Os Estados Unidos nunca quiseram derrubar o governo de Néstor Kirchner nem o de Cristina. Tampouco sentem alguma simpatia especial por eles, ainda que sempre tenham colaborado nos temas ligados ao terrorismo internacional. Talvez o Departamento de Estado ainda não tenha entendido o que significam, na América do Sul, governos como os de Lula, Kirchner ou Tabaré Vázquez-Pepe Mujica, mas aos poucos vão se resignando com eles e, de tabela, vão se resignando também aos de Evo Morales e Rafael Correa. O artigo é de Martín Granovsky.
Por Martín Granovsky – jornal Página 12 (reproduzido de Carta Maior, de 06/12/10)
O embaixador era um tipo simpático, entendia bem espanhol, captava inclusive as piadas com duplo sentido, lidava com muita gente diferente e lia os informes de Inteligência. Mas, além disso, tinha construído seu próprio indicador: uma vez por semana, tomava o automóvel e percorria de ponta a ponta o Camino del Buen Ayre [autopista de 23km de extensão localizada na Grande Buenos Aires] “Não quero que me contem tudo”, dizia. “Quero ver algumas coisas com meus próprios olhos”.
As vilas à beira da estrada que une o Acesso Norte com o Oeste da Grande Buenos Aires cresceram explosivamente nos anos 90. A situação social argentina e a distribuição de renda eram os assuntos que mais preocupavam os Estados Unidos? Provavelmente não. Mas esse embaixador gostava de olhar o tabuleiro completo da realidade.
Quem são os piqueteros?
Houve outro embaixador dos Estados Unidos, menos simpático, mas muito inteligente. Quando se aposentou começou a trabalhar para consórcios argentinos e norte-americanos. Nos primeiros meses de 2002, logo após o final sob tiros do governo Fernando de la Rúa-Nicolás Gallo e no início do governo de Eduardo Duhalde, o Wilson Center, de Washington, convocou um seminário com acadêmicos, políticos e jornalistas norte-americanos e argentinos. O ex-embaixador estava entre o público. Quando terminou um dos painéis ele se aproximou de um jornalista argentino.
- Posso fazer uma pergunta?
- A mim? – riu o jornalista. É você que sabe tudo da Argentina.
- Mas quero entender um fenômeno novo – rebateu o embaixador. Pode me explicar quem são os piqueteros?
O jornalista disse a ele então que as organizações piqueteras eram uma consequência da perda de emprego, da queda na sindicalização, da necessidade social de agrupar-se em meio à fragmentação e de buscar um modo de representar os desempregados em sua luta pela criação de fontes de trabalho.
- Não são extremistas? – perguntou ainda o embaixador.
- Não. São uma forma de protesto não violenta.
- E esse protesto não pode desembocar em uma nova guerrilha?
- Tampouco – respondeu o jornalista. Eu diria que eles justamente canalizam o protesto e impedirão a violência.
A conversa se prolongou por outros quinze minutos e, no final, o embaixador confessou seu alívio:
- Muito obrigado. Você não sabe a quantidade de estupidez que me dizem os empresários argentinos quando vêm aqui.
Um ex-embaixador marxista? Não. Um amante das análises reais do mesmo modo que aquele outro diplomata que todos os dias levantava informações sobre como votaria cada membro da Corte Suprema sobre a constitucionalidade da lei de Obediência Devida. Era 1978 e o diplomata não ignorava que, para ter as informações, as regras do jogo cavalheiresco indicavam que não devia só perguntar. Também devia contar qual era seu próprio cenário. E, sem dizer tudo, não mentir.
Um lutador contra a Obediência Devida? Não, um diplomata em busca de um panorama real sobre a situação militar. Na Semana Santa, os EUA tinham apoiado o governo de Raúl Alfonsín a tal ponto que foi um funcionário argentino que redigiu o rascunho do comunicado emitido pelo então embaixador Theodore Gildred repudiando o levantamento de Aldo Rico.
“Um grupo de alcaguetes”
O escândalo de Wikileaks oculta alguns dados elementares. Um é que a relação aberta dos diplomatas norte-americanos com políticos, economistas ou jornalistas sempre existiu. Outro é que há diplomatas com abertura mental e vocação de trabalho e outros mais folgados e fechados.
