ANEXO 2 da entrevista exclusiva concedida a este blog por Edmilson Carvalho, professor de Economia Política e velho militante da esquerda, e postada aqui em 21/11/2011 com o título “O marxismo de Marx e Engels nunca existiu para o proletariado brasileiro” (para saber mais sobre Edmilson, ver abertura da entrevista). O título acima é de autoria deste blog. Diante da pergunta: “Há hoje no Brasil algum partido político, com alguma visibilidade pública, que pode ser considerado ‘de esquerda’? Seria apropriado considerar partidos, a exemplo de PT e PC do B, como ‘de esquerda’ ou ‘de centro-esquerda’?”, ele escreveu o texto abaixo:
Depende do que entendemos por “esquerda”. Para que possamos chegar a um termo e alcançar algum êxito, convém que partamos de alguma referência, de alguns pressupostos. E eis que o primeiro deles é exatamente definirmos o que entendemos por esquerda, vale dizer, o que entendemos por um homem de “esquerda”, um partido de “esquerda” e/ou uma proposta ou postura de “esquerda”-- neste último caso procurando configurar qual o conteúdo da proposta, a quem cabe propor, a quem se deve propor e como deve ser encaminhada a proposta.
Antes de entrar no método mais sério de operar classificações dessa ordem, nos seja permitida uma breve digressão para maior esclarecimento ao leitor. O abominável senso comum, quando presente no pensamento de muitos intelectuais, e que afirma que determinado partido, tomado seja o PSDB como exemplo, é um partido de “centro-esquerda” porque se situa “à esquerda” do DEM, por exemplo, esquece que o PSDB, quando esteve no governo, com FHC, foi o pioneiro desbravador dos caminhos que iriam consolidar a implantação da reestruturação produtiva e da sua cara política, o neoliberalismo no Brasil, retomando a construção dos primeiros tijolos do governo Collor de Melo.
Desde quando um partido que advoga e, mais do que isso, que implanta, concebe e objetiva uma versão tão fiel do ideário neoliberal, o projeto das camadas mais podres e mais retrógradas do capital, tem o direito de escapar de ser um partido de direita, melhor dizendo de “direitona”?
Sem que estejamos nos enredando em “enrolações” puramente semânticas, talvez o melhor meio de definir o enquadramento político e ideológico de “coisas” como o PSDB consista em localizá-las a partir da direita, ou seja, por exemplo, afirmando que o DEM é o partido de direita mais reacionário existente no Brasil - que é, de fato, como o senso comum opera suas definições. Talvez a partir daí poder-se-ia classificar os demais partidos de direita deste país tomando como base as suas linhas políticas de fato como linhas de direita mesmo - porém sem deixar de mencionar que aquele plus de “democracia” praticada pelo PSDB não significará jamais que a sua proposta se afaste um só centímetro da proposta do DEM.
É neste exato sentido que se pode afirmar que o PT é o partido mais caracteristicamente de direita existente no Brasil, de vez que toda a corrupção por sua gente posta em pratica para que seus quadros pudessem encher os bolsos nunca foi uma pratica de esquerda, mas de “esquerda”, com certeza, sim; de vez que também inventou uma “engenharia” com a qual favoreceu ao grande capital, o bancário e financeiro em primeiro plano, enquanto que ganhava as benesses do Governo para que recursos fossem reunidos num fundão de assistência a grandes empresas e bancos desde o ano da graça de 2008 até o dia de hoje.
Uma outra maneira que poderia ser empregada, para caracterização de posições ideológicas, seria a que abordaremos, a seguir, desdobrável em duas vertentes: uma, que toma como referência a suposta posição de esquerda e que faz derivar as posições dos demais partidos numa base que se assemelha a uma classificação matemática mais ou menos assim: Partido A: partido com uma linha política de direita em 100%; Partido B: partido com, digamos, só para ilustrar, 30% de tendência à “esquerda” e os demais caracteres, em 70%, de caracteres de direita. Talvez que, nesta classificação tão marota quanto a outra, um terceiro partido com, digamos, 50% de caracteres de “esquerda”, portanto, também 50% de caracteres de “direita”, seria aquele partido a quem a imprensa classificaria como um partido de “centro-esquerda.”
