FIDEL: “CHEGUEI A ESTAR MORTO, MAS RESSUSCITEI” (1ª. parte)


Em entrevista exclusiva ao jornal La Jornada (a primeira concedida a um veículo impresso desde que uma diverticulite obrigou seu afastamento da liderança do governo cubano), Fidel Castro fala sobre o que aconteceu, diz que esteve à beira da morte, mas ressuscitou. E fala de seus planos para o futuro: "Não quero estar ausente nestes dias. O mundo está na fase mais interessante e perigosa de sua existência e eu estou bastante comprometido com o que está acontecendo. Ainda tenho muitas coisas para fazer".


(A entrevista foi publicada na edição impressa de 30 de agosto do La Jornada, do México. Aqui no meu blog ela está dividida em três parte. Esta primeira fala do “calvário” provocado pela doença e da condição de quase-morto a que chegou o entrevistado. As outras duas serão postadas a seguir: 2ª. parte – “Você se dá conta do que significa a Internet?” – sobre o imenso poder do uso das novas ferramentas da informática na luta contra os monopólios da comunicação, dominados pelo império e suas empresas transnacionais; e a 3ª. parte/final – “Temos que convencer Obama a evitar a guerra nuclear” – sobre as crescentes ameaças contra o Irã. A versão em português que reproduzo é de Carta Maior, inclusive o título e a chamada acima, com tradução de Katarina Peixoto. A foto é do jornal mexicano).

Por Carmen Lira Saade – do jornal La Jornada (México)

De Havana (Cuba) – Ele esteve quatro anos debatendo-se entre a vida e a morte. Um entra e sai da sala de cirurgia, entubado, recebendo alimentos através de veias e catéteres e com perdas frequentes de consciência. “Minha enfermidade não é nenhum segredo de Estado”, teria dito pouco antes que ela se tornasse crise e o obrigasse a fazer o que tinha que fazer: delegar suas funções como presidente do Conselho de Estado e, consequentemente, como comandante em chefe das forças armadas de Cuba. “Não posso seguir mais”, admitiu então - segundo revela nesta sua primeira entrevista a uma publicação impressa estrangeira desde então. Fez a transmissão do cargo e entregou-se aos médicos.

A comoção sacudiu a nação inteira, os amigos de outras partes, despertou esperanças revanchistas em seus detratores e colocou em estado de alerta o poderoso vizinho do Norte. Era o dia 31 de julho de 2006 quando foi divulgada, de modo oficial, a carta de renúncia do líder máximo da Revolução Cubana. O que seu inimigo mais feroz (bloqueios, guerras, atentados) não conseguiu em 50 anos foi alcançado por uma enfermidade sobre a qual ninguém sabia nada e se especulava tudo. Uma enfermidade que para o regime, quisesse ou não, iria se converter em um segredo de Estado.

“Penso em Raúl, no Raúl Castro daqueles momentos. Não era apenas o pacote que lhe tinham confiado há muito tempo; era a delicada saúde de sua companheira Vilma Espin – que pouco depois faleceria vítima de câncer – e a muito provável desaparição de seu irmão mais velho e chefe único nos âmbitos militar, político e familiar”.

Hoje faz 40 dias que Fidel Castro reapareceu em público de maneira definitiva, ao menos sem perigo aparente de recaída. Em um clima tranquilo e dando a entender que a tempestade passou, o homem mais importante da Revolução Cubana ressurge orgulhoso e com vitalidade, ainda que não domine totalmente os movimentos de suas pernas.

Durante as quase cinco horas que durou a entrevista ao La Jornada – incluindo o almoço – Fidel aborda os mais diversos temas, ainda que mostre uma obsessão por alguns em particular. Permite perguntas sobre tudo – ainda que quem mais interrogue seja ele – e repassa pela primeira vez e com dolorosa franqueza alguns momentos da crise de saúde que sofreu nos últimos quatro anos. “Cheguei a estar morto”, revela com uma tranquilidade assombrosa. Não menciona pelo nome a diverticulite da qual padeceu, nem se refere às hemorragias que levaram os especialistas de sua equipe médica a intervir em muitas ocasiões, sempre com risco de perder a vida. Mas no que ele se estende é no relato do sofrimento vivido. E não mostra inibição alguma em qualificar a dolorosa etapa como um calvário.

“A única esperança que alimentava é que o mundo parasse para que eu não perdesse nada”

“Eu já não aspirava a viver, nem muito menos... Perguntei-me várias vezes se essa gente (seus médicos) iriam deixar-me viver nestas condições ou iriam permitir que eu morresse. E sobrevivi, mas em condições físicas muito ruins. Cheguei a pesar cinquenta e poucos quilos”. Sessenta e seis quilos, precisa Dália, sua inseparável companheira que assiste a conversa. Só ela, dois de seus médicos e dois de seus colaboradores mais próximos estão presentes.

- Imagine: um tipo da minha estatura pesando 66 quilos. Hoje já estou entre 85 e 86 quilos e esta manhã consegui dar 600 passos sozinho, sem muleta nem ajuda.

“Quero dizer-te que estás diante de uma espécie de ressuscitado”, afirma com certo orgulho. Sabe que, além da magnífica equipe médica que o assistiu durante todos estes anos, que pôs à prova a qualidade da medicina cubana, contou muito a sua vontade e essa disciplina de aço que se impõe sempre que se empenha em algo.

“Não cometo nunca mais a mínima violação” – assegura. “Tornei-me médico com a cooperação dos médicos. Com eles discuto, pergunto (pergunta muito), aprendo (e obedece)...” Conhece muito bem as razões de seus acidentes e quedas, ainda que insista que não necessariamente umas levem às outras. A primeira vez foi porque não fez o aquecimento devido, antes de jogar basquete. Depois veio a de Santa Clara: Fidel descia da estátua do Che, onde havia presidido uma homenagem, e caiu de cabeça. Aí influiu também, afirma, que aqueles que deveriam cuidar dele também estão ficando velhos, perdem habilidades e não conseguiram cuidar direito. A seguir veio a queda de Holguín. Todos esses acidentes ocorreram antes que a outra enfermidade se tornasse crítica e o deixasse por longo tempo no hospital.

- Estendido naquela cama, só olhava ao meu redor, ignorante de todos esses aparatos. Não sabia quanto tempo ia durar esse tormento e a única esperança que alimentava é que o mundo parasse para que eu não perdesse nada. Mas ressuscitei, disse satisfeito.

- E quando ressuscitou, comandante, o que encontrou? – perguntei

- Um mundo de loucos...Um mundo que aparece todos os dias na televisão, nos jornais, e que não há quem entenda, mas que eu não queria perder por nada deste mundo – sorri, divertido.

Com uma energia surpreendente em um ser humano que acabou de levantar-se da tumba, como ele mesmo diz, e com a mesmíssima curiosidade intelectual de antes, Fidel Castro vai se atualizando. Aqueles que o conhecem bem dizem que não há um projeto, colossal ou milimétrico, no qual ele não se empenhe com uma paixão encarniçada, em especial se em situação de adversidade, como era o caso. Nunca, então, parece de melhor humor. Alguém que pretende conhecê-lo bem resumiu: “As coisas devem andar muito mal, porque você está radiante”.

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