O PASSADO QUE A ARGENTINA ENFRENTA COM A CORAGEM QUE O BRASIL NÃO TEM (“Juro pela pátria, por minha mãe e pelos 30 mil desaparecidos”)
Por Luiz Cláudio Cunha – Especial para Sul 21 (Reproduzido de Luis Nassif Online, com o título principal “Como a Argentina enfrenta o passado, por Luiz Cláudio Cunha”, postagem de 24/01/2012 – Por Marco Antonio L. – Do Sul 21)
A frase inesperada congelou a plateia colorida de azul, branco e marrom cáqui que lotava na segunda-feira, 12 de dezembro, o Salão San Martín, o espaço nobre do Edifício Libertador, sede do comando do Exército em Buenos Aires. Perfilados diante do ministro da Defesa, Arturo Puricelli, os brigadeiros, almirantes e generais do Alto Comando das Forças Armadas argentinas ouviram, crispados, a sentença súbita e cortante da autoridade que subvertia o rígido protocolo castrense:
Forti: "Juro por la pátria, mi madre y los 30 mil desaparecidos" |
Nélida Azucena Sosa de Forti: presa no avião quando saía do país com os 6 filhos |
Fugindo do clima político cada vez mais fechado do país, desde o golpe militar desfechado um ano antes, Azucena levava consigo os seis filhos, de 6 a 16 anos, incluindo Alfredo, o mais velho. Já com os cintos afivelados para a decolagem, tiveram que desembarcar, chamados de repente para resolver ‘problemas de documentação’. A mãe e as crianças foram recebidas por agentes armados da polícia de Buenos Aires, subordinada ao Primeiro Corpo de Exército. Com os olhos vendados, foram colocadas em dois carros e levadas para o Pozo de Quilmes, um quartel da Brigada de Investigações da polícia localizado numa cidade da região metropolitana, ao sul da capital.
Faca no voo
Forti para Bussi: "Não tenho problema nenhum em cravar a faca cinco vezes em você. Mas a formação que recebi de minha mãe me diz que esta não seria a maneira certa" |
Azucena foi vista com vida, pela última vez, no centro clandestino de detenção conhecido como Arsenales, na saída norte da cidade, onde funcionava a Companhia de Arsenais Miguel de Azcuénaga, da V Brigada de Infantaria. Era um típico campo de concentração, cercado por duas cercas de alambrado separadas por uma faixa de terra vigiada por soldados e cães e altas torres de sentinelas.
Alfredo Forti e seus cinco irmãos nunca mais tiveram notícias de Azucena. No final da década de 1990, advogado com banca em Washington e consagrado assessor político dos governos do Peru, Equador e Guatemala, ele descobriu que dividia casualmente o mesmo voo da Aerolíneas com o algoz de sua mãe, Bussi, então um septuagenário general reformado. Naqueles tempos, a refeição era servida com talheres de metal, não de plástico. Em pleno voo, Forti deixou sua poltrona e foi até onde se sentava o general. Sem se apresentar, inclinou-se sobre ele, entreabriu o paletó e lhe disse:
— Estás vendo esta faca? Não tenho problema nenhum em cravá-la cinco vezes em você. Mas a formação que recebi de minha mãe me diz que esta não seria a maneira certa de resolver as coisas. Eu quero te ver apodrecer no cárcere! — amaldiçoou Forti, deixando para trás, tremendo, o homem que fazia a Argentina estremecer na década de 1970.
Caso americano
O nome de Bussi fazia abalar o prestígio da Argentina até nos Estados Unidos, no auge da ditadura. O National Security Archive da Universidade George Washington revelou, em 2002, o conteúdo de 4.600 documentos secretos do Departamento de Estado que abordavam violações de direitos humanos no país. O telegrama 04997 que a Embaixada em Buenos Aires enviou a Washington, no dia 29 de junho de 1978, relacionava os nomes de 103 pessoas das quais o governo norte-americano exigia informações. Um dos “casos de direitos humanos de interesse para os Estados Unidos” era o nº 71-77-5, de Nélida Azucena Sosa de Forti, com o status de “desaparecida”.
Azucena e milhares de compatriotas começam a desaparecer quando emerge, no mapa argentino, a sinistra figura do CCD. É a sigla dos Centros Clandestinos de Detenção, instalações secretas das Forças Armadas para executar o mesmo plano que Adolf Hitler, em 1941, batizou poeticamente de Nacht und Nebel (Noite e Névoa): um projeto de Estado para o desaparecimento de opositores ao regime. Os generais argentinos, como seus confrades nazistas, programaram a eliminação física dos dissidentes numa operação que começava com os sequestros, geralmente sob o manto da noite, e depois se completava pela névoa do desaparecimento sem pistas, sem rastros.
Havia método na loucura, como bradava Hamlet. Os CCD, apesar das diferenças, tinham uma estrutura básica e eficiente: uma ou duas salas de tortura, espaço amplo e indecente para receber os presos e alojamento decente para abrigar os guardas e torturadores. Todos tinham serviço médico e, em alguns casos, até um capelão para atender a consciência pesada dos mantenedores da ordem.
