A fogueira dos insurgentes

De La Paz (Bolívia) - Na matéria “Onde erramos? (ficcao e realidade), falei na talvez última tentativa da direita em tentar reduzir o tamanho do triunfo de Evo Morales e seu “proceso de cambio” (mudança) nas eleições de domingo próximo, dia 6. Foi através da Corte Nacional Eleitoral (CNE), que fez uma espécie de depuração nos 5,1 milhões de eleitores inscritos, colocando 400 mil na condição de “observados”, cujos registros no novo padrão chamado biométrico teriam indícios de irregularidades na documentação. Então, foi dado o prazo até o dia 3 para que os “observados” comprovassem sua habilitação ao voto no dia 6. Tal decisão da CNE ocorreu faltando uns 15 dias para o pleito. Falei que no sábado, dia 28, 93 mil dos 400 mil já tinham regularizado sua situação.

Esta posição da CNE, que foi aplaudida pela oposição, provocou uma reação fortíssima do governo: o próprio Evo, que não usa malabarismos verbais para dourar ataques aos adversários - fala direto como fala o povo -, chegou a dizer que Antonio Costas, o presidente da CNE, é o verdadeiro chefe de campanha da oposição; o Cambio, jornal estatal, fez um editorial tachando a atitude da Corte de “genocídio político”, uma tentativa de matar a cidadania de 400 mil bolivianos.

E aqui, ao contrário do Brasil, quando você fala de reação do governo, você está falando de reação dos movimentos sociais, dos indígenas/campesinos, dos “obreros” (obreiros, operários, mineiros, trabalhadores). Para quem tem olhos habituados à pasmaceira social brasileira, é de certo modo inacreditável (não quero desmerecer os esforços dos movimentos sociais do Brasil – os méritos do nosso MST, por exemplo, são reconhecidos internacionalmente -, mas em termos de capacidade de mobilização (de “convocatória”, como dizem por aqui), a diferença é imensa. Na minha modesta opinião, como dizem os argumentadores mais jeitosos, está aí a chave do êxito do processo revolucionário na Bolívia atual, ao contrário do jogo deprimente da política de elite no Brasil, por exemplo. Não se sente o cheiro de povo na política brasileira, no que pese – tento não ser injusto – um certo diferencial e relativo sucesso do nosso presidente Lula).

Mas voltando, ia me perdendo na digressão:
Os movimentos sociais se mobilizaram e os “observados”, os eleitores que seriam excluídos (era muita gente para ser habilitada em tão pouco tempo), correram para as filas, sobrecarregaram as linhas telefônicas da CNE: queriam porque queriam votar no dia 6.

Atenção: falei que no sábado, dia 28, já eram 93 mil os “observados” habilitados a votar. Pois, na segunda, dia 30, o número dos habilitados já chegava a 274 mil, em torno de 68% dos 400 mil “observados”.

Desfecho: na terça-feira, dia primeiro, pela manhã, a CNE decidiu revogar sua decisão: não há mais “observados”, todos estão habilitados a votar no dia 6.

Ouvi a notícia na TV por volta das 13:30 horas do mesmo dia primeiro. Logo em seguida fui à sede central da Corte (para me credenciar a cobrir as eleições e a contagem dos votos). A rua em frente ao prédio da CNE estava cheia de indígenas (uns 300), com aqueles ponchos (é assim mesmo o nome? aquelas mantas coloridas) e chapéus característicos, uma grande faixa de uma federação campesina. Gritavam: “Qué queremos, carajo?” Respondiam: “Habilitación”.

Perguntei a uma policial: “Mas a Corte não já decidiu habilitar todo mundo?” Ela me respondeu: “É, mas eles não sabem ainda”. Minha impressão é que “eles” (a grande massa do que poderíamos chamar de insurgentes populares, a maioria pobre) não querem nem saber, não acreditam no que divulgam os meios de comunicação.

À noite, vi na TV que os manifestantes, no final, lá mesmo em frente ao portão da Corte Nacional Eleitoral, fizeram uma fogueira com as listas distribuídas pela CNE contendo os nomes dos 400 mil “observados”.

(Manchete de primeira página de hoje, quarta-feira, dia 2, do jornal La Razón, considerado o de maior circulação da Bolívia: “Fim da incerteza; todos os observados podem votar”. Destaques: “Antonio Costas diz que a pressão não foi fator decisivo”; “O governo valoriza a decisão e manda uma advertência à CNE”; “A oposição duvida da transparência nas eleições”.

Observação minha: uns 300 observadores internacionais acompanham o pleito, a maioria da União Européia (UE) e Organização dos Estados Americanos (OEA). Até agora, nenhum levantou qualquer suspeita quanto à lisura do processo).

(Escrevi isso aí pensando em botar nos comentários do meu blog. Ao acabar, porém, gostei da coisa e decidi: vou arranjar um título e pedir à minha querida e desprendida editora – me sinto importante quando falo “minha editora” – para postar como matéria).