Um terceiro elemento é que nem todos os argentinos estabelecem o mesmo tipo de relações com os norte-americanos. Há os que se colocam de igual para igual, mesmo sabendo da enorme disparidade de poder e sustentando diferenças com a visão de mundo dos EUA ou de um governo em particular. E há aqueles que o consultor Enrique Zuleto chama, sem rodeios, “um grupo de alcaguetes”. A essa última categoria poderia pertencer alguns dos consultados em 2009 sobre a continuidade do governo de Cristina e puseram-na em dúvida diante do encarregado de negócios Thomas Kelly. O engraçado é que a conclusão de Kelly depois de escutá-los, segundo revela o telegrama 853 de Wikileaks, foi que Cristina prosseguiria no governo. Ou seja, é preciso dar uma volta a mais no raciocínio. Às vezes os EUA consultam alcaguetes sem capacidade de análise.
Por que alguns norte-americanos ainda os consultam, mesmo sendo maus analistas, é um mistério com duas hipóteses. Uma delas, a mais ingênua, é que esses norte-americanos se mimetizam com o setor mais improdutivo da classe alta argentina e a sintonia ideológica ou social acaba ofuscando sua capacidade de análise. Outra é que, ao convocá-los, estão estimulando o ego dos alcaguetes. Assim, cheios de narcisismo, eles reproduzem suas avaliações equivocadas fora do mundo diplomático convencidos, a essa altura, de que são a verdadeira representação de Washington na terra.
Deste modo, por ação ou omissão, os prognosticadores da queda de governos no curto prazo ou dólares a dez pesos terminam sendo, de fato, veículos de ação psicológica. Não há uma só resposta. Ambas as hipóteses podem conviver. Quanto à segunda (a hipótese da ação psicológica induzida), depende do grau de irritação da respectiva administração norte-americana. Não há uma resposta que possa ser tomada como regra geral. Ela varia de momento a momento e os argentinos que gostam de análise realista devem perceber as mudanças de humor em tempo real e olhar para todas as faces dos Estados Unidos: a Casa Branca, a diplomacia, as empresas, os grandes meios de comunicação, o Departamento do Tesouro, as mudanças na CIA e na estrutura de inteligência, Wall Street, o peso de cada embaixador e as questões estratégico-militares.
Um caso interessante é o de Terence Todman. Embaixador entre 1989 e 1992, deixou correr a ideia falsa de que era um grande lobista dos Estados Unidos. Não era. Todas as privatizações terminaram em mãos europeias. Mas garantiu o fim dos testes com mísseis e parceria nuclear (o Condor II, a cooperação com o Irã) e o fez de tal forma que a Argentina não terminou com ambas as aventuras por um acordo com o Brasil, mas sim as entregando a Washington. O raciocínio da equipe do chanceler Guido Di Tella e do vice-chanceler Andrés Cisneros era que esse modo de representar o alinhamento mundial, que havia começado com a participação argentina na coalizão para a primeira guerra do Golfo, seria vantajoso para a Argentina. A lenda diz que as relações carnais foram econômicas. A realidade, que foram estratégico-militares.
Um bom conselho
Wikileaks mostra só uma cara das relações dos Estados Unidos com cada país: a coleta de dados. E mostra somente uma parte dessa tarefa. Não há telegramas sobre as negociações de alto nível, nem relatórios escritos pela Agência Central de Inteligência ou pela inteligência militar, que depende do Departamento de Defesa, o famoso Pentágono. É óbvio que para um país convertido desde 1991, quando caiu a União Soviética, na única superpotência econômica e militar, ao menos até a crise financeira mundial de 2008, a recompilação informativa é acompanhada de ação.
Salvo um telegrama sobre as Malvinas, de fins de 66, a informação do Wikileaks sobre a Argentina filtrada até agora se limita aos governos de Néstor e Cristina Kirchner.
O que Washington quis fazer na Argentina, além de saber o que estava ocorrendo?
Neste ponto, convém citar o conselho de um experiente acadêmico, Abraham Lowenthal, em 1986, durante a crise centro-americana.
- Você não se decepcione com o que vou dizer – refletiu certa vez, durante visita a Buenos Aires. A política específica dos Estados Unidos para a Argentina não existe. A Argentina não é um grande problema nem uma grande oportunidade para os Estados Unidos.
