O ESTIGMA ou DE COMO SE TRITURA “A PARTE” NA JUSTIÇA NOSSA DE CADA DIA (realidade e ficção)


- Doutor, pode entrar.

- Mas, chamou a senha 44, é a minha. Levantou-se Zé Quesada, o papelzinho da senha à mostra, hesitante. A recepcionista, impaciente, explicou agora é a vez do advogado. Ah, pensou, vai alternando, um doutor advogado, “uma parte”, um doutor advogado, “uma parte”. Zé Quesada iniciava assim o longo aprendizado dos rituais forenses. Mas, pensou, o doutor advogado não precisa pegar a senha, só “a parte”. Eh, pensou comemorando, pelo menos tem pouca gente de paletó e gravata. Só uns três. Daqui a pouco só tem “parte”.

Havia duas dezenas de “partes” sentadas na sala de espera. Pelo jeito e pelas vestes, pessoas simples que vão bater às portas dos famosos Juizados Especiais de Pequenas Causas, vendidos pelo marketing oficial como a “salvação da lavoura”. Entre elas, Zé Quesada, tímido, moreno, miúdo, de tênis surrado e bata estilo anos 60. Minha mãe, pensou, na sua sabedoria de gente simples, sempre me dizia: meu filho, com esses trajes você não consegue nada na vida.

- Agora o senhor pode entrar.

- Obrigado. Zé Quesada passou pela porta de vidro, que a todo momento necessitava de um ajuste. É que, apesar do aviso “puxe”, muitos empurravam e aí dava problema. A recepcionista ia lá e dava um jeito.

- Gostaria que o senhor me explicasse essa sentença. A juíza diz aqui no final que o pedido é parcialmente procedente, mas depois diz que é improcedente. Queria saber o que eu ganhei e o que eu não ganhei.

O funcionário encarregado do balcão, a princípio gentil, depois nem tanto, pega o papel, olha, lê, arrisca um palpite. Zé Quesada espia desconfiado. Ih, pensou, o homem tá por fora, não entende porra nenhuma de sentença. O funcionário pergunta se tem advogado; não, não tem.

- Por favor, assine aqui o ciente. “A parte” tem dez dias para apresentar o recurso. O funcionário já dava sinais de impaciência. - O senhor agora precisa de advogado.

- Mas, como vou saber de recurso, se não sei traduzir a sentença? Zé Quesada, vexado, a recepcionista já tinha mandado entrar um outro doutor.

Zé Quesada saiu aturdido, agoniado. Porra, que merda, pensou, não disseram que o Juizado Especial de Pequenas Causas não precisa de advogado? “A parte” é a mãe! Vá pra porra! “A parte” com advogado chama-se “doutor”, “a parte” sem advogado chama-se “a parte”.

Como tinha de passar em outra Vara para colher informação sobre um processo de um amigo e a atendente se mostrava muito gentil, animou-se e consultou-a sobre seu caso. Ela o encaminhou a uma colega de outra Vara, que, garantiu, entende do assunto e pode ajudá-lo.

Mais uma espera, mais uma expectativa frustrada. A colega da atendente gentil era também gentil. Mas... sinto muito, se o processo fosse de nossa Vara, o senhor ia sair daqui sabendo tudo direitinho. Se eu não soubesse pediria a uma colega, ou mesmo à supervisora, e até ao juiz. Mas, o senhor compreende, veja aí as mesas, os arquivos, os armários, abarrotados de processos. Não posso parar para dar informações sobre um processo de outra Vara.

- Eu entendo, eu entendo, muito obrigado.

E agora, Zé Quesada, você tem dez dias para descascar o abacaxi. Porra, pensou, não posso facilitar, na metade do prazo já tenho de estar com tudo resolvido. Tenho de incomodar os amigos. Não é pra isso que eles servem, como dizem os desinibidos? Ah, pensou, como invejo os desinibidos. Bom, pensou, esqueça, vou trabalhar, amanhã retomo a batalha.

No dia seguinte Zé Quesada se viu melhor, bem melhor, disposto, otimista, inspirado. “Mundo velho, velho mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução”. Gosto desses versos, pensou, ouvi da boca do poeta baiano (de Feira de Santana) Antonio Brasileiro, serão dele ou do grande Drummond? Decidiu estudar o processo, pegou a papelada, tinha tirado xerox de tudo. Desde a petição inicial (Termo de Pedido), a contestação do réu (ah, pensou, aqui pelo menos sou chamado por um nome mais simpático, “autor”), passando por aqueles termos arrevesados para os simples mortais – demandante, exordial, lustro prescricional, sucumbência – até um requerimento (parece se chamar “juntada” no jargão forense) do réu, o INSS, aplicando um xeque-mate: requeria a extinção do processo sem exame do mérito, porque o autor se aposentou pelo teto do salário-benefício. E blá-blá-blá, tome juridicês.

