BOCA DE URNA: HUMALA VENCE DE VIRADA E ENCERRA CICLO NEOLIBERAL NO PERU

Ollanta Humala: vitória confirmada na contagem oficial - com 88,3%
dos votos computados, tinha 51,27% contra 48,72% obtidos por
Keiko Fujimori 
(Reproduzido de Carta Maior, de 06/06/2011)


O Peru que foi às urnas neste domingo (dia 5) para rejeitar a continuidade da política neoliberal personificada em Keiko Fujimori registrou a maior taxa de crescimento da América Latina no ano passado: 9%. A média de expansão do seu PIB tem sido elevada, da ordem de 7%. Em 2010, sua economia atraiu mais investimentos estrangeiros do que a Argentina. O presidente Alan García, no entanto, deixa o cargo com uma das taxas de popularidade mais baixas das Américas: cerca de 26% -- inferior à de George Bush, por exemplo, que encerrou o mandato em meio a uma hecatombe financeira e desacreditado pela guerra do Iraque.


A explicação para o paradoxo, responsável pela vitória de Ollanta Humala, segundo as pesquisas de boca de urna, é o modelo de crescimento adotado nos últimos anos. O Peru desde os anos 90 cresce sem políticas públicas para redistribuir a riqueza em benefício da sociedade, sobretudo de sua vasta maioria pobre constituída de indígenas, que formam 45% da população (brancos são 15%). Foram deles os votos decisivos que garantiram a virada da candidatura de centro-esquerda.


Basicamente exportadora de minérios, a economia peruana beneficiou-se fartamente da valorização dos preços das commodities nos últimos anos. A opção política, porém, foi por um modelo de crescimento de recorte neoliberal, feito de desregulação máxima para os mercados e direitos sociais mínimos para a população. A riqueza gerada nessa engrenagem não circula na sociedade, concentrando-se numa órbita restrita de beneficiados que gostariam de eleger Keiko Fujimori para afastar o risco de mudanças.


A ausência de carga fiscal sancionou e acentuou as polarizações decorrentes dessa dinâmica. A receita do Estado peruano é de 15% do PIB, inferior até mesmo à média latino-americana e caribenha que já é acanhada, oscilando em torno de 18% do PIB, contra 39,8% da União Europeia, onde a rede de contrapesos sociais está consolidada. O governo Alan García poupou as mineradoras peruanas de uma taxação correspondente aos lucros fabulosos acumulados no atual ciclo de alta das matérias-primas. O mercado naturalmente cuidou de seus próprios interesses e o Estado não reuniu fundos para investir em educação, saúde, habitação e segurança alimentar.


No crepúsculo do ciclo neoliberal, a renda per capita no Peru é de US$ 5.196, bem inferior à de outros países da região, como Uruguai, Chile, Brasil e México. A realidade, no entanto, é ainda pior que isso. Com 2/3 da mão-de-obra na informalidade, a sociedade peruana não dispõe de uma estrutura de direitos trabalhistas; a população rural, formada sobretudo pelos indígenas, vegeta; uma professora ganha cerca de R$ 200,00 por mês. É esse modelo de crescimento, que ao gerar riqueza amplifica a desigualdade e polariza toda estrutura social, que foi rejeitado agora nas urnas.




“OS QUE NÃO QUEREM A VERDADE SÃO AQUELES QUE DERAM AS ORDENS”


Por Carlos Noriega – jornal Página/12 (Reproduzido de Carta Maior, de 04/06/2011)


“Vou ganhar amanhã”, diz Ollanta Humala. Ele está tranquilo, confiante. O candidato da Frente Progressista Ganha Peru, que neste domingo disputa o segundo turno da eleição presidencial com a direitista Keiko Fujimori, concedeu uma entrevista exclusiva ao Página/12, abrindo um espaço em sua agitada agenda. Humala tinha acabado de rechaçar, em uma entrevista coletiva, a acusação lançada por Roger Noriega, subsecretário de Estado para a América Latina da administração de George W. Bush, de que Hugo Chávez estaria financiando a sua campanha. “Isso é uma mentira, uma calúnia. Não há nenhuma prova para essa afirmação”, disse Humala.