Comentários

Jadson disse…
CORREÇÃO: em duas matérias aí atrás (Cruzada contra o voto cruzado e “Onde erramos?”), falei do chamado “voto cruzado” – uma campanha da oposição pedindo ao eleitor que, mesmo votando em Evo Morales e seu partido Movimento Ao Socialismo (MAS), vote nos senadores e deputados de outros partidos.
A informação, no geral, está correta, mas, para ser exato, a campanha refere-se apenas aos deputados, pois os senadores (total de 36, quatro por departamento ou estado) não são votados diretamente. Eles são eleitos, proporcionalmente, de acordo com o número de votos de seu partido (ou de seu candidato a presidente).
Para ser mais preciso ainda: a campanha refere-se apenas aos 70 (dos 130) deputados, chamados uninominais, cada um eleito diretamente em cada uma das 70 circunscrições do país, tipo voto distrital. Quase todos os demais deputados são eleitos da mesma forma que os senadores.

FUGA DE CANDIDATO: falei em outra matéria (Adversários de Evo têm péssima folha-corrida) que o destino mais provável do principal opositor de Evo, Manfred Reyes Villa, seria a prisão ou fugir do país.
Pois bem, ontem, quinta-feira, dia 3, no encerramento das campanhas eleitorais, essa coisa esquentou. O pessoal do governo denunciou que Manfred já tem uma reserva de voo para Miami (cidade dos Estados Unidos preferida pelos delinqüentes direitistas da América Latina), para o próximo dia 7, um dia após a eleição. Evo chegou a pedir à polícia e às Forças Armadas, durante o discurso de “cierre de campaña”, que não deixem Manfred fugir (ele está proibido de viajar ao exterior por conta do processo que responde na Justiça).
Manfred, claro, negou. E ainda debochou: “Como vou fugir se sou o futuro presidente da Bolívia?” Seu porta-voz chamou o ministro de Evo que fez a denúncia de “palhaço” e disse que, ao contrário, quem está com viagem marcada para fora do país é Evo e seu vice Álvaro García Linera. Coisas de campanha?

Por falar em encerramento de campanha, estive ontem em El Alto na mega-concentração do MAS. Uma belezura, um mar de gente. O que mais me chamou a atenção foi a quantidade imensa daquelas “cholitas” – as típicas indígenas, mestiças bolivianas, com saias rodadas, chales coloridos e aqueles chapéus redondos na cabeça (ficam em cima da cabeça, quase soltos, não sei como não caem a todo momento, cheguei a perguntar um dia se são amarrados, assim como o de Indiana Jones, mas não são).
E outro detalhe curioso: muitas com o filho amarrado às costas (qualquer dia desses vou mandar umas fotos delas pra Joaninha editar aqui ou no Pilha Pura).
Baiano disse…
Companheiro,

Belo relato... e aí consguiu o credenciamento?

Abraços,

Júnior (Filho de João Mago e D. Júlia)
Jadson disse…
Sim, companheiro, viu só? Depois de aposentando, virei "trotamundo" e repórter internacional.
Gracias pelo elogio.
Não sei se João Mago e D. Júlia vão ficar com ciúmes, mas bem que vc poderia assinar, de vez em quando, como "o queridinho (ou o xodó) das 'meninas' Almeida". Que tal?
Anônimo disse…
Orgulho-me muito de seu trabalho. Tome cuidado amanhã durante a eleição. A gente nunca sabe o que pode acontecer.

Saudades,

Fabiano
Jadson disse…
Obrigado, Fabiano, pela apreciação do meu "trabalho" e pelo cuidado. Grande abraço, até breve.
Jadson disse…
“3 – Autonomia municipal – Somente para os habitantes de 12 dos 327 municípios bolivianos. O eleitor vai dizer se aceita que seu município entre “no regime de autonomia indígena originário camponesa” (não sei exatamente o que isso quer dizer)”.

Este é um dos parágrafos já na parte final da matéria Adversários de Evo têm péssima folha-corrida, a penúltima postada aqui no blog.
Esclareço agora: caso a maioria dos eleitores opte pelo Sim, ao decidir sobre a adoção ou não da autonomia, significa que o município pode institucionalizar procedimentos e formas de governança baseados na cultura, tradição e conhecimentos dos indígenas, os chamados povos originários, contanto que tais procedimentos não se choquem com as normas estabelecidas na nova Constituição.

Informação adicional sobre as eleições de amanhã, 6 de dezembro: é a primeira vez que os bolivianos residentes no exterior poderão votar (somente para presidente e vice). Entre os 5,1 milhões de eleitores inscritos no novo e moderno padrão, chamado biométrico, que inclui o registro das digitais (tem matéria no meu blog sobre isso, intitulada Façanha boliviana, postada em 25/10/2009), estão 170 mil que residem em nove cidades da Argentina, Espanha, Estados Unidos e Brasil, onde houve inscrições apenas em São Paulo – 18.618 votantes.
Na verdade, 170 mil é um número muito reduzido diante dos cerca de dois milhões de bolivianos morando no exterior, conforme estimativas citadas nos meios de comunicação. Segundo versões de gente do governo, isso se deve às restrições impostas pela oposição na aprovação da nova legislação eleitoral. Não esqueçamos que a direita mantém a maioria no Senado na legislatura que está se findando, situação que os partidários de Evo Morales esperam mudar no pleito deste dia 6.