O fato pouco importa, importante é a versão

Protesto dos contrários ao referendo sobre autonomia de Santa Cruz
(Foto publicada na Folha de São Paulo/ Andres Stapff/Reuters)



A população de Santa Cruz, província oriental da Bolívia, pronunciou-se no domingo, dia 4, a favor da sua autonomia, através de referendo promovido pelo governo local e o Comitê Cívico. As primeiras projeções apontam que mais de 80% votaram “sim”, enquanto pouco mais de 10% optaram pelo “não”. As autoridades e lideranças do departamento, o mais populoso e rico do país, festejaram a vitória, destacando o início de uma verdadeira revolução na região, “revolução em paz”, frisaram. Houve conflitos durante o processo de votação e manifestações pelo país contra a consulta. O presidente Evo Morales, que classifica o referendo como ilegal e inconstitucional, avalia que o processo redundou “em fracasso”, diante da reação dos bolivianos, em especial os povos indígenas.

Este deve ter sido o enfoque predominante do noticiário, no dia seguinte ao referendo realizado em Santa Cruz, Bolívia, na grande maioria dos meios de comunicação internacionais, inclusive na Bolívia, Venezuela (nos meios privados) e, certamente, no Brasil. No caso de jornais impressos, a manchete de primeira página poderia ser “Derrotado Evo Morales no referendo autonômico” (venezuelano El Universal) ou “Província boliviana vota a favor da autonomia” (idem El Nacional), ambos anti-chavistas. Na Internet, o jornal boliviano El Diario dava: “O 'sim' ganhou com mais de 84% de votos em consulta autonômica”, citando no texto os demais números: 11,5% do 'não', 1,3% de brancos e 2,5% de nulos; e outra nota dando: “Organizações se mobilizam contra o referendo de Santa Cruz”, destacando as manifestações em La Paz, Cochabamba, Oruro e Patosí.

Há um folclore no Brasil dando conta de que um político mineiro (falam em Pedro Aleixo, mas penso que poderia ser qualquer outro) dizia, sabidamente, que o importante não é o fato, mas sim a versão. Há algum tempo, mesmo antes de entrar em contato com essa guerra midiática, guerra de versões aqui em Caracas (chamam aqui terrorismo midiático e guerra de quarta geração), eu defendia a tese de que é secundário o que um governante faz no exercício de seu mandato, o fundamental é como ele aparece na mídia. Daí a incrível submissão de políticos a caprichos e chantagens de jornalistas, comunicadores e donos de mídia, sujeitando-se, às vezes, a verdadeiros achincalhes públicos, como ocorre em alguns programas de TV.

Todo este arrazoado (nariz de cera, diria um jornalista) é para chamar a atenção das omissões e distorções contidas no noticiário acima. Reparem bem: de que se trata realmente? Trata-se de uma tentativa de separar a parte mais rica da Bolívia (especialmente em petróleo), já que Evo Morales ganhou eleições no país, tem o apoio da maioria da população (60% indígenas), e, supremo pecado, insiste, persiste e não desiste de usar as riquezas naturais bolivianas em benefício de seu povo pobre. Além disso, outro pecado, é um camponês indígena e a “elite branca” (expressão que fez sucesso no Brasil na boca do ex-governador paulista Cláudio Lembo) não aguenta essa afronta. Como não aguenta um Lula operário falando o português “errado” ou um Hugo Chávez com traços de indígena - “el cholo”, como designam, pejorativamente, o mestiço. Portanto, a palavra “separatismo” tinha que aparecer no texto, mas é cuidadosamente escondida.

Mais: quem está patrocinando, quem vai tirar vantagens da separação? Além da oligarquia local, as transnacionais, o império estadounidense. Ah! lá vem, tudo é o império, os Estados Unidos!, diriam enfadados. Mas o diabo é que é mesmo, não tem por onde fugir. Sua embaixada e agentes deixam suas digitais em todo canto. E isso também, claro, não aparece no noticiário da “imprensa livre”. Como não aparecem os números da abstenção, ao redor de 40%, as pressões, a violência contra os partidários do presidente (mais de 20 feridos e falam em pelo menos uma morte, mas ainda sem comprovação), as denúncias de fraude – a Telesur, emissora de TV estatal, mostrou a apreensão de cédulas de votação marcadas previamente com o “sim”.

Também não se esclarece que esses números, no fundo, no fundo, não têm qualquer garantia de veracidade, pois o processo de votação e contagem está nas mãos dos próprios separatistas. A suposta garantia viria de uma Corte Departamental e de entidades e fundações privadas, de antecedentes já manjados. Reparem bem: o órgão oficial boliviano encarregado de eleições (equivalente ao nosso TSE) ficou de fora; nenhum país (nem mesmo os Estados Unidos, pelo menos oficialmente) mandou observadores; e não houve representantes de nenhum órgão internacional, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), União Européia e Nações Unidas (ONU). Todos respaldaram a unidade territorial do país e o governo de Evo Morales, deixando claro que o processo está à margem da lei. Mas esses “pequenos detalhes” são omitidos na cobertura de nossa imprensa.


Comentários

Ernandes Santos disse…
Isto é inédito. Vou comentar antes de ler. Vou aproveitar parte do final de semana e ler todo este blog e saber das suas versões e aversões sobre a américa do lado de cá. Saudades, companheiro. Soube que está bem e isto é que importa. Agora dá licença que eu tenho um texto pra ler e comentar
Ernandes Santos disse…
Tenho certeza que tem gaúcho nesta história de separatismo. Jadson, me desculpe, me desculpe, mas este negócio de geopolítica latino americana não tá com nada. Tem uma menina Isabella (que Deus a tenha)que tá fazendo o maior sucesso por aqui.Devo admitir que não tava lendo seu blog antes por estar acompanhando todo o caso, e minutos antes estava vendo as cenas do próximo capítulo. E nesta confusão toda por aí, por onde anda a FUNAI?

Ernandes Santos