(Enquanto resolvo os problemas burocráticos da chegada e tento me adaptar a uma nova cidade, desta vez Buenos Aires, reproduzo para meus leitores a entrevista abaixo, publicada em 27/07/2010 pelo blog Fazendo Media: a média que a mídia faz. Mudei somente o título: COLETIVO LUTARMADA LANÇA NOVO CD. As fotos são também do Fazendo Media).
Por Alexandre Braz
Gas-PA além de rapper é militante político, usa a arte para a conscientização em busca de uma sociedade mais justa. Por meio do Coletivo LUTARMADA desenvolve trabalhos de base com projetos políticos e cursos de formação na periferia do Rio de Janeiro, em paralelo à produção musical. Em entrevista ao Fazendo Media, ele fala sobre o seu mais novo CD, analisa as corporações de mídia e comenta sobre o hip hop brasileiro nos dias de hoje.
Quantos CDs O Levante já lançou? As letras do disco são todas de sua autoria?
Dois CDs: O Temeremos mais a miséria do que a morte, e agora o Estado de direito. Estado de direira. No primeiro, tirando uma letra que tem coautoria do K-Lot (um MC da velha escola fluminense, que também acaba de lançar um CD), todas as outras são de minha autoria, e o Mimil só interpretava as músicas. Mas no Estado de direito. Estado de direita, não. Esse é até um papo que me emociona, pois me faz lembrar que há 4 anos eu fui lá na favela que ele mora e levei o primeiro livro. Depois ofereci outro. O terceiro eu já nem precisei levar. Mimil, que tinha uns 25 cm menos do que tem hoje, foi lá em casa buscar. Hoje, ele que no começo era apenas um fã, é autor de duas letras desse disco. Fiz uma parte da Meu Estilo de Vida, já a Combativo e Internacionalista, foi o contrário. Ele apareceu com uma letra pronta, sem refrão. Daí eu fiz o refrão, botei mais meia dúzia de versos, e a música ficou daquele jeito. O nome disso é trabalho de base.
Queria que você falasse da escolha do nome do disco.
Estado de direito. Estado de direita, é por que sabemos que o Direito é só uma forma de legitimar a dominação, já que a propriedade privada dos meios de produção é assegurada no Estado burguês. E todos os outros “direitos” são apenas uma conseqüência desse, por isso até que nós o conquistemos ele será de direita.
E as fotos da capa e contra-capa (uma foto histórica do Luiz Morier) do cd?
A capa é pra mostrar qual o direito que nós temos nesse Estado. Nela mostramos dois momentos de uma mesma instituição: no escravismo e no capitalismo. Antes, sob o nome de Capitão do Mato, ela caçava, prendia e matava pretos e pretas. Hoje, mais de um século de república, com o nome de polícia, ela caça, prende e mata pretos e pretas. E as duas fotos, mostrando pessoas pretas amarradas, umas às outras pelo pescoço, tanto no escravismo, quanto no capitalismo, é para mostrar o “quanto que esse país mudou”, de lá pra cá.
Você acha que a mídia contribui para a criminalização da pobreza no Rio?
Lógico. Fizemos dois eventos em uma casa noturna tradicionalmente roqueira, mas que nos abriu as portas. Demos o serviço para todos os jornais, e alguns divulgaram o nosso evento. Tentamos a mesma coisa quando fizemos o 1º Hip Hop ao Trabalho, que é nosso evento anual, nos 1º de Maio, em alguma das favelas de Costa Barros. Nenhum veículo divulgou.
Mas por quê? Nesse dia se apresentaram o B Negão e a atriz/DJ Gisele Frade, duas pessoas com nomes já projetados no mercado cultural. Mesmo assim, nenhuma linha. Porra, nós estávamos levando cultura pro bagulho. Se ao invés de caixas de som, microfones, pick ups, discos, nós estivéssemos entrando de granada, fuzil, pistola… nossos nomes estariam em todos os jornais. A mídia burguesa só gosta de repercutir o que as favelas têm de ruim, ou algo de bom mas que não seja de iniciativa da própria favela. Tem que ter a impressão digital de Celso Ataíde, José Junior, Rubens Cesar Fernandes, ou outro antropófago social qualquer.