Diante da pergunta de como se situar analiticamente frente a seu diagnóstico, Lowenthal disse:
- É fácil responder, mas é mais difícil o trabalho. Você deve agir por dedução. Deve analisar toda a política dos EUA, a interna em primeiro lugar e a externa depois, e deduzir que efeitos terá para a Argentina. Se não jamais entenderá nada.
Dez indícios
Um exercício em homenagem à sabedoria de Lowenthal poderia incluir, hoje, os seguintes indícios:
Primeiro, Néstor Kirchner assumiu apenas um ano e meio depois do ataque às Torres Gêmeas.
Segundo, George Bush estava preocupado de maneira quase exclusiva com a Al Qaeda.
Terceiro, Buenos Aires havia sido vítima de dois atentados de origem externa, em 1992 e em 1994.
Quarto, estava clara a nula simpatia de Néstor e Cristina Kirchner pela Al Qaeda. E havia sido nítida a crítica de Cristina, como legisladora nacional, durante o caso AMIA, às manobras da Justiça e do Executivo para travar a investigação.
Quinto, na América Latina, a Argentina não era um desafio nem objetivo (por poder real) nem subjetivo (por ideologia manifesta) ao poderio militar dos EUA. A maior contradição real terminou sendo a questão de integrar ou não uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), um projeto que acabou sepultado na Cúpula de Mar del Plata, em 2005, pela ação coordenada de Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva.
Sexto, quando Kirchner assumiu, Bush acabava de começar a guerra do Iraque. Kirchner assumiu o cargo no dia 25 de maio de 2003. Bush invadiu o Iraque no dia 20 de março.
Sétimo, depois do Iraque veio a preocupação norte-americana com o Irã.
Oitavo, a Argentina acabou se enfrentando diretamente com o Irã, a tal ponto que não há relação diplomática em nível de embaixadores, logo depois de pedir a extradição de cidadãos iranianos, que Teerã negou à Interpol.
Nono, Washington participou da tentativa de golpe na Venezuela, em 11 de abril de 2002, ou seja, apenas um ano antes do início do governo Kirchner. Fracassou pela debilidade da elite anti-chavista e, desde esse momento, escolheu uma tática de erosão de Hugo Chávez.
Décimo, nem Néstor nem Cristina Kirchner foram chavistas. Sempre implementaram uma política com duas metas. Por um lado, de amizade e integração com a Venezuela. Por outro, junto com o Brasil, de fator moderador de Chávez. É lógico que os EUA procuraram castigar o primeiro objetivo. O caso de Guido Antonini Wilson revela a conexão entre o pior de cada caso e, ao mesmo tempo, deixa um dado que alguma liberação de informes de inteligência com base em Miami poderá esclarecer no futuro: a quem Antonini, hoje residente nos EUA, respondia no princípio ou no final da história.
(N.T. Guido Antonini Wilson é um empresário venezuelano-estadunidense, conhecido por ser um dos protagonistas no escândalo da maleta envolvendo Argentina e Venezuela. Antonini foi detido, em agosto de 2007, no aeroparque Jorge Newbery, de Buenos Aires, onde chegou em um vôo fretado por empregados da PDVSA e oficiais argentinos, portando uma maleta com 790.550 dólares, que não declarou às autoridades aduaneiras).
A conclusão dos dez pontos mencionados é aquela que qualquer observador sério pode ver. Os Estados Unidos nunca quiseram derrubar o governo de Néstor Kirchner nem o de Cristina. Tampouco sentem alguma simpatia especial por eles, ainda que sempre tenham colaborado nos temas ligados ao terrorismo internacional. Talvez o Departamento de Estado ainda não tenha entendido o que significam, na América do Sul, governos como os de Lula, Kirchner ou Tabaré Vázquez-Pepe Mujica, mas aos poucos vão se resignando com eles e, de tabela, vão se resignando também aos de Evo Morales e Rafael Correa.
O INR, uma chave
O desafio para os analistas argentinos, para além da ideologia de cada um, é se ficarão tão bobos como os informes mais bobos da embaixada ou tão realistas e curiosos como aqueles dois embaixadores e o diplomata que preferia a informação às previsões de Horangel [famoso astrólogo argentino].
- Todos dizem que eu investigo, mas minha fonte é a lista telefônica – brincava o grande editor Jacob Timerman.
Assim destacava a necessidade de analisar os dados públicos e não somente as fofocas, que por outro lado o encantavam para que um artigo fosse – como ele dizia – “bem crocante”.