Inspiração brasileira
Começaram em meados da década de 1970 como pequenas casas ou porões clandestinos e, à medida que endurecia o regime, cresciam os CCD, espalhados pelos maiores quartéis do país, todos engolfados no turbilhão da tortura. Em 1976, ano do golpe de 24 de março, 610 CCD assombravam o país. Havia 68 deles só na província de Buenos Aires, 13 apenas na capital — incluindo os temidos CCD da ESMA, a temida Escola de Mecânica da Armada, e do Campo de Mayo, o maior quartel do país.
Bussi: uma das mais terríveis faces da repressão argentina |
A receita brasileira surgiu bem antes, em 1969, com a modelar OBAN, a Operação Bandeirante do II Exército, em São Paulo, que inovou unindo inteligência e violência das Forças Armadas, da Polícia Militar e dos policiais mais truculentos das delegacias da capital, onde despontou a liderança do delegado Sérgio Fleury, que se tornaria o símbolo internacional da repressão brasileira como estrela maior do DOPS.
Um ano depois, a fórmula de sucesso foi definitivamente militarizada, sob o comando do Exército, com a criação dos Destacamentos de Operações de Informações, os DOI do serviço sujo, que saíam às ruas para combater, sequestrar e torturar os militantes da guerrilha urbana. Eram coordenados pelos Centros de Operações de Defesa Interna, os CODI. Nascia a marca mais letal do regime brasileiro: os DOI-CODI, parceria macabra que se estendia pelos dez mais importantes comandos militares do país, nas grandes capitais.
Essa dezena de repartições públicas do terror, na estimativa do historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de Como eles agiam — os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política (ed. Record, 2001), abrigava cerca de 1.000 pessoas diretamente envolvidas com a repressão e a tortura — a quinta parte do efetivo do SNI, 5.000 arapongas, no auge do Governo Figueiredo. Antecipando os CCD argentinos, os militares brasileiros ainda montaram sete centros clandestinos de tortura em cinco Estados diferentes.
Hilton e Sheraton
Doi-Codi Hilton e CCD Sheraton, maus locais de hospedagem |
Os DOI-CODI mais importantes estavam nas duas maiores cidades brasileiras. O do Rio de Janeiro, instalado no quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, registrou 735 denúncias de torturas, segundo o projeto Brasil Nunca Mais. Num espaço de 21 meses, entre julho de 1972 e março de 1974, quando o I Exército era comandado pelo general linha-dura Sylvio Frota, morreram ali 29 presos. O maior e mais notório DOI-CODI do país era o de São Paulo, com 250 homens da PM e da polícia civil, integrado ainda por 10 oficiais do Exército, 25 sargentos e cinco cabos sob o comando de seu fundador, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Ele redesenhou o 36º Distrito Policial, uma decadente delegacia a cinco quadras do ginásio do Ibirapuera, para instalar ali o DOI-CODI que se tornou o símbolo mais sangrento do regime: passaram por lá 2.541 ‘subversivos’ e 51 ‘terroristas’ morreram trocando bala com sua equipe barra-pesada, na heroica versão do próprio Ustra. Nos 40 meses em que o major reinou ali, entre 1970 e 1974, houve 502 denúncias de tortura (uma a cada 60 horas) e 40 mortos (um por mês) nos interrogatórios, segundo levantamento da Arquidiocese de São Paulo.
O centro de torturas de Ustra ficava na esquina da rua Tutóia com Tomás Carvalhal. Quando um preso era levado para lá, os agentes do DOI-CODI brincavam com a fama do lugar: "Agora você vai conhecer o Tutóia Hilton", diziam. O que era Hilton, no Brasil, era conhecido como Sheraton na Argentina. O CCD Sheraton funcionava na subcomissária de polícia de Villa Insuperable, em La Matanza, o mais populoso dos municípios da região metropolitana de Buenos Aires, onde vivem 13 milhões de pessoas, a maior aglomeração do continente, abaixo só de São Paulo.
Martinez de Hoz, com um CCD (Centro Clandestino de Detenção) em sua empresa |
A patota dos Falcon
Talvez para amenizar a sombra que pairava sobre os CCD, os generais da névoa argentina lhes outorgavam codinomes ou apelidos singelos, quase inocentes, que camuflavam sua lúgubre destinação: El Campito, La Perla, Los Plátanos, El Banco, El Chalecito, La Casita de Los Mártires, El Olimpo, El Motel, La Escuelita para Mudos. Como os DOI brasileiros, os CCD argentinos contavam com seus grupos de busca e apreensão, os GT (ou grupos de tarefas), conhecidos como patotas.
Milhares de retratos em branco e preto que jamais foram atualizados (Foto-montagem de Emmanuel Frezzotti/Flickr) |
Como toda ditadura, a argentina recriava o idioma para ocultar sua maldade. Ninguém era preso, apenas chupado, eufemismo militar para quem era preso. Entre os repressores, os CCD eram conhecidos como chupaderos. Da mesma forma, ninguém morria. Os detidos que eram desaparecidos passavam apenas por um translado. Não importava a forma final utilizada, fosse fuzilamento em massa, fossa comum, incineração de cadáver ou uma tumba com a lápide NN (no nombrado), todos eram apenas transladados.