Às vezes ela faz pior, pega algo de positivo e transforma em ameaça à sociedade. E isso não é por acaso, tem intencionalidade política. Quem só tem acesso à “realidade” via mídia burguesa, vai acabar acreditando que na favela só tem crime e violência. Que a violência é a única língua que a favela conhece. Assim sendo, nada mais legítimo que a violência com a qual o Estado trata a favela. Afinal, se for de outro jeito a favela não entende.
E essas pessoas que crêem nessa “verdade” estão aptas a crer também que, se não é a policia, tem que ser as ONGs, afinal, um povo que só entende a língua da violência não é capaz de estabelecer nenhuma forma de organização pacífica para produzir cultura, atividades esportivas e superar os seus problemas.
Vocês usam muito o termo “revolução”. Como você imagina essa revolução numa sociedade tão despolitizada e com os jovens tão desinteressados pelos caminhos e pelo futuro do nosso país?
Tem que haver um trabalho árduo de educação da militância de esquerda, e ela parece que tem nojo de favela e periferia. A esquerda partidária, então, só pisa lá de 2 em 2 anos, ou para faturar em cima dos corpos do desabamento ou da chacina policial. Por isso nos atos o que se vê são as mesmas caras. Até em ato contra a criminalização da pobreza, da qual são vítimas os favelados, a favela está ausente. Por quê?
A favela e a periferia são os terrenos mais férteis para o senso comum. Quem deveria combater esse senso comum - que faz naturalizar a violência do Estado contra o povo preto e pobre - se viciou em centro da cidade. O único ano em que o Grito dos Excluídos não aconteceu no centro, ele foi para Zona Sul! Pro asfalto!
Estamos passando por um descenso das massas, e essa situação não vai se alterar sozinha. Ou essa militância se oferece ao trabalho de base, onde estão as bases da sociedade, ou vai ficar o resto dos dias reclamando que a juventude está despolitizada. A Globo está todo dia lá fazendo o seu trabalho de base. As ONGs, também. Engana-se quem diz que o único braço do Estado a entrar na favela é a polícia. O Estado está lá diariamente. Vai lá e veja o esgoto a céu aberto, a escola com 2, 3 turmas em cada sala, o posto médico sem médico nem remédio, o crack, a coca, o fuzil, a granada, a TV tela-plana financiada… isso é ou não é a presença do ”Estado de direita”?
Outro equívoco é achar que a juventude está despreocupada com o futuro, desmobilizada. Veja quantos jovens estão envolvidos em projetos do 3º setor. É muita gente preocupada com o futuro, mas dentro de uma perspectiva neoliberal. Fazer o quê? Tem quase ninguém para disputar essas consciências com o inimigo! É preciso chegar nesses espaços antes do desabamento e antes da chacina, mas para isso temos que educar a esquerda.
Na música “A verdadeira mulher da minha vida” você expressa a preocupação de um pai em relação ao futuro da filha. Como você sonha o mundo para estas novas gerações que virão?
Um mundo onde o alimento exista pra matar a fome, e não pra enriquecer ninguém; onde medicina exista pra salvar vidas, prevenir e curar enfermidades, e não pra enriquecer ninguém; onde a arte e o esporte existam pra trazer prazer e saúde física e mental, e não pra enriquecer ninguém; onde a solidariedade não seja uma mercadoria vendida nas prateleiras das ONGs; onde a informação não seja uma mercadoria e nem uma ferramenta de manipular as mentes; onde a educação sirva para se formar seres humanos dignos e plenos, e não para enriquecer ninguém; onde não exista mais dominados e dominantes, por razão nenhuma. Mas isso eu sei que só com muita luta.
Um alvo das suas letras é a televisão, especialmente a Rede Globo. Qual a dimensão do desserviço que esta emissora causa na nossa sociedade?
Desserviço dependendo do ponto de vista, pois para a burguesia ela cumpre o papel que se espera. Ela elege presidente, depois faz derrubar o presidente que elegeu. Ela faz o povo clamar por um ataque contra a Bolívia, quando seu presidente resolve pôr fim à exploração das suas riquezas por uma transnacional. Ela faz o povo ter medo do Chávez, achando que ele, e não os EUA, quer dominar o mundo. Ela joga no lixo a auto-estima da mulher preta, fazendo ela acreditar que só pode ser bonita se se aproximar de um padrão estético que não é o seu. Ela faz o povo repudiar movimentos legítimos como o MST. Consegue deformar outros movimentos, como o Hip Hop, que através das suas telas é um movimento inofensivo, ostensivo, e acéfalo.
