Mais uma parte da entrevista do sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp, concedida aos jornalistas do Jornal Opção, de Goiás (fundado em 1975). Ele é autor de dezenas de livros e considerado uma das maiores autoridades na discussão de questões relativas ao trabalho. Na semana passada esteve em Goiânia para divulgar “O Continente do Labor”, sua mais recente obra, que fala sobre o mundo do trabalho na América Latina. Como a entrevista é muito longa, este blog está publicando por partes. O título acima é deste blog.
Renato Dias — Por que o sr. considera a América Latina o “continente do labor”?
A América Latina nasceu do prolongamento de suas metrópoles europeias. Seja pela colonização portuguesa no Brasil, seja pela colonização espanhola na América de língua hispânica, nós nascemos pelo que Caio Prado [historiador brasileiro do século 20], com muita sensibilidade, chamou de colônias de exploração. E uma colônia de exploração é voltada para a produção de bens e produtos de que as metrópoles necessitem. Ao contrário da colonização dos Estados Unidos, que são colônias de povoamento, como o mesmo Caio Prado diz. Foram dissidências religiosas que fizeram com que uma parte da população emigrasse para a América do Norte. Aqui, não: nascemos no labor, para trabalhar. E o labor remete à dimensão exaustiva, intensificada, superexplorada do trabalho.
A América Latina nasceu do prolongamento de suas metrópoles europeias. Seja pela colonização portuguesa no Brasil, seja pela colonização espanhola na América de língua hispânica, nós nascemos pelo que Caio Prado [historiador brasileiro do século 20], com muita sensibilidade, chamou de colônias de exploração. E uma colônia de exploração é voltada para a produção de bens e produtos de que as metrópoles necessitem. Ao contrário da colonização dos Estados Unidos, que são colônias de povoamento, como o mesmo Caio Prado diz. Foram dissidências religiosas que fizeram com que uma parte da população emigrasse para a América do Norte. Aqui, não: nascemos no labor, para trabalhar. E o labor remete à dimensão exaustiva, intensificada, superexplorada do trabalho.
Renato Dias — O sr. tem tradição antistalinista. A imagem, na capa de seu livro, da pintura de um autor [o mexicano Diego Rivera] que nasceu no stalinismo, não é uma contradição?
O Rivera não nasceu no stalinismo. E a obra de arte é algo que sempre tem uma relativa distância da conotação política, especialmente uma obra plástica como essa. Nós sabemos que Rivera recebeu Trotski no México e cedeu sua casa e de Frida Kahlo [pintora com quem Rivera foi casado] para o exílio dele, quando todos os partidos comunistas de feição stalinista estavam perseguindo Trotski. Mas grande parte dos grandes pintores bebeu no stalinismo. Estive visitando o arquivo de Pablo Picasso em Paris e lá havia uma ode a Stálin. É bom termos claro que o stalinismo foi uma tragédia dentro da esquerda, mas muitos intelectuais tiveram seu momento de simpatia a isso, porque foi muito forte a questão da vitória soviética na 2ª Guerra Mundial. Mas Rivera vale, para mim, por sua pintura e essa obra (apontando para a capa do livro), “A vendedora de flores”, é especialmente preciosa, pela imagem de uma trabalhadora carregando um peso, um cesto, com um trabalhador a ajudando. A sensação é do fardo, mas ela carrega flores. Isso é muito bonito. Isto é América Latina: sofrimento e felicidade, espoliação e revolta, infelicidade e felicidade social, martírio e beleza. Essa é a nossa América Latina, esse é o continente do labor. É uma imagem para provocar.
O Rivera não nasceu no stalinismo. E a obra de arte é algo que sempre tem uma relativa distância da conotação política, especialmente uma obra plástica como essa. Nós sabemos que Rivera recebeu Trotski no México e cedeu sua casa e de Frida Kahlo [pintora com quem Rivera foi casado] para o exílio dele, quando todos os partidos comunistas de feição stalinista estavam perseguindo Trotski. Mas grande parte dos grandes pintores bebeu no stalinismo. Estive visitando o arquivo de Pablo Picasso em Paris e lá havia uma ode a Stálin. É bom termos claro que o stalinismo foi uma tragédia dentro da esquerda, mas muitos intelectuais tiveram seu momento de simpatia a isso, porque foi muito forte a questão da vitória soviética na 2ª Guerra Mundial. Mas Rivera vale, para mim, por sua pintura e essa obra (apontando para a capa do livro), “A vendedora de flores”, é especialmente preciosa, pela imagem de uma trabalhadora carregando um peso, um cesto, com um trabalhador a ajudando. A sensação é do fardo, mas ela carrega flores. Isso é muito bonito. Isto é América Latina: sofrimento e felicidade, espoliação e revolta, infelicidade e felicidade social, martírio e beleza. Essa é a nossa América Latina, esse é o continente do labor. É uma imagem para provocar.
Renato Dias — Há uma nova onda grevista no Brasil, de contestação às políticas públicas do Palácio do Planalto?
Não é propriamente ainda uma nova onda contra o Planalto. Por exemplo, uma das greves mais importantes, que está terminando agora, foi a dos bancários. Uma greve longa, contra, por um lado, a política dos bancos privados — que vivem da especulação e do saque generalizado — e, por outro lado, as políticas do governo. Houve um endurecimento, que se atribui ao governo Dilma, de não permitir que os bancos públicos cedam [nas negociações]. No passado havia mais facilidade de os bancários negociarem com bancos públicos do que com bancos privados. É verdade que já estamos presenciando, há um certo período, uma retomada de lutas sindicais importantes exigindo aumentos salariais e dignidade do trabalho, mas as mobilizações mais importantes que afetam o governo foram a de Jirau e as dos canteiros [revoltas de trabalhadores da construção civil, como a da usina hidrelétrica de Jirau (RO), cujo canteiro de obras foi destruído em março deste ano], por mostrar que as obras do PAC se fundam na intensa exploração do trabalho. Esse é o continente do labor. A manifestação de Jirau é uma rebelião como as que estamos observando na construção civil em diversas partes, porque esse trabalhador da construção civil é tratado de modo indigno.