Na conversa com o Página/12, o candidato falou de suas principais propostas, do que seria um eventual governo seu sem maioria parlamentar, de direitos humanos, de sua rival Keiko Fujimori e do papel que a Unasul (União das Nações Sul-americanas) teria em sua política externa.

- Você disse que o presidente Alan García apoia a candidatura de Keiko Fujimori. Confia na limpeza do processo eleitoral?


Humala – Nós vamos respeitar a vontade popular e vamos defendê-la. Há indícios que trazem preocupação quanto à transparência do processo eleitoral. Há uma clara intervenção do presidente García em favor do projeto autoritário de Keiko Fujimori. A Diroes (quartel policial onde está detido Alberto Fujimori) é o principal local de campanha do fujimorismo, desde onde Alberto Fujimori, que está preso por corrupção e violação dos direitos humanos, decide a estratégia de seu partido. Outro fato preocupante é a denúncia feita sexta-feira pelo jornal La República sobre a interceptação de minhas conversas e as de meus familiares e assessores políticos. Nós reconhecemos essas conversas e algumas delas foram feitas na sede do partido e não por telefone. A única instituição com capacidade de fazer essas interceptações é o serviço de inteligência e para que faça isso precisa ter a luz verde do presidente da República. O governo deve explicar isso.


- Se você ganhar a eleição, será por uma margem estreita e em um país polarizado e dividido em dois, sem maioria no Congresso...


Como força política responsável e com memória entendemos a mensagem que a população deu no primeiro turno, quando o povo nos deu a primeira maioria, mas não uma maioria absoluta, como um pedido para que ampliássemos nosso programa, o que implica um governo de concertação nacional, capaz de consensuar algumas propostas. Neste esforço de concertação conseguimos o apoio de forças sociais, trabalhistas e políticas importantes, como o partido Peru Posible (do ex-presidente Alejandro Toledo), com o qual podemos garantir a estabilidade democrática no Congresso, já que com essa força podemos ter maioria parlamentar, o que a congressista Fujimori não pode conseguir, uma vez que não tem maioria. No grupo dela, há gente que trabalhou diretamente com Fujimori e, quando não tiveram maioria, fecharam o Congresso.


- Você falou de fazer concessões para conseguir essa concertação. Até onde vão essas concessões em suas propostas? O que não é negociável?


Não vamos retroceder em fazer com que o crescimento econômico venha acompanhado de inclusão social. Para que haja inclusão social temos que assegurar políticas sociais como o Programa Pensão 65, para os maiores de 65 anos que não têm uma pensão; um programa de nutrição infantil nas escolas; um programa de creches; defender os direitos trabalhistas; elevar o salário básico de 600 para 750 soles (cerca de 220 dólares) no primeiro ano de governo; um aumento de salário aos policias para melhorar a segurança; investir na infraestrutura, como aeroportos, portos, estradas, escolas, hospitais, ferrovias - o país tem hoje um déficit de 40 bilhões de dólares em infraestrutura pública -, por meio de parcerias público-privadas. Queremos consolidar o processo de descentralização para melhorar o investimento público; ampliar o programa Juntos (que paga 35 dólares mensais aos setores mais pobres) de cerca de 500 mil beneficiários para 900 mil; ampliar os orçamentos dos programas sociais de restaurantes populares e do copo de leite. Queremos entregar bolsas aos melhores estudantes das escolas públicas para que tenham acesso a uma carreira universitária; desenvolver uma política para o retorno dos três milhões de peruanos que vivem no exterior, a maioria em situação ilegal. Não vamos retroceder em nossa disposição de implementar essas políticas sociais.


- Como ex-militar, qual sua posição frente aos julgamentos de militares por violações de direitos humanos?