Depois de verificar como o senso comum recomenda um palatável “método” classificatório de posições partidárias e de celebridades da política nacional, devemos deixar de lado o lamaçal no qual se movem políticos e intelectuais orgânicos da ordem, para tecermos uma análise, aqui sim, em absoluto contraste com as verificações realizadas pelo senso comum. Contudo, deveremos abordar esse tema mais adiante, na medida em que nele possamos esclarecer ou ilustrar os nossos pontos de vista.
Reciprocamente, todos que se afastarem da efetiva proposta de Marx, Engels e seguidores próximos seus, e que lutem contra ela - (reforcemos: que é, afinal, em suas linhas essenciais, as propostas que combatem a proposta de socialismo de Marx, Engels e Lênin) -, não importa com que argumentos, com todas as definições que ocultem o socialismo com promessas de uma conquista fácil do poder - por meio da disputa de cadeiras que alcancem no parlamento burguês, por meio da ocupação de cargos no Estado burguês, dos votos ganhos e a serem mais disputados, para que candidatos “comunistas” sejam eleitos para o exercício não do poder do proletariado, mas, exatamente ao contrario, nos termos de uma proposta cujo caráter é e só pode ser reformista, certamente de um mero governo (que vai falar, agir, governar com e para a burguesia); então, no seio de uma tal proposta não há como escapar: estamos envoltos numa perspectiva reformista, que é, de resto, o que aconteceu na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) tão logo o PCUS (Partido Comunista da União Soviética) tomou o poder e num complexo de impossibilidades e ambiguidades que tornou impossível construir uma sociedade socialista (1).
Nada mais estranho a essa estratégia “revolucionária” do que os programas de praticamente todos os partidos ditos de “esquerda” naquela região da Ásia, África, América Latina e da Europa e até nos Estados Unidos - e então praticamente todos os partidos comunistas do mundo inteiro tenderam a implementar uma estratégia ditada agora pela III IC (Internacional Comunista) e pelo PCUS, que era do interesse da URSS e dos aliados de 1945. Uma coisa é certa: daí por diante não se viu uma só experiência de tentativa de implementar um só caso, de uma só experiência de revolução autenticamente proletária.
Aliás, pensamos que certamente haja uma exceção, a tentativa do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), numa linha de alianças bastante problemáticas, que, não obstante tão poucos “prós” e tão muitos “contras”, ousou levar a cabo um projeto socialista no embalo da Guerra Civil Espanhola e teve de amargar uma derrota militar encabeçada pelo próprio stalinismo e pelas forças republicanas.
A derrota das esquerdas durante o século XX foi de tal ordem que nem em países de um forte campesinato e de uma quase nula capacidade de o proletariado se impor como classe dotada de uma proposta socialista, e nem em países que já contavam com um perfil de capitalismo industrial, com um proletariado capaz de encampar uma saída muito diferente do padrão “soviético”, de “guerra popular”, de “cerco da cidade pelo campo” e de outras miragens. Com a hegemonia das propostas camponesas, até países como o Brasil, com um perfil industrial indisfarçável, com um operariado numeroso e urbanizado, continuaram as propostas que colocavam em prática uma estratégia ditada agora pela III IC e pelo PCUS, que era do interesse da URSS e dos aliados de 1945 e que estranhamente não falava do proletariado como a classe líder da revolução socialista, posto que era usurpado pelos camponeses e/ou pelas burguesias nacionais.
Daí por diante, não se viu uma só tentativa de implementação de uma estratégia proletária. O que se viu foram as inúmeras intervenções de dirigentes que, cedendo ao dogma, tentam abrir caminhos com uma guerrilha - um foco “desdobrável” numa “guerra popular prolongada”, como se países como Argentina, México, o próprio Brasil, com um proletariado fabril já apto como um fato objetivo para encamparem uma proposta à sua imagem, tivessem de se resignar a encarar uma revolução rebaixada a partir de uma concepção acochambrada, com uma forma ideológica de caráter eclético feita da fusão guevarismo/maoísmo.
