Era uma vez dois “periodistas” aposentados. Um brasileiro e outro argentino, Marino e Fernández, ambos descasados, sessentões solitários e cachaceiros. Enquanto viviam – não podiam mesmo durar muito -, andavam sempre nos bares de Palermo, agradável bairro de classe média de Buenos Aires. Pode-se dizer que a noite portenha deles resumia-se naquele pedacinho de Palermo ali em torno do cruzamento da Avenida Santa Fé com a Rua Fray Justo Santamaría de Oro.
Ou melhor, nos bares por ali. A partir, claro, do El Rápido. Se conheceram lá. Fernández falava de uma mesa para outra, em voz alta, dizia ser “periodista” e etc e tal. Aliás, parecia ter em alta conta o labor de jornalista, não deixava nunca de mencionar nas apresentações: “periodista brasileño”. Uma vez até apresentou antigas credenciais de “periodista deportivo, ahora estoy jubilado”, e desempregado, porque vivia procurando trabalho, falava que a aposentadoria argentina não “alcançava” para viver melhor.
Sim, dizia ser “periodista”, e aí Marino não perdeu tempo. Se apresentou e, pronto, “somos periodistas”. E quase toda noite começavam no El Rápido: cerveja, vinho, fernet, cinzano, genebra, uísque... Variando, não era tudo na mesma noite, não, que os sessentões não estavam lá tão façanhudos.
Mas o El Rápido fechava às 10 horas e Raúl, o “anfitrião”, não perdoava, a partir das 9:30 horas já começava a apresentar as contas. Depois tinha o Kentucky, até 1 hora da madrugada, e o La Niña de Oro, aberto 24 horas. Lá pelo meio da farra, Fernández começava a cantar: “Aunque nos lleven la contra / todos los cuadros demás, / será siempre Independiente / El orgullo nacional. / Y dale, dale rojo, dale!”, como bom “hincha” que era do Independiente, time de futebol.
Mas uma noite... ah! uma noite trágica... e cômica. Os dois saíram do El Rápido e foram ao Kentucky. Fernández não gostava do Kentucky, era muito caro, “son unos ladrones”, dizia. Mas Marino simpatizava com os “moços” (garçons) e sempre tomavam uma por lá. Naquela noite, porém, chegaram sorrindo e foram recebidos sisudamente. Um garçon avisou a Marino: “Na noite passada, você desrespeitou o ‘encarregado’ e ele ordenou que você não será mais atendido aqui”. Marino não entendeu nada, não se lembrava de nada. “Como foi isso?, não é possível...” Repetiram a explicação, ele desistiu de entender e foi saindo sem graça.
“Deixa pra lá”, murmurou e rumaram ao La Niña de Oro. Lá os aguardava uma novidade semelhante. O gerente avisou a Marino: “Esse senhor, seu amigo, não será mais atendido aqui, na noite passada ele chamou o ‘moço’ de ladrão”. “É mentira”, reagiu Fernández. Mas quem será que mentia?
Foram saindo desnorteados. Já na rua, Marino e Fernández pararam, um olhou para o outro e, de repente, caíram na gargalhada. Logo em seguida, sérios:
- Temos que tratar o Raúl muito bem, porque se perdermos o El Rápido seremos dois ‘periodistas’ órfãos de bar.
(Conto escrito em Buenos Aires e publicado no blog Pilha Pura em 19/05/2011).
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