O que é o Hip Hop pra você? E qual o poder de transformação social que ele tem?
Ele é meio que minha vida, eu sou um apaixonado por ele. Como eu sou um cara sensível, meus olhos se enchem d’água quando ouço alguma música do Facção Central, ou a Corpo em evidência, do grupo Visão de Rua; quando eu vejo algum moleque ou mina de uma oficina nossa fazendo um movimento com maior grau de dificuldade, no Break; quando eu vejo um graffiti bem feito provocando reflexão sobre o nosso cotidiano; quando eu vejo uma performance bem criativa e bem elaborada nos toca-discos; quando eu vejo alguém fazendo um beat-box, que se tu fechar os olhos, tu vai pensar que tem uma banda tocando. Eu amo o Hip Hop, ele mudou a minha vida. Não só a minha, mas a de uma porrada de gente. Pra melhor, e, nos últimos tempos, pra pior.
Hoje, no Brasil, tem rap fazendo apologia às drogas e ao crime. Ouvi um som um dia desses em que o cara se vangloriava de andar voado numa moto na [Avenida]Brasil sem capacete. Conheço muita gente pelo Brasil afora que disse que a música Voz ativa, dos Racionais, mudou suas vidas. Conheci gente que abandonou o crime por causa deles. Hoje, sei de gente que entrou pro crime por causa deles. As músicas dos caras parece um intervalo comercial. Faz propaganda da Audi, Citroen, Baush & Lomb (que eu só vim saber o que era por causa das músicas deles), “cordão de elite 18 quilates”, modelos e outros supérfluos. A maioria dos que escutam Os Racionais, e vê neles uma referência, ainda são pobres. Como essa gente pobre irá responder a todos esses estímulos? Que tipo de transformação essas músicas podem causar? Então, falar que o Hip Hop transforma, ou não, é muito complexo. Não existe Hip Hop, e sim Hip Hops.Vários.
Em “Rimador Radical” você diz: “e fazer um disco inteiro falando de maconha”, é uma crítica a Marcelo D2? Como você vê estes artistas como ele e MV Bill?
É uma crítica a todos os aproveitadores. Levamos um camarada da Marcha da Maconha para fazer um debate numa atividade nossa, para dar a chance de essa garotada ter acesso a uma discussão mais qualificada sobre a questão da criminalização das drogas. Isso tem, de fato, uma intencionalidade política. Mas quem gasta uma faixa do disco dizendo “se eu fumo ninguém tem nada com isso”, está querendo só vender disco e shows. E isso vale pra qualquer gênero musical, qualquer expressão artística. Mas quem entra na luta tem que estar preparado para isso tudo. O inimigo não vai ficar parado olhando a nossa reação. Ele vai tentar minar nossas forças, e em alguns casos, as armas que eles têm são a nossa própria gente.
Como fazer para mudar a imagem do Rap para quem o conhece através de MTV e MultiShow, naqueles clips em que o discurso são os carrões, as mulheres gostosas e os cordões de ouro?
Você mesmo na pergunta identificou nessas músicas: machismo, ostentação de bens de consumo e eu ainda acrescento apologia à violência e ao regionalismo. Veja que eu estou falando de 1991 e de propagar valores capitalistas. Esse era o momento crucial pra o inimigo lançar mão dessa tática. Foi nessa ocasião em que a União Soviética acabou. O capital tinha que mostrar pras novas gerações por que motivos o “comunismo perdeu pro capitalismo”. Se a direita enxerga a força que o Hip Hop tem pra mobilizar o povo para as suas causas, por que a esquerda também não vê isso? É míope?
Hoje a TV ataca mais a nós do que ao MST. Quantas vezes o MST aparece na televisão? Quantas vezes aparece o Hip Hop? Mas vê só como o Hip Hop aparece. Aquilo que a TV faz com a gente é um ataque. disfarçado, mas é um ataque. E quando não é esse Hip Hop deformado, cheio de vícios, é o Hip Hop domesticado da CUFA. A esquerda tinha que investir boa parte do que tem em recursos financeiros, logística e tudo o mais pra fazer a nossa arte chegar ao maior número de pessoas. É isso que a juventude está ouvindo nas periferias. Quer dizer, é algo meio parecido com isso.