Não é propriamente ainda uma nova onda contra o Planalto. Por exemplo, uma das greves mais importantes, que está terminando agora, foi a dos bancários. Uma greve longa, contra, por um lado, a política dos bancos privados — que vivem da especulação e do saque generalizado — e, por outro lado, as políticas do governo. Houve um endurecimento, que se atribui ao governo Dilma, de não permitir que os bancos públicos cedam [nas negociações]. No passado havia mais facilidade de os bancários negociarem com bancos públicos do que com bancos privados. É verdade que já estamos presenciando, há um certo período, uma retomada de lutas sindicais importantes exigindo aumentos salariais e dignidade do trabalho, mas as mobilizações mais importantes que afetam o governo foram a de Jirau e as dos canteiros [revoltas de trabalhadores da construção civil, como a da usina hidrelétrica de Jirau (RO), cujo canteiro de obras foi destruído em março deste ano], por mostrar que as obras do PAC se fundam na intensa exploração do trabalho. Esse é o continente do labor. A manifestação de Jirau é uma rebelião como as que estamos observando na construção civil em diversas partes, porque esse trabalhador da construção civil é tratado de modo indigno.
Renato Dias — O caderno “Aliás”, do jornal “O Estado de S. Paulo” apresentou nesta semana um texto que mostra que neste ano houve uma redução drástica dos postos de trabalho no setor bancário. A que o sr. atribui este fenômeno?
Em meados dos anos 1980, chegamos a ter de 800 mil a 1 milhão de trabalhadores bancários. Hoje há 490 mil bancários, mas há uma massa de trabalhadores invisíveis — nos call centers, nas empresas de telemarketing, etc —, terceirizados que servem aos bancos, sem o qual estes não funcionam. Então, quando ligamos à noite para fazer uma operação bancária, não é com um bancário que estamos falando, mas, sim, com um trabalhador terceirizado que vive em condições mais aviltadas que a do bancário ainda, que não tem representação sindical e tem direitos trabalhistas restritos, alguém que pode perder seu trabalho a qualquer momento. Basta sua empresa deixar de ser terceira do banco A para ser do banco C que seu posto desaparece. Houve uma combinação complexa que afetou todos os ramos produtivos em escala global, que é redução da força de trabalho, intensificação, polivalência, multifuncionalidade, etc. Todos têm de fazer o trabalho de todos. Isso afetou todos os setores: imprensa, bancos, escolas, hospitais, indústria automobilística, entre outros. E ainda há um maquinário tecnoinformacional e digital que potencializa o trabalho. Hoje é possível fazer um jornal sem jornalista trabalhando fisicamente. Todo mundo trabalha em casa e depois é só imprimir. A feição intelectual pode ser feita utilizando a estrutura de redes.
Em meados dos anos 1980, chegamos a ter de 800 mil a 1 milhão de trabalhadores bancários. Hoje há 490 mil bancários, mas há uma massa de trabalhadores invisíveis — nos call centers, nas empresas de telemarketing, etc —, terceirizados que servem aos bancos, sem o qual estes não funcionam. Então, quando ligamos à noite para fazer uma operação bancária, não é com um bancário que estamos falando, mas, sim, com um trabalhador terceirizado que vive em condições mais aviltadas que a do bancário ainda, que não tem representação sindical e tem direitos trabalhistas restritos, alguém que pode perder seu trabalho a qualquer momento. Basta sua empresa deixar de ser terceira do banco A para ser do banco C que seu posto desaparece. Houve uma combinação complexa que afetou todos os ramos produtivos em escala global, que é redução da força de trabalho, intensificação, polivalência, multifuncionalidade, etc. Todos têm de fazer o trabalho de todos. Isso afetou todos os setores: imprensa, bancos, escolas, hospitais, indústria automobilística, entre outros. E ainda há um maquinário tecnoinformacional e digital que potencializa o trabalho. Hoje é possível fazer um jornal sem jornalista trabalhando fisicamente. Todo mundo trabalha em casa e depois é só imprimir. A feição intelectual pode ser feita utilizando a estrutura de redes.
Renato Dias — Isso é a figura do infoproletário que o sr. conceituou em seu penúltimo livro [“Infoproletários”]?
Ruy Braga e eu chamamos de infoproletários todo esse novo proletariado de serviços que trabalha com as tecnologias da informação. Vai do trabalhador da indústria de software ao do telemarketing — no qual de 70% a 80% do contingente é feminino, mais de 1 milhão no Brasil —, passando por todo o conjunto de trabalhadores cuja atividade implica trabalhar na frente de uma tela de computador ou com aparelho de telefonia, de tal modo que esteja conectado. Esse é o infoproletário, um tipo que se expande na era da informação e trabalha diretamente com equipamentos tecnológicos.
Ruy Braga e eu chamamos de infoproletários todo esse novo proletariado de serviços que trabalha com as tecnologias da informação. Vai do trabalhador da indústria de software ao do telemarketing — no qual de 70% a 80% do contingente é feminino, mais de 1 milhão no Brasil —, passando por todo o conjunto de trabalhadores cuja atividade implica trabalhar na frente de uma tela de computador ou com aparelho de telefonia, de tal modo que esteja conectado. Esse é o infoproletário, um tipo que se expande na era da informação e trabalha diretamente com equipamentos tecnológicos.
Comentários