Zé Quesada entendeu finalmente a famigerada sentença... e gelou. Me fodi, pensou. Mas, peraí, alguma coisa tá errada. Se eu não tenho direito a nada, como é que o INSS me manda uma proposta de acordo com reajuste dos proventos e me oferecendo R$ 18.500,00 de diferença? A direção do INSS vai pra um lado e sua Procuradoria pro outro? O INSS, com base numa decisão do governo, tinha proposto acordo, com pagamento da diferença parcelado em cinco anos, aos aposentados garfados pelo próprio governo quando da adoção da URV em fevereiro/março de 1994, para a entrada em vigor do Plano Real.

Zé Quesada reanimou-se. Começou a temporada de caça aos amigos que têm acesso ao INSS e aos meandros da Justiça. Conclusão: você tem direito, sim, a juíza escorregou feio.

- Talvez o pedido tenha sido mal feito, mal fundamentado e... tentou compreender Zé Quesada.

- Não, ela teria de pesquisar o assunto, ver a jurisprudência. Uma amiga entendida do metier foi peremptória. Zé Quesada ficou impressionado. Como é que uma doutora juíza, pensou, uma Excelência, pode ferrar assim um pobre mortal! Ir bobamente na onda dos procuradores! Será que ela não fica preocupada com o poder que tem de mexer no destino das pessoas? Será que depois disso ela vai dormir tranqüilamente? Satisfeita com sua brilhante carreira de magistrada? Desse jeito vai terminar desembargadora, ou quem sabe, ministra, pensou, mordaz. Também a coisa parece toda de pé quebrado pra arrebentar no lombo da “parte”. A juíza pediu ao réu, ao INSS, pra calcular o que seria devido a mim, o autor. Como o réu calcular, a Justiça Federal não tem calculadora? Outra coisa: como está na assinatura da Excelência, ela é juíza substituta de uma Vara e parece que estava dando uma mãozinha na minha Vara. Parece tudo uma improvisação.

Zé Quesada matutava. Os amigos são a única rede social de proteção que funciona neste país. Quem não os tem está órfão. Os chamados poderes públicos só protegem os já protegidos, os mesmos, como diz a sabedoria popular.

- Agora temos de fazer o recurso. Vou pesquisar na internet, arranjamos um advogado para assinar. Era uma jovem estudante de Direito, otimista como só sabe ser a juventude. Podemos também passar na Turma Recursal, tentar sondar o entendimento dos juízes. Zé Quesada estremeceu. Eh, pensou, Turma Recursal, que nome!

Mas o nome ficou martelando sua cabeça. Bem que eu podia ir lá, pensou, sozinho mesmo. Quem sabe o ambiente é mais acolhedor e até pode mudar a má impressão da Justiça?

- O senhor é “parte”? Ih, pensou, comecei mal, até o vigilante!

- Sou.

- Aguarde um pouquinho.

Menos de dez minutos estava diante da atendente.

- Eu tenho um processo contra o INSS e...

- O número, por favor.

- Está aqui, mas eu queria...

- Um momento...

- Ah, não chegou aqui, está na Vara...

- Eu sei que não chegou, minha senhora, eu queria só conversar e ser orientado... por exemplo, eu tenho uma proposta de acordo do INSS, se eu decidir aceitar, o que devo fazer?

- Mas o processo não está aqui - a atendente se impacientava. Chamou uma colega, esta agitada, estressada. - Ele é “parte” de um processo...

Zé Quesada hesitou. Ih, pensou, não tem jeito, vou desistir.

A estressada começou a explicar:

- Primeiro, só podemos fazer alguma coisa depois que o processo chegar aqui. Certo? Por enquanto, o senhor tem de se dirigir à Vara. Acordo, pelo que sei, deve ser com o próprio INSS...

- Mas um amigo do INSS me disse que o acordo agora só na Justiça...

- Bom, é melhor um só falar. Assim podemos nos entender. Deixe eu explicar. E explicou.

Mas, o pobre do Zé Quesada parece que já estava contaminado pela impaciência geral.

- Bem, eu teria de suspender o...

- Suspender não, desistir do processo, requerer a desistência.

- Mas eu faria isso depois da contestação ou...

- Contestação não, contra-razões.

- Tá, contra-razões. - Porra, pensou, quem agüenta isso? - Outra coisa, por favor, se eu esperar a sentença ser derrubada...

- Derrubada não, reformada.

Zé Quesada estacou, olhando sem ver a estressada, um desgosto, ele desejava xingar a moça, desabafar, mas não conseguia. Merda, pensou, desisto. Ficou uma tarde macambúzio. Um amigo, meio dramático, chegou a sugerir-lhe uma greve de fome. Ave Maria, pensou, aí eu vou depender da cobertura da mídia. É outra máfia.

Bom, esqueça Zé, vamos ao recurso. A jovem estudante de Direito cuidou de tudo, com a ajuda de amigos. Alea jacta est. Agora é com a Turma Recursal.

Zé Quesada acredita que aprendeu a lição. É isso aí meu irmão, pensou, se você um dia, por alguma desventura, precisar da Justiça, fique longe dela. Procure logo, se tiver dinheiro, um advogado ou estude pra ser bacharel. Porque, como cidadão, simples mortal, se você chegar a uma Vara e o funcionário começar a tratá-lo de “a parte”, tenha certeza, cê tá ferrado!


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