Raquel Rolnik, relatora especial da ONU desde 2008: "O governo formaliza o 'regime legal especial', de acordo com as exigências da FIFA" |
Pode-se dizer que a abertura desta matéria foi uma espécie de consenso a que chegaram os participantes do seminário Impactos Urbanos e Violações de Direitos Humanos em Megaeventos Esportivos, realizado na segunda e terça-feira, dias 8 e 9, em São Paulo, e organizado pela Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP (Universidade de São Paulo) e o Núcleo de Direito à Cidade do Departamento Jurídico XI de Agosto (do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP).
Stavros Stavridis, Tatiane Passarini (tradutora), Alan Mabin, Raquel Rolnik e Guilherme Marques (Soninho) |
Ativistas sociais, a maioria ligada a movimentos por moradia popular, no auditório da Faculdade de Direito da USP |
A chacina do Complexo do Alemão serviu de aviso
Guilherme Marques, conhecido como Soninho, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR, da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ), fez uma comparação para reforçar a ideia da situação excepcional instalada nas cidades, no seu caso no Rio, onde aconteceu o Pan-Americano: sabemos que uma embaixada de qualquer país é considerada como um território daquele país, então no caso das áreas relacionadas com o evento, elas passam a ser, da mesma forma, "território" da FIFA ou do COI. É o que vai ocorrer nas cidades brasileiras que hospedarão a Copa de 2014 e no Rio em 2016 com os Jogos Olímpicos (alarmado, ele lembrou que o Rio receberá ainda os Jogos Mundiais Militares, em 2011, Copa das Confederações, 2013, e Copa América, em 2015). No embalo de tantos eventos, os empresários do ramo hoteleiro conseguiram isenção fiscal até 2020, ressaltou Soninho. Contou um fato exemplar: poucos dias do início do Pan, em junho/2007, a polícia matou em torno de duas dezenas de pessoas (segundo ele, até hoje há controvérsias sobre o número exato) no Complexo do Alemão, o que serviu de alerta para as comunidades mais pobres de como eram as normas durante os jogos.
O legado deixado pelo Pan, conforme avaliação do pesquisador do IPPUR, foram as dívidas e as armas e equipamentos comprados para as forças policiais. Benefícios em setores como moradia, transporte, saúde e eduação, não houve - garantiu -, acrescentando que até representantes dos governos federal, estadual e municipal já reconheceram isso. Fez a ressalva: "Legado positivo, se existiu, foi o incremento das lutas urbanas, a experiência de resistência das comunidades populares, a articulação das redes de resistência".
O que há é "a ditadura direta do capital nacional e internacional"
Ainda sobre a supremacia das "leis" da FIFA e do COI, o professor Carlos Vainer, da UFRJ, fez uma palestra, de caráter mais teórico, recheada de ironias e bom-humor, destacando a suspensão das leis para que os negócios prosperem. Falou da "cidade de exceção", do predomínio da "flexibilidade", das "normas especiais para os acordos com as conveniências do momento", "não há partidos, não há democracia representativa burguesa, não há parlamento", o que há são as PPPs (Parcerias Público Privado), o que há é "a ditadura direta do capital nacional e internacional". Para concluir que "quanto à luta democrática, parece que estamos apenas começando". Antes da conclusão, mencionou, sempre irônico, a "grande obra" do ex-prefeito do Rio, César Maia, autor do Plano Diretor da cidade, dando luz verde para os grandes negócios.
Inalva Brito (da Vila Autódromo-Rio), Carlos Vainer, Raquel, Rodrigo Faria (mestrando da FAU), Priscila Neri (tradutora) e professor John Horne (da Universidade de Lancashire, Inglaterra) |
Benedito Barbosa (Dito) prevê o aumento das remoções de moradias nas comunidades pobres de São Paulo |
Dito, representando São Paulo, participou de uma plenária, durante a tarde da segunda-feira, com militantes e dirigentes de movimentos sociais de Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre e Rio de Janeiro, cidades que sediarão a Copa de 2014 (não estiveram presentes representantes de Recife e Salvador). Trocaram experiências, discutiram propostas e todos ressaltaram o empenho na resistência diante das ameaças contra as comunidades pobres, embora ficasse claro que em algumas das cidades a articulação está apenas começando. Realçaram a importância de apoio jurídico, do Ministério Público e das Defensorias Públicas, o que, em alguns casos, já vem funcionando.
Como dizer ao povo que os megaeventos esportivos pioram sua vida?
Na verdade, foi uma maratona de palestras e discurssões na segunda-feira, das 10 horas da manhã até as 10 da noite, no Auditório Pinheiro Neto da Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco, centro da capital paulista). Houve mais duas plenárias, uma pela manhã e outra à noite. Umas 100 pessoas estavam presentes. No segundo dia, terça, dia 9, houve reunião pela manhã para que os militantes "amarrassem" mais os encaminhamentos das propostas. A palavra de ordem é tentar resistir, mesmo porque não há outra saída: segundo ficou claro nos debates, as cidades são pensadas e planejadas para os negócios e a exclusão dos pobres faz parte dos negócios, a maioria deles feitos com financiamento público, através, por exemplo, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - muitos lembraram este agravante. Os megaeventos esportivos são apenas uma espécie de pretexto, um momento especial, quando tal orientação é incrementada. Como ocorre também, por exemplo, nas calamidades provocadas por enchentes, quando o poder público aponta rapidamente as "áreas de risco" e toca a remover famílias pobres.
Um difícil problema foi discutido por muitos dos participantes e pareceu angustiar parte deles. A Copa e os Jogos Olímpicos são ruins ou bons, são eventos positivos ou negativos? O professor Stavros Stavridis, da Universidade Nacional de Atenas, que falou da experiência da Olimpíada na Grécia, não tem dúvidas: são ruins, "não melhoram em nada a vida do povo, ao contrário, pioram", principalmente, claro, no ítem moradia. Aí é que está o dilema: mesmo reconhecendo melhorias pontuais, como pode acontecer com os transportes públicos, para os ativistas e estudiosos que participaram do encontro, os grandes eventos do esporte terminam prejudicando os mais pobres. Mas como dizer isso para a maioria, incluindo os pobres? Afinal, os governos, os empresários, os meios de comunicação, a nação inteira (ou quase toda) estão a aplaudir tais eventos e seus atletas, todos (ou quase todos) estufando o peito de entusiasmo e patriotismo: "Pra frente, Brasil, salve a Seleção!" Então, que fazer? Os defensores da moradia popular buscam a resposta.
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