Mas a cegueira chega a irritar, a emputecer. 50 cent vem aqui, fala um monte de merda, maior galera paga uma fortuna pra ver e ouvir isso, e a esquerda não faz nada pra fazer essa disputa com a burguesia.Gramsci tratou disso com o conceito de Guerra de Posição. Aliás, pra além de investir na música, investir também nas outras artes do Hip Hop. Investir principalmente na formação de novos atores nas favelas e periferias. As ONGs fazem isso o tempo todo. Das oficinas que as ONGs realizam saem bons artistas que vão graffitar painel pra Coca Cola, dançar no palco do Criança Esperança e fazer músicas que atendam às demandas do mercado numa disputa insana por prestígio e o dinheiro sujo da alienação. Sobre o cenário internacional, para mim é foda. Conheço muito pouco, mas já vi umas entrevistas do Dead Prez, mesmo assim prefiro não botar minha mão no fogo.
Quem foi ou é uma referência pra você no Rap?
Public Enemy foi fundamental e necessário pra eu ser o que sou hoje. Por eles eu entendi que o rap era algo mais que uma música, mas sim um instrumento de luta racial/classista. Os Racionais também, naquele momento (que se frise bem isso) também foi muito importante. Contar a minha história sem falar neles, é mentira. Agora, pro meu trânsito de artista-comprometido-com-a-luta, para militante orgânico, teve um cara chamado Preto Ghoez, que foi tudo pra mim, inclusive um amigo. Uma amizade cheia de problemas, admito, porém fundamental para minha história na luta revolucionária.
Serviço: O cd “Estado de direito – Estado de direita” está à venda por R$ 5,00 na Produto do Morro, que fica no camelódromo da Uruguaiana, Quadra D, N° 478 (acesso pela Rua da Alfândega); na livraria KITABU, Rua Joaquim Silva 17, Lapa; na Lojinha da Escola Nacional Florestan Fernandes, em SP, ou na mão dos companheiros do LUTARMADA.
Para quem está fora do Rio, é só depositar R$ 15 no Banco do Brasil ag 1508-3, conta poupança 28130-1, Gaspar F C Souza, e mandar o endereço postal com o comprovante de depósito escanneado para o_levante@yahoo.com.br, que o CD chega via PAC.
Por Alexandre Braz
"Eu amo o Hip Hop, ele mudou a minha vida. Não só a minha, mas a de uma porrada de gente. Pra melhor, e, nos últimos tempos, pra pior", diz Gas-PA. (Foto: Arquivo pessoal) |
Quantos CDs O Levante já lançou? As letras do disco são todas de sua autoria?
Dois CDs: O Temeremos mais a miséria do que a morte, e agora o Estado de direito. Estado de direira. No primeiro, tirando uma letra que tem coautoria do K-Lot (um MC da velha escola fluminense, que também acaba de lançar um CD), todas as outras são de minha autoria, e o Mimil só interpretava as músicas. Mas no Estado de direito. Estado de direita, não. Esse é até um papo que me emociona, pois me faz lembrar que há 4 anos eu fui lá na favela que ele mora e levei o primeiro livro. Depois ofereci outro. O terceiro eu já nem precisei levar. Mimil, que tinha uns 25 cm menos do que tem hoje, foi lá em casa buscar. Hoje, ele que no começo era apenas um fã, é autor de duas letras desse disco. Fiz uma parte da Meu Estilo de Vida, já a Combativo e Internacionalista, foi o contrário. Ele apareceu com uma letra pronta, sem refrão. Daí eu fiz o refrão, botei mais meia dúzia de versos, e a música ficou daquele jeito. O nome disso é trabalho de base.
Queria que você falasse da escolha do nome do disco.
Estado de direito. Estado de direita, é por que sabemos que o Direito é só uma forma de legitimar a dominação, já que a propriedade privada dos meios de produção é assegurada no Estado burguês. E todos os outros “direitos” são apenas uma conseqüência desse, por isso até que nós o conquistemos ele será de direita.
