dessa caracterização é o da tomada dos ônibus utilizados para interromper o tráfego. Mais uma vez o objetivo é inverter a posição de algoz. Não se questiona o fato do Estado expedir mandados de prisão contra as lideranças do movimento, bloquear contas bancárias e implantar espiões inclusive virtuais, mas, é inadmissível que eles queiram bloquear o trânsito usando as armas de que dispõem.


Por último, disseminou-se a versão de que os policiais acampados no prédio da Assembleia Legislativa seriam “covardes” na medida em que estariam se utilizando de mulheres e crianças como escudo. Mais uma vez os papéis são trocados de maneira deliberada. Ao invés de questionar a atuação das forças que promoveram o cerco ao prédio, haja vista que sabidamente lá já estavam acampadas as mulheres e crianças, a irresponsabilidade foi atribuída aos grevistas. Note-se ainda que entre os policiais militares é comum a participação de familiares em entidades de classe, na medida em que a participação dos próprios é, no mais das vezes, vista de maneira deletéria pela instituição. Além do que, quem participa de movimentos desse tipo sabe que é muito recorrente a participação da família em acampamentos e ocupações de prédios públicos.


A greve e seus limites políticos


Nós da Oposição Operária já de muito vimos denunciando a imposição de limites às greves organizadas e dirigidas pelo movimento sindical. Temos buscado caracterizar o que representa a forma sindicato enquanto uma expressão oficial e institucionalizada do Estado em meio às mobilizações dos trabalhadores, que ao invés de potencializar a sua disposição de luta procura conter os ímpetos e domesticar os enfrentamentos de classe, levando-os sempre a trilhar pelo caminho “da lei e da ordem”.


Grevistas entram em forma para cantar o Hino Nacional em apoio aos colegas
acampados na Assembleia Legislativa (Foto: Jadson Oliveira)
Pastores evangélicos fazem orações em favor dos PMs em greve na área
em torno do Legislativo, no Centro Administrativo (Foto:Jadson Oliveira)
Embora as greves dos policiais militares não contem com os sindicatos em seus calcanhares nada nos leva a crer que o movimento possa superar os limites de uma luta corporativista que coloque em discussão, por exemplo, qual o papel, a que e a quem serve uma força repressiva como a polícia militar. Menos ainda aparecem na pauta do movimento propostas históricas como as de dissolução das polícias e de formação de milícias populares. Parece que ainda estamos um tanto distantes desse tipo de organização comunal.


É claro que por si só, a greve já constitui um grande manancial de aprendizagem acerca de como a sociedade se organiza, quais são as suas prioridades e quem são as suas personas, mas, nem por isso a nossa análise nos autoriza a esperar mais do que escaramuças localizadas e uma disputa acirrada entre o governo e as oposições quanto aos possíveis resultados eleitorais dessa contenda.


Por fim, percebendo todas as potencialidades que têm as contradições em curso, manifestamos o nosso repúdio a qualquer tentativa de imputar quaisquer retaliações aos grevistas, bem como nos colocamos solidários às suas reivindicações por melhores salários.


(Este artigo me foi enviado pelo companheiro Goiano (José Donizette), velho militante da esquerda, ex-dirigente sindical dos bancários e atualmente da coordenação do Projeto Velame Vivo (PVV), movimento social/cultural de Seabra/Chapada Diamantina, interior da Bahia).

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