Pequeno trecho de “A Privataria Tucana” (parte do capítulo 2 – “Briga de Foice no PSDB”), livro que teve sua primeira edição esgotada em 24 horas. Neste último final de semana estava previsto o início da distribuição de mais 80 mil exemplares.
Ao fechar a primeira fase da apuração, entreguei ao Estado de Minas um relatório explicando como funcionava a inteligência da campanha de Serra. Mas, usando da liberdade conferida aos repórteres especiais da diretoria, resolvi aprofundar as averiguações. Aproveitei a oportunidade para retomar um tema que sempre me fascinou: a Era das Privatizações, sob a égide do presidente Fernando Henrique Cardoso, particularmente os negócios que se deram na área das telecomunicações. Comecei a investigar o caso no início deste século quando ainda trabalhava na sucursal paulista de O Globo.
Fiz uma varredura em cartórios de títulos e documentos, além de juntas comerciais de São Paulo e do Rio, e consegui mapear o modus operandi do ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira, e de seus muitos pupilos, ou seja, aqueles de observam a mesma metodologia para lidar com empresas e dinheiro no Brasil e nos paraísos fiscais do Caribe. Entre os alunos, uma presença expressiva de tucanos paulistas.
Encontrei a primeira transação de Ricardo Sérgio nas Ilhas Virgens Britânicas, no paraíso fiscal do Caribe. Os papéis atestavam que o ex-tesoureiro das campanhas eleitorais de Serra e de FHC pilotava, no final da década de 1980, a empresa offshore Andover. Com endereço em Road Town, capital das Ilhas Virgens Britânicas, a Andover servia para injetar dinheiro que estava no estrangeiro em outra empresa de sua propriedade em São Paulo, a Westchester.
A princípio, ainda inexperiente na época no rastreamento de dinheiro, supunha que o objetivo era enviar dinheiro para o exterior. Percebi que estava equivocado ao consultar, por sugestão de fontes do serviço de inteligência da Receita Federal e do Banco Central, o jurista Heleno Torres. Uma das maiores autoridades do Brasil na análise jurídica de movimentações de valores, Torres atesta que o método servia para trazer e não para mandar recursos para fora. “É uma operação clássica de internação de dinheiro”, afirmou ao examinar a documentação que eu levantara.
O dinheiro entrava no país por meio de aumentos sucessivos do capital da empresa brasileira. Tais valores eram integralizados pela empresa caribenha. À primeira vista, parecia um investimento de uma empresa estrangeira em outra empresa sócia no Brasil, já que a manobra permitia que o dinheiro chegasse ao país por meio de uma operação de câmbio autorizada pelo Banco Central (BC). Porém, os documentos deixavam o rastro grosseiro da fraude. Ricardo Sérgio assinava nos dois lados da operação: como dono da empresa brasileira e procurador da offshore do Caribe. Tratava-se exatamente do mesmo sistema usado pela quadrilha da advogada Jorgina de Freitas, que ganhou notoriedade por fraudar a Previdência Social em mais de R$ 1 bilhão.
No início de 2008, ao analisar os primeiros papéis recolhidos na Junta Comercial de São Paulo, na Justiça e nos cartórios de títulos e documentos da cidade, percebi que outro personagem entrava na história e, do mesmo modo, vinculado a Serra. O corretor Alexandre Bourgeois, genro do então governador de São Paulo, usara a mesmíssima metodologia bolada pelo ex-tesoureiro do sogro. Ao focar minhas investigações no 3º. Cartório de Títulos e Documentos, da Capital paulista, onde também havia encontrado a Andover, acertei em cheio o alvo. Descobri que, logo após a privatização das teles, Bourgeois abriu no mesmo paraíso fiscal, duas offshores: a Vex Capital e a Inconexa Inc., ambas operando no mesmo escritório utilizado por Ricardo Sérgio nas Ilhas Virgens Britânicas, o do Citco Bulding.
Ao flagrar as transações de Bourgeois, cometi uma tolice quase do mesmo tamanho daquela de retornar à Cidade Ocidental após ter denunciado o assassinato de adolescentes pelo narcotráfico. Telefonei para a assessoria de imprensa do governador paulista. Queria um pronunciamento dele sobre o assunto. A resposta não tardou. Serra agiu para tentar barrar a matéria ainda em fase de apuração. Telefonou em seguida para o então editor de política do Correio Braziliense, Alon Feuerwerker. Ao ouvir de Feuerwerker que a matéria estava sendo tocada por Minas Gerais e para o Estado de Minas, Serra quis falar com a direção do jornal e com a irmã do governador Andrea Neves, sem sucesso. Decidiu então ligar diretamente para Aécio, buscando acertar as arestas. Aparentemente, funcionou.