Estamos a falar obviamente da Guerrilha do Araguaia, exemplar emblemático do foquismo/guerra popular de Régis Debray/Mao tse-Tung, implementada a milhares de quilômetros distantes das maiores concentrações fabris, com destaque para o operariado do ABC paulista, que poucos anos mais à frente iria dar um berro como se pretendesse acordar a todos que tinham lançado equívocos atrás de equívocos a seu respeito. Aqui, todos os que tinham uma disposição revolucionária, mas que, incapazes de romper com tal concepção, foram pagar com suas vidas as coisas erradas que dirigentes, cuja leitura de Marx - e mesmo de Lênin - não passava das “teses sobre Feuerbach”, mostraram que apenas “conheciam” Marx através da leitura de Stalin e de orelhas de livros ditos “marxistas-leninistas” publicados pela Academia de Ciências da URSS.
O que é certo é que o marxismo de Karl Marx e Frederich Engels nunca existiu para o proletariado brasileiro, o que equivale a dizer que o marxismo de Marx nunca foi servido às organizações operárias neste país.
De 1922 até a década de 1970, quando a “tradição de 22” foi a que se manteve na hegemonia, o que foi ser tomado por marxismo, mas que foi, assim mesmo, tomado com o cuidado de aparentar marxismo, à base de citações de um Marx simplificado, desfigurado, operador de estereótipos, bordões e chavões, de um esqueleto ossificado que constituía a ideologia do capitalismo de Estado. Depois da desfiguração do stalinismo, é chegada a hora de a burguesia brasileira, seguindo os passos das nações européias, adotar uma concepção muito mais sutil, a ideologia social-democrata - uma concepção que fez sua vernisage com o taylorismo-fordismo, nos anos1940-1975, ou seja, a partir dos anos 1950, na Alemanha, e que foi de extrema importância na ajuda aos Estados europeus: a social-democracia. E mais, como uma concepção que, combinada com outros ingredientes, foi uma das principais responsáveis pelos badalados “30 anos de ouro do capital”, adotada por vários governos da Europa e de outras regiões do Globo.
Depois disso ocorreu a grande crise dos anos 1970, que pôs em nocaute o formato social-democrata de Estado e que exigia, da parte do Estado do Capital, um amplo leque de medidas que deveriam apoiar a economia que se via às voltas com a ideologia de Estado para uma tarefa que não se cumpriria: o neoliberalismo no Estado haveria de ser a política de Estado adequada ao toyotismo - reestruturação produtiva - na economia.
Depois deste vistazo no conjunto podemos corroborar a tese da ausência de qualquer traço de marxismo na formação do proletariado brasileiro e que não houve uma só organização partidária que privilegiasse o proletariado nas suas operações de recrutamento e de formação desses operários (2).
Devemos então retomar o rumo da análise do texto e já na abordagem final da resposta a que nos foi creditada pelo editor.
Então se infere que nenhum traço das concepções de Marx, Engels e Lênin, numa circunstância na qual o exercício de critica e de exigência dos trabalhadores não existia e que, portanto, o clima para toda manipulação ideológica estava dado, é notório que: PCB (Partido Comunista Brasileiro), PC do B (Partido Comunista do Brasil), PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), o natimorto PRC (Partido Revolucionário Comunista), a AP (Ação Popular) e todas as pequenas frações desprendidas das lutas internas dessas organizações em 1967 e que foram constituir-se como grupos guerrilheiros e promotores de ações de imenso impacto na mídia, em nenhum desses casos houve qualquer semelhança com a proposta de Marx. É, pois, na aridez da militância stalinista, com uma nova frente (“fria”?) trazendo uma “nova” concepção que vai hegemonizar o movimento.
Esses fatos conduzem a pensar que é justo chamar de revolucionárias ou de esquerda ou de centro-esquerda aquelas forças ou simplesmente mostrar que distribuir slogans de esquerda, centro-esquerda, pode assegurar para quem, como foi a maioria dos que pegaram em armas, um título de revolucionários?