Para que haja reconciliação, primeiro é preciso que se conheça a verdade. As autoridades devem dar todas as condições à Justiça para que se esclareçam as denúncias e se saiba a verdade. Os soldados que combateram com honra querem que as denúncias sejam esclarecidas, porque quando se suspeita de um se suspeita de todos. Os interessados em que não se conheça a verdade são aqueles que deram as ordens para violar os direitos humanos. Nunca mais devemos regressar à ditadura fujimorista, na qual desapareceram estudantes, na qual se matava, se esterilizavam mulheres contra sua vontade. O que foi feito no país em matéria de direitos humanos foi uma vergonha. O Estado tem uma dívida com sua população em matéria de direitos humanos. Nós defendemos os direitos humanos.


- Em sua opinião, como seria um futuro governo de Keiko Fujimori?


Ela traz consigo as mesmas pessoas que governaram com seu pai. Com ela está o doutor Alejandro Aguinaga, que fazendo lembrar o tempo da Alemanha nazista, como ministro da Saúde de Fujimori, esterilizava as mulheres contra sua vontade. Mais de 300 mil mulheres pobres foram esterilizadas contra sua vontade. Sua porta-voz de direitos humanos (MIlagros Marayi) coordenava no governo de Fujimori, com Vladimiro Montesinos (braço direito de Fujimori e encarregado dos trabalhos sujos), o trabalho de como livrar a cara do regime em função das acusações de violações dos direitos humanos. Ela mesma reivindica seu pai como o melhor presidente do Peru. E a menção ao governo de seu pai ocorreu apenas agora na campanha do segundo turno.


- Alberto Fujimori goza de uma série de privilégios no quartel policial onde está preso. O que seu governo faria diante desta situação?


Ninguém deve ter privilégios. Quando uma pessoa é condenada deve ir para a prisão e não para um quartel policial.


- Quais serão as prioridades de sua política internacional?


Vamos participar com entusiasmo da consolidação da unidade latino-americana. O fortalecimento da Unasul será uma prioridade de nossa política externa. Nós vemos com muito interesse a consolidação da Unasul. Vamos estreitar as relações políticas e econômicas e de integração com os países da região. Não vamos ideologizar as relações internacionais, mas sim vamos construir uma agenda positiva com todos os países irmãos.


- Você tem ressaltado suas concordâncias com o presidente Lula. O Brasil é um modelo a seguir por seu governo?


O do Brasil é um modelo exitoso, mas o Peru é diferente do Brasil. Temos economias distintas, realidades diferentes. Da experiência do Brasil, queremos resgatar uma condução prudente e adequada da política econômica, e um crescimento econômico que permita a inclusão social e a diminuição da desigualdade social.


- O acordo do Arco do Pacífico (acordo de cooperação econômica do Peru com o Chile, a Colômbia e o México) firmado pelo presidente García ainda não foi ratificado. Você pretende levá-lo adiante ou revisá-lo?


Os acordos firmados pelo Estado têm que passar pelo Congresso e aí precisam passar por um debate para serem ratificados. Este acordo terá que ser debatido no Congresso.


- Como você vê o governo de Cristina Kirchner?

É um governo democrático que vem resolvendo seus problemas, Nós queremos melhorar nossas relações com a Argentina, respeitando a política interna do governo argentino. Parte da boa vizinhança é não se meter nos assuntos internos de outros países.


- Por que você quer ser presidente?


Eu sou pai de família. Tenho três filhos, o menor de cinco meses, e me coloco na posição de milhões de peruanos que estão iniciando uma família e que querem que seus filhos tenham oportunidades por meio de uma educação de qualidade e de uma boa saúde, e que quando saiamos para a rua com nossas famílias não sejamos assaltados. E se nos roubarem queremos encontrar justiça. Não queremos um país corrupto. Quero ser presidente porque quero que o crescimento econômico se converta em qualidade de vida. Quero construir o futuro.

- Você pensava em ser presidente desde que era oficial do exército?

Não, eu queria ser comandante geral do exército. A circunstância que mudou minha vida foi o levante que fiz em Locumba contra a ditadura fujimorista. Foi um levante dentro de um processo de convulsão social no qual o povo peruano tinha se levantado contra a ditadura. Depois disso, inclusive quis recuperar minha carreira militar e estive no exército até o ano de 2004 como militar na ativa. Quando me passaram para a reserva decidi reorganizar minha vida e foi aí que ingressei na política.

Tradução: Katarina Peixoto




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