Capa e contra-capa do CD |
A capa é pra mostrar qual o direito que nós temos nesse Estado. Nela mostramos dois momentos de uma mesma instituição: no escravismo e no capitalismo. Antes, sob o nome de Capitão do Mato, ela caçava, prendia e matava pretos e pretas. Hoje, mais de um século de república, com o nome de polícia, ela caça, prende e mata pretos e pretas. E as duas fotos, mostrando pessoas pretas amarradas, umas às outras pelo pescoço, tanto no escravismo, quanto no capitalismo, é para mostrar o “quanto que esse país mudou”, de lá pra cá.
Você acha que a mídia contribui para a criminalização da pobreza no Rio?
Lógico. Fizemos dois eventos em uma casa noturna tradicionalmente roqueira, mas que nos abriu as portas. Demos o serviço para todos os jornais, e alguns divulgaram o nosso evento. Tentamos a mesma coisa quando fizemos o 1º Hip Hop ao Trabalho, que é nosso evento anual, nos 1º de Maio, em alguma das favelas de Costa Barros. Nenhum veículo divulgou.
Mas por quê? Nesse dia se apresentaram o B Negão e a atriz/DJ Gisele Frade, duas pessoas com nomes já projetados no mercado cultural. Mesmo assim, nenhuma linha. Porra, nós estávamos levando cultura pro bagulho. Se ao invés de caixas de som, microfones, pick ups, discos, nós estivéssemos entrando de granada, fuzil, pistola… nossos nomes estariam em todos os jornais. A mídia burguesa só gosta de repercutir o que as favelas têm de ruim, ou algo de bom mas que não seja de iniciativa da própria favela. Tem que ter a impressão digital de Celso Ataíde, José Junior, Rubens Cesar Fernandes, ou outro antropófago social qualquer.
Às vezes ela faz pior, pega algo de positivo e transforma em ameaça à sociedade. E isso não é por acaso, tem intencionalidade política. Quem só tem acesso à “realidade” via mídia burguesa, vai acabar acreditando que na favela só tem crime e violência. Que a violência é a única língua que a favela conhece. Assim sendo, nada mais legítimo que a violência com a qual o Estado trata a favela. Afinal, se for de outro jeito a favela não entende.
E essas pessoas que crêem nessa “verdade” estão aptas a crer também que, se não é a policia, tem que ser as ONGs, afinal, um povo que só entende a língua da violência não é capaz de estabelecer nenhuma forma de organização pacífica para produzir cultura, atividades esportivas e superar os seus problemas.
Vocês usam muito o termo “revolução”. Como você imagina essa revolução numa sociedade tão despolitizada e com os jovens tão desinteressados pelos caminhos e pelo futuro do nosso país?
Tem que haver um trabalho árduo de educação da militância de esquerda, e ela parece que tem nojo de favela e periferia. A esquerda partidária, então, só pisa lá de 2 em 2 anos, ou para faturar em cima dos corpos do desabamento ou da chacina policial. Por isso nos atos o que se vê são as mesmas caras. Até em ato contra a criminalização da pobreza, da qual são vítimas os favelados, a favela está ausente. Por quê?
A favela e a periferia são os terrenos mais férteis para o senso comum. Quem deveria combater esse senso comum - que faz naturalizar a violência do Estado contra o povo preto e pobre - se viciou em centro da cidade. O único ano em que o Grito dos Excluídos não aconteceu no centro, ele foi para Zona Sul! Pro asfalto!
Estamos passando por um descenso das massas, e essa situação não vai se alterar sozinha. Ou essa militância se oferece ao trabalho de base, onde estão as bases da sociedade, ou vai ficar o resto dos dias reclamando que a juventude está despolitizada. A Globo está todo dia lá fazendo o seu trabalho de base. As ONGs, também. Engana-se quem diz que o único braço do Estado a entrar na favela é a polícia. O Estado está lá diariamente. Vai lá e veja o esgoto a céu aberto, a escola com 2, 3 turmas em cada sala, o posto médico sem médico nem remédio, o crack, a coca, o fuzil, a granada, a TV tela-plana financiada… isso é ou não é a presença do ”Estado de direita”?