Faltava, no entanto, acalmar o comando do jornal mineiro, inconformado com a arapongagem de Itagiba e com o artigo “Pó pará, governador”, plantado pela entourage de Serra em O Estado de S. Paulo, para desgastar o governador mineiro. Publicado em 28 de fevereiro de 2009, e assinado pelo colunista Mauro Chaves, já falecido, o libelo antiaecista ironizava o desejo do governador mineiro de definir logo, por meio de prévias, o candidato do PSDB ao Planalto. No tucanato paulista, a intenção foi interpretada como um crime de lesa-majestade. Sem nunca ter ocultado seu serrismo, o Estadão dispensou o protocolo e disparou um torpedo visando atingir a pré-candidatura de Aécio abaixo da linha-d’água. Contrastando a linha conservadora do jornal, instilou uma insinuação pesada, uma suposta ligação de Aécio ao “Pó”, ou seja, cocaína para atingir dois objetivos: expor publicamente, de modo vulgar e dissimulado, o comportamento do rival de Serra e enviar-lhe um recado muito claro.
Para o Estado de Minas, havia ainda outra razão para detestar o “Pó pará, governador”: o sarcasmo com que eram abordadas as relações entre os jornais mineiros e o comando político estadual. “Em Minas, imprensa e governo são irmãos xifópagos”, gracejava o articulista. Para, pitorescamente, agora em tom de seriedade, comparar Minas com São Paulo, onde Serra e seus antecessores seriam “cobrados com força, cabresto curto” pelos jornalões paulistanos. Era, enfim, difícil digerir Serra e o serrismo. Mas a vingança estava a caminho.
“Indignação. É com esse sentimento que os mineiros repelem a arrogância de lideranças políticas que, temerosas do fracasso a que foram levadas por seus próprios erros de avaliação, pretendem dispor do sucesso e do reconhecimento nacional construído pelo governador Aécio Neves”. Assim começa o editorial “Minas a reboque, não!”, do Estado de Minas, em 8 de março de 2010, que rejeita o papel subalterno de Minas e de Aécio numa eventual composição com Serra para enfrentar Dilma Rousseff.
Não era a primeira vez que o Estado de Minas trombava com o tucanato paulista. Antes, aconselhado por Aécio, Serra foi a Belo Horizonte, para participar, no dia 7 de março de 2008, das homenagens aos 80 anos do jornal ao lado de outros caciques tucanos. Ao chegar à festa, porém, o então governador paulista acabaria surpreendido pelo famoso discurso do presidente dos Diários Associados, Álvaro Teixeira da Costa. “São Paulo, não mexa com Minas, que Minas sabe dar o troco”, advertiu o orador para constrangimento de Serra. Dois mil convidados estavam presentes. Teixeira da Costa já havia lido o relatório parcial das minhas investigações.
O discurso recebeu várias críticas. Mas, pela minha experiência no jornal, tenho a convicção é de que foi menos anti-Serra do que em favor daquilo que o jornal acreditava ser o interesse de Minas. A participação do Estado de Minas no episódio Serra termina aí.
Após relatar o assalto ao patrimônio público do país por meio das privatizações, este livro pretende desnudar as muitas e imaginativas maneiras de ganhar dinheiro que se sucederam. Entre elas, os processos de internação de valores de origem suspeita.
São operações realizadas pelo clã Serra – sua filha Verônica Serra, seu genro Alexandre Bourgeois, seu primo político Gregório Marín Preciado, seus muitos sócios, seus amigos e seus colaboradores. E outros tucanos de altos poleiros. Em muitos casos, são transações envolvendo empresas brasileiras e empresas offshore no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas, escoradas no anonimato.
Muita gente, além dos Serra, agiu assim. Alguns, em vez de comprar cotas de suas próprias empresas no Brasil, adquirem imóveis, fazem os recursos rodarem em fundos de investimentos ou compram automóveis, como o ex-presidente do Tribunal Regional do Trabalho, de São Paulo, Nicolau dos Santos Neto, que investiu parte dos R$ 169,5 milhões de reais desviados da construção da sede do TRT/SP em uma frota de carros importados.
Fiquei pasmado com a voracidade de alguns grupos e a disposição de levar vantagem a qualquer custo. E, após anos de trabalho, percebi que o volume do material que havia levantado, a necessidade de explicar os artifícios empregados nas fraudes, a profusão de personagens e seus laços com terceiros implicados, o desdobramento dos fatos ao longo de vários anos e a contextualização exigida para melhor compreensão dos acontecimentos impunham outro formato. Matérias de jornal não bastariam para descrever o que tinha em mãos. Seria preciso mais para melhor contar o caráter de uma época e dos seus protagonistas. Será gratificante se, depois da última página, o leitor mantiver seus olhos bem aberto. É uma boa maneira de impedir que aqueles que já transformaram o público em privado para seu próprio proveito tentem reprisar algum dia o que foi feito na era da privataria.
(Espero que a editora Geração Editorial não se importe com a transcrição deste pequeno trecho, sem sua autorização prévia, já que este meu blog Evidentemente não tem objetivos comerciais, visa tão somente contribuir para que seu pequeno número de leitores tenha informações da melhor qualidade possível. Agradeço a Paulo Soares, meu sobrinho Paulinho, ativista da blogosfera, pela ajuda para a viabilização de tal divulgação).
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