JESSÉ SOUZA: “NINGUÉM INVENTA OS PRÓPRIOS VALORES MORAIS”


Todo indivíduo já nasce dentro de um contexto moral. Ilusões a respeito moldam pessoas dóceis e tradicionalistas e também consumidores ávidos, submissos aos black friday da vida.



Por Jessé Souza (sociólogo) – do livro ‘A classe média no espelho’ (editora Estação Brasil), páginas 30/31 (título e destaque acima são da edição deste blog)



...tendemos a achar que as ideias morais são criadas por nós individualmente, como se cada pessoa tivesse seus próprios valores morais, tal como cada um tem sua bicicleta, seu carro ou apartamento. O liberalismo dominante nada de braçada nessas ilusões objetivas. Para os egos infantilizados e inflados, ele reforça a ideia de que cada indivíduo define sua vida, seu conceito de felicidade e seus próprios valores. O resultado concreto disso são indivíduos dóceis e tradicionalistas na esfera pessoal e pública – e também consumidores ávidos num mercado que sempre oferece algum produto certo para acalmar a ansiedade e a insegurança existenciais.



Imaginar que os valores são criações individuais, como fazemos no dia a dia, é uma bobagem facilmente criticável e passível de refutação empírica. Ora, a moralidade é, por definição, social, ou seja, pressupõe ao menos duas pessoas com expectativas recíprocas de comportamento. Nesse sentido, todo indivíduo já nasce dentro de um contexto moral, o qual ele incorpora de modo insensível e irrefletido pela socialização familiar, e depois escolar, como algo afetivo e sagrado, uma vez que transmitido por pessoas próximas e amadas. Daí advém a força emotiva das demandas morais, as quais, quando descumpridas, inexoravelmente despertam sentimentos de culpa, de ressentimento e de altodesvalorização.



Esses inevitáveis “sentimentos morais” – como culpa, remorso, ressentimento, raiva ou inveja – comprovam que o “social” e sua força moral estão “dentro” – e não apenas “fora” – de nós, e precisamente por conta disso essa força é tão acentuada. Ninguém inventa os próprios valores morais. No máximo, enquanto indivíduos, podemos reagir de modo peculiar ao enorme impacto de uma moralidade social que, por sua vez, nos oprime e nos molda quase por completo. As reações individuais à moralidade social, quando não se tornam força social e política, tendem a ser uma teimosia descontínua, subjetiva e desprovida de consequências práticas.



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