Outro equívoco é achar que a juventude está despreocupada com o futuro, desmobilizada. Veja quantos jovens estão envolvidos em projetos do 3º setor. É muita gente preocupada com o futuro, mas dentro de uma perspectiva neoliberal. Fazer o quê? Tem quase ninguém para disputar essas consciências com o inimigo! É preciso chegar nesses espaços antes do desabamento e antes da chacina, mas para isso temos que educar a esquerda.
Na música “A verdadeira mulher da minha vida” você expressa a preocupação de um pai em relação ao futuro da filha. Como você sonha o mundo para estas novas gerações que virão?
Um mundo onde o alimento exista pra matar a fome, e não pra enriquecer ninguém; onde medicina exista pra salvar vidas, prevenir e curar enfermidades, e não pra enriquecer ninguém; onde a arte e o esporte existam pra trazer prazer e saúde física e mental, e não pra enriquecer ninguém; onde a solidariedade não seja uma mercadoria vendida nas prateleiras das ONGs; onde a informação não seja uma mercadoria e nem uma ferramenta de manipular as mentes; onde a educação sirva para se formar seres humanos dignos e plenos, e não para enriquecer ninguém; onde não exista mais dominados e dominantes, por razão nenhuma. Mas isso eu sei que só com muita luta.
Um alvo das suas letras é a televisão, especialmente a Rede Globo. Qual a dimensão do desserviço que esta emissora causa na nossa sociedade?
Desserviço dependendo do ponto de vista, pois para a burguesia ela cumpre o papel que se espera. Ela elege presidente, depois faz derrubar o presidente que elegeu. Ela faz o povo clamar por um ataque contra a Bolívia, quando seu presidente resolve pôr fim à exploração das suas riquezas por uma transnacional. Ela faz o povo ter medo do Chávez, achando que ele, e não os EUA, quer dominar o mundo. Ela joga no lixo a auto-estima da mulher preta, fazendo ela acreditar que só pode ser bonita se se aproximar de um padrão estético que não é o seu. Ela faz o povo repudiar movimentos legítimos como o MST. Consegue deformar outros movimentos, como o Hip Hop, que através das suas telas é um movimento inofensivo, ostensivo, e acéfalo.
O que é o Hip Hop pra você? E qual o poder de transformação social que ele tem?
Ele é meio que minha vida, eu sou um apaixonado por ele. Como eu sou um cara sensível, meus olhos se enchem d’água quando ouço alguma música do Facção Central, ou a Corpo em evidência, do grupo Visão de Rua; quando eu vejo algum moleque ou mina de uma oficina nossa fazendo um movimento com maior grau de dificuldade, no Break; quando eu vejo um graffiti bem feito provocando reflexão sobre o nosso cotidiano; quando eu vejo uma performance bem criativa e bem elaborada nos toca-discos; quando eu vejo alguém fazendo um beat-box, que se tu fechar os olhos, tu vai pensar que tem uma banda tocando. Eu amo o Hip Hop, ele mudou a minha vida. Não só a minha, mas a de uma porrada de gente. Pra melhor, e, nos últimos tempos, pra pior.
Hoje, no Brasil, tem rap fazendo apologia às drogas e ao crime. Ouvi um som um dia desses em que o cara se vangloriava de andar voado numa moto na [Avenida]Brasil sem capacete. Conheço muita gente pelo Brasil afora que disse que a música Voz ativa, dos Racionais, mudou suas vidas. Conheci gente que abandonou o crime por causa deles. Hoje, sei de gente que entrou pro crime por causa deles. As músicas dos caras parece um intervalo comercial. Faz propaganda da Audi, Citroen, Baush & Lomb (que eu só vim saber o que era por causa das músicas deles), “cordão de elite 18 quilates”, modelos e outros supérfluos. A maioria dos que escutam Os Racionais, e vê neles uma referência, ainda são pobres. Como essa gente pobre irá responder a todos esses estímulos? Que tipo de transformação essas músicas podem causar? Então, falar que o Hip Hop transforma, ou não, é muito complexo. Não existe Hip Hop, e sim Hip Hops.Vários.
Em “Rimador Radical” você diz: “e fazer um disco inteiro falando de maconha”, é uma crítica a Marcelo D2? Como você vê estes artistas como ele e MV Bill?