Um bom exemplo é o famoso questionário enviado pelo Departamento de Estado à sua embaixada em Buenos Aires em 2009 sobre as atitudes de Cristina Kirchner e como ela lida com o estresse.
No telegrama difundido por Wikileaks aparece uma sigla: INR. A internet é uma ferramenta perigosa se alguém quiser usá-la para substituir os livros ou a formação prévia, porque não a suplanta, mas facilita muito as coisas. Vão, por favor, ao Google e digitem INR + State Department. O resultado da pesquisa remeterá para esta página http://www.state.gov/s/inr/. Ali se lê, em inglês, “Bureau of Intelligence and Research” (Escritório de Inteligência e Investigação). As duas primeiras letras de INR são as primeiras de “intelligence”. A última é o “erre” de pesquisa, investigação.
Ali se lê: “O Escritório de Inteligência e Investigação é encabeçado pelo secretário adjunto Philip S. Goldberg. Sua missão primária é aproveitar a inteligência para servir à diplomacia dos Estados Unidos. Ao recorrer à inteligência de todos os tipos de fontes, o INR fornece análises independentes com valor agregado sobre os fatos aos encarregados de realizar as políticas do Departamento de Estado. Assegura que as atividades de inteligência respaldem a política externa e os objetivos da segurança nacional. E serve como núcleo do Departamento de Estado para garantir políticas de contra-inteligência e de cumprimento da lei. O escritório também analisa problemas geográficos e de limites internacionais. O INR é membro da comunidade de inteligência dos Estados Unidos”.
O INR é conhecido entre os investigadores norte-americanos por um antecedente. Em 2002 foi o setor da comunidade de inteligência que fez uma advertência interna. Disse que o Iraque não dispunha dos tubos de alumínio necessários para as centrífugas capazes de produzir urânio enriquecido para uso militar. Bush, no entanto, falou publicamente desses tubos, do mesmo modo que relacionou o Iraque com a Al Qaeda, apesar do então diretor da CIA, George Tenet, ter dito que a ditadura de Saddam Hussein não tinha relação alguma com o terrorismo islâmico. Os tubos, o urânio e a Al Qaeda foram os três argumentos usados por Bush para lançar a guerra de 2003.
O Wikileaks é divertido. Crocante. Mas, além dele, estão aí a história e o “Camino del Buen Ayre”.
martin.granovsky@gmail.com
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Por Martín Granovsky – jornal Página 12 (reproduzido de Carta Maior, de 06/12/10)
O embaixador era um tipo simpático, entendia bem espanhol, captava inclusive as piadas com duplo sentido, lidava com muita gente diferente e lia os informes de Inteligência. Mas, além disso, tinha construído seu próprio indicador: uma vez por semana, tomava o automóvel e percorria de ponta a ponta o Camino del Buen Ayre [autopista de 23km de extensão localizada na Grande Buenos Aires] “Não quero que me contem tudo”, dizia. “Quero ver algumas coisas com meus próprios olhos”.
As vilas à beira da estrada que une o Acesso Norte com o Oeste da Grande Buenos Aires cresceram explosivamente nos anos 90. A situação social argentina e a distribuição de renda eram os assuntos que mais preocupavam os Estados Unidos? Provavelmente não. Mas esse embaixador gostava de olhar o tabuleiro completo da realidade.
Quem são os piqueteros?
Houve outro embaixador dos Estados Unidos, menos simpático, mas muito inteligente. Quando se aposentou começou a trabalhar para consórcios argentinos e norte-americanos. Nos primeiros meses de 2002, logo após o final sob tiros do governo Fernando de la Rúa-Nicolás Gallo e no início do governo de Eduardo Duhalde, o Wilson Center, de Washington, convocou um seminário com acadêmicos, políticos e jornalistas norte-americanos e argentinos. O ex-embaixador estava entre o público. Quando terminou um dos painéis ele se aproximou de um jornalista argentino.
- Posso fazer uma pergunta?
- A mim? – riu o jornalista. É você que sabe tudo da Argentina.
- Mas quero entender um fenômeno novo – rebateu o embaixador. Pode me explicar quem são os piqueteros?