Pichação num muro de Buenos Aires (Que os 30.000 desaparecidos não fiquem no esquecimento) |
"Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros", ordenou Isabelita |
A sanha de Isabelita
O governo lançou a ‘Operação Independência’, para reprimir a guerrilha do ERP, sob a chefia do general Acdel Edgardo Vilas, comandante da V Brigada de Infantaria de Montanha, baseada em Tucumán. Linha duríssima, ele confiava mais na bala do que na lei: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco da agulha do que condenar um subversivo num tribunal”, avisava Vilas. Pela agulha do CCD de Famaillá passaram, nas contas do general, 1.507 pessoas, mas cálculos mais realistas falam em mais de 2.000 pessoas.
La Escuelita já operava com força quando a presidente da República visitou o Comando Tático de Famaillá, a cinco quadras dali, para insuflar a sanha assassina dos militares: “Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros”, ordenou Isabelita, com ímpeto chupadero, meses antes dela mesmo ser transladada do poder pelos companheiros de armas de Vilas.
Bussi logo encontrou o que fazer |
Modéstia de Bussi. Entre 1976 e 77, o general fez três vezes mais do que Vilas: aconteceram 371 desaparecimentos na província — 194 deles supostos militantes Montoneros ou meros simpatizantes. Numa comissão de investigação parlamentar, Osvaldo Humberto Pérez — que foi chupado pelo CCD Arsenales e, ao contrário de Azucena, sobreviveu — contou que ali, no espaço de um ano, foram fuziladas entre 800 e 1.000 pessoas. Em abril de 1976, o lugar ganhou o reforço de 40 soldados enviados desde Campo de Mayo.
Um deles, Omar Eduardo Torres, depondo na década de 1980 perante a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), presidida pelo escritor Ernesto Sábato, contou como era a vida (e a morte) no CCD Arsenales, subordinado diretamente ao general Bussi.
— Uma vez vi como um preso desnudo era enterrado vivo, só com a cabeça fora do buraco, com a terra em volta molhada para ser compactada com os pés. O preso ficava lá 48 horas. O buraco provocava cãibras dolorosas e infecções na pele. Por duas vezes presenciei fuzilamentos ali, e quem efetuava o primeiro disparo era o general Antonio Bussi. Depois ele fazia com que todos os oficiais de maior hierarquia atirassem também. O local das execuções estava localizado a uns 300, 400 metros da Companhia de Arsenais, montanha acima. Estendiam um cordão de segurança a uma distância de 20 metros e outro a uns 100 metros do local. Os disparos eram feitos com pistolas calibre 9 mm ou 11.25 mm, sempre entre as 23h e 23h30. A cada 15 dias se assassinavam entre 15 a 20 pessoas — relatou o soldado Torres.
A coisa certa
O ex-soldado Domingo Jerez garantiu ao juiz Carlos Jiménez Montilla, em fevereiro de 2010, que testemunhou o general Bussi matar a bordoadas a dois homens em um campo de concentração em Timbó Viejo, localidade ao norte de San Miguel, na rodovia 305. “Vi quando colocaram o cano de um fuzil na vagina de uma mulher grávida”, contou o soldado.
Bussi no tribunal |
Forti abriu processo contra o general em 2005 |
Bussi: "Não nego, nem afirmo" |
Foi acusado de crimes de lesa humanidade e pelo desaparecimento de outras 72 pessoas, o que lhe rendeu a prisão perpétua em agosto de 2008. O chefe temido da repressão foi destituído com desonra do Exército. Não conseguiu ver as outras condenações iminentes, porque o coração enfim falhou, em novembro passado, determinando o seu translado irremediável aos 85 anos.
Um único deputado de Tucumán animou-se a pagar o anúncio de falecimento num jornal local, assim mesmo com o estrito cuidado de citar o nome do filho vivo, não do pai morto: “O deputado Alberto Colombres Garmendía participa com dor o falecimento do pai do deputado Ricardo Bussi”.
O secretário de Assuntos Internacionais da Defesa, Alfredo Waldo Forti, não viu o sequestrador de sua mãe apodrecer no cárcere, como imaginava.
O filho de Azucena viu coisa pior: o general Antônio Bussi, como acontece com os criminosos de todas as ditaduras, apodreceu em vida, chupado pela memória de seus abusos, cravado pela lâmina aguda dos tribunais e da Justiça.
Como ensinava Azucena a seus filhos, é a maneira correta de resolver as coisas num país que respeita sua história, sua memória, seu povo.
* Luiz Cláudio Cunha é jornalista.
[cunha.luizclaudio@gmail.com]
Comentários
nike shox for men
off white nike
kobe shoes
yeezy boost 350
giannis shoes
moncler
lebron 16
michael jordan shoes
longchamp