É uma crítica a todos os aproveitadores. Levamos um camarada da Marcha da Maconha para fazer um debate numa atividade nossa, para dar a chance de essa garotada ter acesso a uma discussão mais qualificada sobre a questão da criminalização das drogas. Isso tem, de fato, uma intencionalidade política. Mas quem gasta uma faixa do disco dizendo “se eu fumo ninguém tem nada com isso”, está querendo só vender disco e shows. E isso vale pra qualquer gênero musical, qualquer expressão artística. Mas quem entra na luta tem que estar preparado para isso tudo. O inimigo não vai ficar parado olhando a nossa reação. Ele vai tentar minar nossas forças, e em alguns casos, as armas que eles têm são a nossa própria gente.
Como fazer para mudar a imagem do Rap para quem o conhece através de MTV e MultiShow, naqueles clips em que o discurso são os carrões, as mulheres gostosas e os cordões de ouro?
Você mesmo na pergunta identificou nessas músicas: machismo, ostentação de bens de consumo e eu ainda acrescento apologia à violência e ao regionalismo. Veja que eu estou falando de 1991 e de propagar valores capitalistas. Esse era o momento crucial pra o inimigo lançar mão dessa tática. Foi nessa ocasião em que a União Soviética acabou. O capital tinha que mostrar pras novas gerações por que motivos o “comunismo perdeu pro capitalismo”. Se a direita enxerga a força que o Hip Hop tem pra mobilizar o povo para as suas causas, por que a esquerda também não vê isso? É míope?
Hoje a TV ataca mais a nós do que ao MST. Quantas vezes o MST aparece na televisão? Quantas vezes aparece o Hip Hop? Mas vê só como o Hip Hop aparece. Aquilo que a TV faz com a gente é um ataque. disfarçado, mas é um ataque. E quando não é esse Hip Hop deformado, cheio de vícios, é o Hip Hop domesticado da CUFA. A esquerda tinha que investir boa parte do que tem em recursos financeiros, logística e tudo o mais pra fazer a nossa arte chegar ao maior número de pessoas. É isso que a juventude está ouvindo nas periferias. Quer dizer, é algo meio parecido com isso.
Mas a cegueira chega a irritar, a emputecer. 50 cent vem aqui, fala um monte de merda, maior galera paga uma fortuna pra ver e ouvir isso, e a esquerda não faz nada pra fazer essa disputa com a burguesia.Gramsci tratou disso com o conceito de Guerra de Posição. Aliás, pra além de investir na música, investir também nas outras artes do Hip Hop. Investir principalmente na formação de novos atores nas favelas e periferias. As ONGs fazem isso o tempo todo. Das oficinas que as ONGs realizam saem bons artistas que vão graffitar painel pra Coca Cola, dançar no palco do Criança Esperança e fazer músicas que atendam às demandas do mercado numa disputa insana por prestígio e o dinheiro sujo da alienação. Sobre o cenário internacional, para mim é foda. Conheço muito pouco, mas já vi umas entrevistas do Dead Prez, mesmo assim prefiro não botar minha mão no fogo.
Quem foi ou é uma referência pra você no Rap?
Public Enemy foi fundamental e necessário pra eu ser o que sou hoje. Por eles eu entendi que o rap era algo mais que uma música, mas sim um instrumento de luta racial/classista. Os Racionais também, naquele momento (que se frise bem isso) também foi muito importante. Contar a minha história sem falar neles, é mentira. Agora, pro meu trânsito de artista-comprometido-com-a-luta, para militante orgânico, teve um cara chamado Preto Ghoez, que foi tudo pra mim, inclusive um amigo. Uma amizade cheia de problemas, admito, porém fundamental para minha história na luta revolucionária.
Serviço: O cd “Estado de direito – Estado de direita” está à venda por R$ 5,00 na Produto do Morro, que fica no camelódromo da Uruguaiana, Quadra D, N° 478 (acesso pela Rua da Alfândega); na livraria KITABU, Rua Joaquim Silva 17, Lapa; na Lojinha da Escola Nacional Florestan Fernandes, em SP, ou na mão dos companheiros do LUTARMADA.
Para quem está fora do Rio, é só depositar R$ 15 no Banco do Brasil ag 1508-3, conta poupança 28130-1, Gaspar F C Souza, e mandar o endereço postal com o comprovante de depósito escanneado para o_levante@yahoo.com.br, que o CD chega via PAC.
Comentários