O jornalista disse a ele então que as organizações piqueteras eram uma consequência da perda de emprego, da queda na sindicalização, da necessidade social de agrupar-se em meio à fragmentação e de buscar um modo de representar os desempregados em sua luta pela criação de fontes de trabalho.
- Não são extremistas? – perguntou ainda o embaixador.
- Não. São uma forma de protesto não violenta.
- E esse protesto não pode desembocar em uma nova guerrilha?
- Tampouco – respondeu o jornalista. Eu diria que eles justamente canalizam o protesto e impedirão a violência.
A conversa se prolongou por outros quinze minutos e, no final, o embaixador confessou seu alívio:
- Muito obrigado. Você não sabe a quantidade de estupidez que me dizem os empresários argentinos quando vêm aqui.
Um ex-embaixador marxista? Não. Um amante das análises reais do mesmo modo que aquele outro diplomata que todos os dias levantava informações sobre como votaria cada membro da Corte Suprema sobre a constitucionalidade da lei de Obediência Devida. Era 1978 e o diplomata não ignorava que, para ter as informações, as regras do jogo cavalheiresco indicavam que não devia só perguntar. Também devia contar qual era seu próprio cenário. E, sem dizer tudo, não mentir.
Um lutador contra a Obediência Devida? Não, um diplomata em busca de um panorama real sobre a situação militar. Na Semana Santa, os EUA tinham apoiado o governo de Raúl Alfonsín a tal ponto que foi um funcionário argentino que redigiu o rascunho do comunicado emitido pelo então embaixador Theodore Gildred repudiando o levantamento de Aldo Rico.
“Um grupo de alcaguetes”
O escândalo de Wikileaks oculta alguns dados elementares. Um é que a relação aberta dos diplomatas norte-americanos com políticos, economistas ou jornalistas sempre existiu. Outro é que há diplomatas com abertura mental e vocação de trabalho e outros mais folgados e fechados.
Um terceiro elemento é que nem todos os argentinos estabelecem o mesmo tipo de relações com os norte-americanos. Há os que se colocam de igual para igual, mesmo sabendo da enorme disparidade de poder e sustentando diferenças com a visão de mundo dos EUA ou de um governo em particular. E há aqueles que o consultor Enrique Zuleto chama, sem rodeios, “um grupo de alcaguetes”. A essa última categoria poderia pertencer alguns dos consultados em 2009 sobre a continuidade do governo de Cristina e puseram-na em dúvida diante do encarregado de negócios Thomas Kelly. O engraçado é que a conclusão de Kelly depois de escutá-los, segundo revela o telegrama 853 de Wikileaks, foi que Cristina prosseguiria no governo. Ou seja, é preciso dar uma volta a mais no raciocínio. Às vezes os EUA consultam alcaguetes sem capacidade de análise.
Por que alguns norte-americanos ainda os consultam, mesmo sendo maus analistas, é um mistério com duas hipóteses. Uma delas, a mais ingênua, é que esses norte-americanos se mimetizam com o setor mais improdutivo da classe alta argentina e a sintonia ideológica ou social acaba ofuscando sua capacidade de análise. Outra é que, ao convocá-los, estão estimulando o ego dos alcaguetes. Assim, cheios de narcisismo, eles reproduzem suas avaliações equivocadas fora do mundo diplomático convencidos, a essa altura, de que são a verdadeira representação de Washington na terra.
Deste modo, por ação ou omissão, os prognosticadores da queda de governos no curto prazo ou dólares a dez pesos terminam sendo, de fato, veículos de ação psicológica. Não há uma só resposta. Ambas as hipóteses podem conviver. Quanto à segunda (a hipótese da ação psicológica induzida), depende do grau de irritação da respectiva administração norte-americana. Não há uma resposta que possa ser tomada como regra geral. Ela varia de momento a momento e os argentinos que gostam de análise realista devem perceber as mudanças de humor em tempo real e olhar para todas as faces dos Estados Unidos: a Casa Branca, a diplomacia, as empresas, os grandes meios de comunicação, o Departamento do Tesouro, as mudanças na CIA e na estrutura de inteligência, Wall Street, o peso de cada embaixador e as questões estratégico-militares.
