Cara a cara: a miséria da favela e a opulência do palácio
De Assunção (Paraguai) – Prometi, amiga, te levar a conhecer lugares mais aprazíveis da capital guarani, mas deixa pra outro dia. Hoje vou te mostrar uma coisa chocante: o contraste entre a miséria e a opulência, assim cara a cara, uma diante da outra, no maior despudor, o palácio de espelhos reluzentes e o amontoado de casebres da favela, pra usar nosso termo carioca, brasileiro
A "chacarita" (favela), a mesma paisagem do Barrio Chino
Olha aí, mira, como dizem por aqui. O palácio é o do Legislativo, moderno, bonito, onde funciona o Senado da República do Paraguai. E aí defronte está a favela ou "la chacarita", que se confunde – é a mesma paisagem urbana e humana – com o vizinho Barrio Chino (Bairro Chinês). A dividir os dois mundos, a Plaza Mariscal López (com a imensa estátua do marechal Francisco Solano López, o heroi nacional) e soldados, sempre há soldados por ali, de serviço ou descansando do serviço।
Aparentemente, a convivência não parece ser tensa, mas não sei... Quando estive aqui nos meus primeiros dias de Assunção, admirando aquele contraste, os carrões estacionados junto aos barracos, me adiantei um pouco pela entrada da favela, pensando em fotografar pegando os casebres e o palácio। Um policial(foto abaixo) de serviço na praça, foi se aproximando aos poucos, parou a uma certa distância e me chamou. Gentilmente o soldado Fernandez me alertou sobre o perigo do local. Bati um papo com ele, até tirei umas fotos dele, e me afastei.
Mas, amiga, confesso que fiquei com aquilo atravessado na garganta। "Não é possível, que porra!, vou voltar lá e vou tirar as fotos", pensava. Pois um dia voltei, tirei as fotos, se prestaram é outro problema, mas tirei, me senti realizado.
Me lembrei disso na semana passada lendo um jornal। Um casal de turistas franceses foi assaltado na "chacarita", não exatamente onde estive, mas bem lá para dentro. A área é muito grande, se estende até a margem do Rio Paraguai, cujas águas são vistas da praça. A polícia, por sinal, se mostrou eficiente, dois dos assaltantes foram presos e a máquina fotográfica dos franceses foi recuperada.
A GUERRA DO PARAGUAI OU GENOCÍDIO AMERICANO – Amiga, vou aproveitar pra te falar um pouco desse marechal López, que está em seu cavalo, em atitude marcial, ladeado por dois canhões, de costas para o palácio e voltado para seus compatriotas miseráveis da "chacarita". É aquele mesmo Solano López, que era apresentado nos livros didáticos brasileiros de minha geração (fico curioso em saber como é hoje) como um ditador louco, sanguinário e cruel.
Me mentiram, criminosamente, minha amiga, a mim, a gerações। Creio que ainda hoje a mentira perdura। As mentiras dos historiadores, as mentiras dos jornalistas... Eu já sabia a verdade, mas agora estou sabendo em detalhes. Estou lendo o livro Genocídio americano, de um jornalista brasileiro, Julio José Chiavenato. Simplesmente, o Império de Pedro II no Brasil, a Argentina e o Uruguai, na chamada Tríplice Aliança, assumindo o trabalho sujo do imperialismo britânico, destruíram o Paraguai, dizimaram 75,75% de sua população (99,50% dos homens adultos).
MATAR O ÚLTIMO PARAGUAIO NO VENTRE DA MÃE - O nosso Duque de Caxias, que tinha uma visão muito crítica desta guerra, chegou a avisar ao imperador, num famoso "despacho" datado de 18/11/1867 (a guerra foi em 1864/70), que para vencê-la, seria necessário matar o último paraguaio no ventre da mãe.
Nas últimas batalhas lutaram nas fileiras do exército do Paraguai crianças de 6 a 14 anos. O papel de carniceiro, de sádico, ficou para o Conde D’Eu. (Lembra a barbaridade do exército brasileiro exterminando os últimos resistentes do Conselheiro, em Canudos, na Bahia, fatos relatados na terceira parte de Os Sertões, de Euclides da Cunha).
Por que tanta barbárie? Parece incrível, realmente, amiga. Vou tentar responder em poucas palavras. Porque o Paraguai daquela época, meados do século 19, era a prova cabal de que se poderia ter vida – e vida em abundância (gosto da eloquência dos teólogos católicos) – fora dos cânones econômicos, políticos e ideológicos do império de plantão, o britânico.
O desenvolvimento autônomo do Paraguai de então, especialmente na área econômica – e também social, não havia analfabetos, desempregados e ladrões -, era uma ousadia imperdoável. O sonho de uma pequena nação livre tornando-se realidade. A lógica dos impérios, ontem e hoje, é a mesma. Claro que há outros aspectos conjunturais, de fronteiras, etc e tal, mas acho que a essência é isso aí.
No tal "despacho", Duque de Caxias destaca a resistência heróica dos paraguaios e a figura de Solano López, estadista comprometido com seu povo e não com o imperialismo britânico e a oligarquia local, a qual, na verdade, no Paraguai de então, estava reduzida a quase nada. Cito um pequeno trecho da parte final, com a ressalva de que sua autenticidade é contestada, embora Julio José Chiavenato lhe dê credibilidade. (Cópia do documento está no Museu Mitre, em Buenos Aires, o original teria sido destruído):
"À paz com López, a paz, Imperial Majestade, é o único meio salvador que nos resta. López é invencível, López pode tudo; e sem a paz, Majestade, tudo estará perdido, e antes de presenciar esse cataclisma funesto, estando eu à frente dos exércitos imperiais, suplico a Vossa Majestade o especialíssimo favor de outorgar-me minha demissão do honroso posto que Vossa Majestade me confiou".
Ponto final. Não me tenha na conta de um chato, amiga, te garanto que no nosso próximo passeio iremos a pontos mais aprazíveis. Juro que durante alguns dias não falarei mais nem de ditadura, nem de miséria, nem tampouco de genocídio.
Comentários
É muito bom ver de perto, com nossos próprios olhos. Cada um tem os seus e suas interpretações.
Gostaria de estar aí, mas como não é possível me sinto bem a vontade pra ver através dos seus.
Ainda não conheci ninguém com sensibilidade igual. Adorei.
Bj, saudade.
Morte aos Impérios!
Esse texto foi um bom presente de aniversário. Boa sorte em La Paz!
Fabiano
Sobre La Paz, vc estava certo. O tal do "mal da altura" me pegou pesado, quase que volto rapidinho pra Cochabamba, cidade que fui forçado a "conhecer" durante uma tarde (problema de voo, escala) e gostei. Mas já estou me recuperando, a partir de amanhã, dia 8, espero estar bem.