Lembrar que, de fato, todos os militantes que pegaram em armas podem ser divididos em três segmentos:
a) Os que morreram por terem inadvertidamente entrado nas arapucas armadas por cidadãos que, por misturar propostas ideológicas com incompetência política, deviam ser desnudados como merecem, etc, etc;
b) E tem ainda os que, depois de apagados os fatos, voltam-se para a Academia, investidos de toda a parafernália de paramentos, tratamentos, gestos e muitas outras filigranas do glamour acadêmico. Ou então se lançam a devorar cargos com uma gana enorme e que, no governo, se apresentam com ideologias abomináveis, convivendo com aquele tipo de gente e de instituições – BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), empresas, bancos, etc -, com as quais comungam e convivem muito bem;
c) Por fim existem ainda, que são poucos, os que romperam de fato com o cerco imposto por stalinistas, maoístas e foquistas, e que hoje se encontram espalhados pelo país, solitários e/ou articulados em pequenos grupos, que constituem parte substancial dos que estão devorando as obras de Marx, Lukacs, fazendo coro com todas as pessoas que justificam a excelente pletora de obras desses dois baluartes do pensamento marxista.
(1) As ambiguidades é que levaram às deformações implantadas por Lênin e Trotski, que tinham esperança de revogá-las assim que a marcha da revolução o permitisse. O acúmulo de contradições, no entanto, atropelou o processo revolucionário, tornando definitivas as medidas adotadas como provisórias. Assim, a diferença de fundo que existia entre Lênin/Trotsky e Stalin consistia em que, com uma revolução nas mãos, tentando salvar o selo “socialista” em condições adversas, como as de ver-se em confronto com um isolamento que era impedimento cabal, aquela organização passou a sobreviver com ambiguidades crescentes, em cuja orientação cabiam soluções de emergência e que, sendo provisórias, podiam ser revistas assim que as condições e circunstâncias criadas pela própria revolução o permitissem. Até a sua morte prematura, Lênin debateu-se com tais problemas, expondo com clareza as dificuldades, abrindo-se à autocrítica e lutando com todas as suas forças para reverter um processo àquela altura simplesmente inviável.
Stalin - e a burocracia que o sustentava e que era sustentada pelo mesmo stalinismo -, pondo de lado as ambiguidades que assomavam, assumiu o capitalismo de Estado que ele herdou, manipulou sem qualquer constrangimento com a falsa “teoria” da possibilidade de implantação do socialismo num só país, com uma política de terror que diferia em tudo por tudo da posta em prática pelos velhos bolcheviques. Por exemplo, Lênin sempre argumentava, até a exaustão, contra os adversários da revolução, não havendo notícia de um só caso daquilo que viria a ser rotina durante o império stalinista: cortar as ideias de todos seus críticos cortando as cabeças dos portadores de tais ideias.
(2) Abro uma única exceção para a POLOP (Política Operária), organização marxista, mas que, contra tudo e contra todos, não logrou viver por um tempo suficiente para deitar raízes profundas no seio da classe operária. Diante das propostas da POLOP, as chamadas “esquerdas” que dominavam o cenário político da “esquerda”, em geral se limitavam ao sempre velho e gasto chavão: a POLOP era, para elas, um grupamento “trotskista” e ponto final.
Aliás, dentro do PC do B, por exemplo, a adjetivação ganhava status de negação universal. A reação preconceituosa punha um ponto final na discussão no momento mesmo em que deveria iniciar o debate. Sem discutir o que era o trotskismo, a adjetivação passou a ser característica de toda e qualquer forma de oposição, mesmo que a oposição não fosse endereçada às posições programáticas. O recurso à adjetivação, recurso na mais estreita formulação stalinista, tinha por desiderato negar o mínimo debate no interior das organizações - e ser trotskista equivalia a “queimar” todo aquele indivíduo, grupo ou partido que, trotskista ou não, ousasse se colocar em linha de choque com a essência de uma linha cujos contornos podiam mudar - e mudavam sempre - de acordo com as circunstâncias. Assim, as cúpulas partidárias não tinham qualquer embaraço à troca de concepção e a justificação era a coisa mais tranquila do mundo: bastava negar qualquer filiação à concepção negada por força de uma mudança qualquer posta por circunstâncias meramente conjunturais. Organizações ditas “marxistas-leninistas” podiam até misturar stalinismo com maoísmo e foquismo sem qualquer constrangimento, afirmando se tratar de “marxismo-leninismo”, sem qualquer demonstração ou satisfação para seu público interno ou externo.
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