Um caso interessante é o de Terence Todman. Embaixador entre 1989 e 1992, deixou correr a ideia falsa de que era um grande lobista dos Estados Unidos. Não era. Todas as privatizações terminaram em mãos europeias. Mas garantiu o fim dos testes com mísseis e parceria nuclear (o Condor II, a cooperação com o Irã) e o fez de tal forma que a Argentina não terminou com ambas as aventuras por um acordo com o Brasil, mas sim as entregando a Washington. O raciocínio da equipe do chanceler Guido Di Tella e do vice-chanceler Andrés Cisneros era que esse modo de representar o alinhamento mundial, que havia começado com a participação argentina na coalizão para a primeira guerra do Golfo, seria vantajoso para a Argentina. A lenda diz que as relações carnais foram econômicas. A realidade, que foram estratégico-militares.
Um bom conselho
Wikileaks mostra só uma cara das relações dos Estados Unidos com cada país: a coleta de dados. E mostra somente uma parte dessa tarefa. Não há telegramas sobre as negociações de alto nível, nem relatórios escritos pela Agência Central de Inteligência ou pela inteligência militar, que depende do Departamento de Defesa, o famoso Pentágono. É óbvio que para um país convertido desde 1991, quando caiu a União Soviética, na única superpotência econômica e militar, ao menos até a crise financeira mundial de 2008, a recompilação informativa é acompanhada de ação.
Salvo um telegrama sobre as Malvinas, de fins de 66, a informação do Wikileaks sobre a Argentina filtrada até agora se limita aos governos de Néstor e Cristina Kirchner.
O que Washington quis fazer na Argentina, além de saber o que estava ocorrendo?
Neste ponto, convém citar o conselho de um experiente acadêmico, Abraham Lowenthal, em 1986, durante a crise centro-americana.
- Você não se decepcione com o que vou dizer – refletiu certa vez, durante visita a Buenos Aires. A política específica dos Estados Unidos para a Argentina não existe. A Argentina não é um grande problema nem uma grande oportunidade para os Estados Unidos.
Diante da pergunta de como se situar analiticamente frente a seu diagnóstico, Lowenthal disse:
- É fácil responder, mas é mais difícil o trabalho. Você deve agir por dedução. Deve analisar toda a política dos EUA, a interna em primeiro lugar e a externa depois, e deduzir que efeitos terá para a Argentina. Se não jamais entenderá nada.
Dez indícios
Um exercício em homenagem à sabedoria de Lowenthal poderia incluir, hoje, os seguintes indícios:
Primeiro, Néstor Kirchner assumiu apenas um ano e meio depois do ataque às Torres Gêmeas.
Segundo, George Bush estava preocupado de maneira quase exclusiva com a Al Qaeda.
Terceiro, Buenos Aires havia sido vítima de dois atentados de origem externa, em 1992 e em 1994.
Quarto, estava clara a nula simpatia de Néstor e Cristina Kirchner pela Al Qaeda. E havia sido nítida a crítica de Cristina, como legisladora nacional, durante o caso AMIA, às manobras da Justiça e do Executivo para travar a investigação.
Quinto, na América Latina, a Argentina não era um desafio nem objetivo (por poder real) nem subjetivo (por ideologia manifesta) ao poderio militar dos EUA. A maior contradição real terminou sendo a questão de integrar ou não uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), um projeto que acabou sepultado na Cúpula de Mar del Plata, em 2005, pela ação coordenada de Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva.
Sexto, quando Kirchner assumiu, Bush acabava de começar a guerra do Iraque. Kirchner assumiu o cargo no dia 25 de maio de 2003. Bush invadiu o Iraque no dia 20 de março.
Sétimo, depois do Iraque veio a preocupação norte-americana com o Irã.
Oitavo, a Argentina acabou se enfrentando diretamente com o Irã, a tal ponto que não há relação diplomática em nível de embaixadores, logo depois de pedir a extradição de cidadãos iranianos, que Teerã negou à Interpol.
Nono, Washington participou da tentativa de golpe na Venezuela, em 11 de abril de 2002, ou seja, apenas um ano antes do início do governo Kirchner. Fracassou pela debilidade da elite anti-chavista e, desde esse momento, escolheu uma tática de erosão de Hugo Chávez.
Décimo, nem Néstor nem Cristina Kirchner foram chavistas. Sempre implementaram uma política com duas metas. Por um lado, de amizade e integração com a Venezuela. Por outro, junto com o Brasil, de fator moderador de Chávez. É lógico que os EUA procuraram castigar o primeiro objetivo. O caso de Guido Antonini Wilson revela a conexão entre o pior de cada caso e, ao mesmo tempo, deixa um dado que alguma liberação de informes de inteligência com base em Miami poderá esclarecer no futuro: a quem Antonini, hoje residente nos EUA, respondia no princípio ou no final da história.
(N.T. Guido Antonini Wilson é um empresário venezuelano-estadunidense, conhecido por ser um dos protagonistas no escândalo da maleta envolvendo Argentina e Venezuela. Antonini foi detido, em agosto de 2007, no aeroparque Jorge Newbery, de Buenos Aires, onde chegou em um vôo fretado por empregados da PDVSA e oficiais argentinos, portando uma maleta com 790.550 dólares, que não declarou às autoridades aduaneiras).
A conclusão dos dez pontos mencionados é aquela que qualquer observador sério pode ver. Os Estados Unidos nunca quiseram derrubar o governo de Néstor Kirchner nem o de Cristina. Tampouco sentem alguma simpatia especial por eles, ainda que sempre tenham colaborado nos temas ligados ao terrorismo internacional. Talvez o Departamento de Estado ainda não tenha entendido o que significam, na América do Sul, governos como os de Lula, Kirchner ou Tabaré Vázquez-Pepe Mujica, mas aos poucos vão se resignando com eles e, de tabela, vão se resignando também aos de Evo Morales e Rafael Correa.
O INR, uma chave
O desafio para os analistas argentinos, para além da ideologia de cada um, é se ficarão tão bobos como os informes mais bobos da embaixada ou tão realistas e curiosos como aqueles dois embaixadores e o diplomata que preferia a informação às previsões de Horangel [famoso astrólogo argentino].
- Todos dizem que eu investigo, mas minha fonte é a lista telefônica – brincava o grande editor Jacob Timerman.
Assim destacava a necessidade de analisar os dados públicos e não somente as fofocas, que por outro lado o encantavam para que um artigo fosse – como ele dizia – “bem crocante”.
Um bom exemplo é o famoso questionário enviado pelo Departamento de Estado à sua embaixada em Buenos Aires em 2009 sobre as atitudes de Cristina Kirchner e como ela lida com o estresse.
No telegrama difundido por Wikileaks aparece uma sigla: INR. A internet é uma ferramenta perigosa se alguém quiser usá-la para substituir os livros ou a formação prévia, porque não a suplanta, mas facilita muito as coisas. Vão, por favor, ao Google e digitem INR + State Department. O resultado da pesquisa remeterá para esta página http://www.state.gov/s/inr/. Ali se lê, em inglês, “Bureau of Intelligence and Research” (Escritório de Inteligência e Investigação). As duas primeiras letras de INR são as primeiras de “intelligence”. A última é o “erre” de pesquisa, investigação.
Ali se lê: “O Escritório de Inteligência e Investigação é encabeçado pelo secretário adjunto Philip S. Goldberg. Sua missão primária é aproveitar a inteligência para servir à diplomacia dos Estados Unidos. Ao recorrer à inteligência de todos os tipos de fontes, o INR fornece análises independentes com valor agregado sobre os fatos aos encarregados de realizar as políticas do Departamento de Estado. Assegura que as atividades de inteligência respaldem a política externa e os objetivos da segurança nacional. E serve como núcleo do Departamento de Estado para garantir políticas de contra-inteligência e de cumprimento da lei. O escritório também analisa problemas geográficos e de limites internacionais. O INR é membro da comunidade de inteligência dos Estados Unidos”.
O INR é conhecido entre os investigadores norte-americanos por um antecedente. Em 2002 foi o setor da comunidade de inteligência que fez uma advertência interna. Disse que o Iraque não dispunha dos tubos de alumínio necessários para as centrífugas capazes de produzir urânio enriquecido para uso militar. Bush, no entanto, falou publicamente desses tubos, do mesmo modo que relacionou o Iraque com a Al Qaeda, apesar do então diretor da CIA, George Tenet, ter dito que a ditadura de Saddam Hussein não tinha relação alguma com o terrorismo islâmico. Os tubos, o urânio e a Al Qaeda foram os três argumentos usados por Bush para lançar a guerra de 2003.
O Wikileaks é divertido. Crocante. Mas, além dele, estão aí a história e o “Camino del Buen Ayre”.
martin.granovsky@gmail.com
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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