A REVOLTA LATINA, A CRISE AMERICANA E O DESAFIO PROGRESSISTA


Bandeira do povo indígena Mapuche como símbolo da rebeldia dos chilenos
Mesmo quando contestados, os EUA e o capital financeiro internacional mantêm o seu poder de vetar, bloquear ou estrangular economias periféricas que tentem uma estratégia de desenvolvimento alternativa e soberana, fora da camisa de força neoliberal, e mais próxima das reivindicações desta grande revolta latino-americana.


Por José Luís Fiori (linguista, professor da USP) – do portal Carta Maior, de 30/11/2019 (destaque acima, intertítulos e disposição dos parágrafos são da edição deste blog)


Num primeiro momento, pensou-se que a direita retomaria a iniciativa, e se fosse necessário, passaria por cima das forças sociais que se rebelaram, e surpreenderam o mundo durante o “outubro vermelho” da América Latina.


Ofensiva do governo brasileiro


E de fato, no início do mês de novembro, o governo brasileiro procurou reverter o avanço esquerdista, tomando uma posição agressiva e de confronto direto com o novo governo peronista da Argentina.


Em seguida interveio, de forma direta e pouco diplomática, no processo de derrubada do presidente boliviano, Evo Morales, que havia acabado de obter 47% dos votos nas eleições presidenciais da Bolívia.


A chancelaria brasileira não apenas estimulou o movimento cívico-religioso da extrema-direita de Santa Cruz, como foi a primeira a reconhecer o novo governo instalado pelo golpe cívico-militar e dirigido por uma senadora que só havia obtido 4,5% dos votos nas últimas eleições.


Ao mesmo tempo, o governo brasileiro procurou intervir no segundo turno das eleições uruguaias, dando seu apoio público ao candidato conservador, Lacalle Pou – que o rejeitou imediatamente – e recebendo em Brasília o líder da extrema-direita uruguaia que havia sido derrotado no primeiro turno, mas que deu seu apoio a Lacalle Pou no segundo turno.


Expansão da “onda vermelha”


Mesmo assim, ao fazer-se um balanço completo do que passou no mês de novembro, o que se constata é que uma expansão da “onda vermelha” havia se instalado no mês anterior no continente latino-americano.


Libertação de Lula


Nessa direção, e por ordem, o primeiro que aconteceu foi a libertação do principal líder da esquerda mundial, segundo Steve Bannon, o ex-presidente Lula, que se impôs à resistência da direita civil e militar do país, graças a uma enorme mobilização da opinião pública nacional e internacional.


Levante na Bolívia


Em seguida aconteceu o levante popular e indígena da Bolívia, que interrompeu e reverteu o golpe de Estado da direita boliviana e brasileira, impondo ao novo governo instalado a convocação de novas eleições presidenciais com direito à participação de todos os partidos políticos, incluindo o de Evo Morales.


Grande vitória no Chile


Da mesma forma, a revolta popular chilena também obteve uma grande vitória com a convocação, pelo Congresso Nacional, de uma Assembleia Constituinte que deverá escrever uma nova Constituição para o país, enterrando definitivamente o modelo socioeconômico herdado da ditadura do General Pinochet.


E mesmo assim, a população rebelada ainda não abandonou as ruas e deve completar dois meses de mobilização quase contínua, com o alargamento progressivo da sua “agenda de reivindicações” e a queda sucessiva do prestígio do presidente Sebastian Piñera, que hoje está reduzido a 4,6%.


Neste momento, a população segue discutindo nas praças públicas, em cada bairro e província, as próprias regras da nova constituinte, prenunciando uma experiência que pode vir a ser revolucionária, de construção de uma constituição nacional e popular, apesar de ainda existirem partidos e organizações sociais que seguem exigindo um avanço ainda maior do que o que já foi logrado.


Governo do Equador acuado


No caso do Equador, o país que se transformou no estopim das revoltas de outubro, o movimento indígena e popular também obrigou o governo de Lenin Moreno a recuar do seu programa de reformas e medidas impostas pelo FMI, e aceitar uma “mesa de negociações” que está discutindo medidas e políticas alternativas junto com uma agenda ampla de reivindicações plurinacionais, ecológicas e feministas.


Surpreendente avanço na Colômbia


Mas além de tudo isso, o mais surpreendente acabou acontecendo na Colômbia, o país que vem sendo há muitos anos o baluarte da direita latino-americana e é hoje o principal aliado dos Estados Unidos, do presidente Donald Trump, e do Brasil do capitão Bolsonaro, no seu projeto conjunto de derrubada do governo venezuelano e de liquidação dos seus aliados “bolivarianos”.


Depois da vitória eleitoral da esquerda, e da oposição em geral, em várias cidades importantes da Colômbia, nas eleições do mês de outubro, a convocação de uma greve geral em todo o país, no dia 21 de novembro, deslanchou uma onda nacional de mobilizações e protestos que seguem contra as políticas e reformas neoliberais do presidente Ivan Duque, cada vez mais acuado e desprestigiado.

Ponto em comum: rejeição das políticas neoliberais



A agenda proposta pelos movimentos populares varia em cada um desses países, mas todas elas têm um ponto em comum: a rejeição das políticas e reformas neoliberais, e sua intolerância radical com relação às suas consequências sociais dramáticas - que já foram experimentadas várias vezes através de toda a história da América Latina – e que acabaram derrubando o seu próprio “modelo ideal” chileno.


Frente a esta contestação quase unânime, duas coisas chamam muito a atenção dos observadores:


a primeira é a paralisia ou impotência das elites liberais e conservadoras do Continente, que parecem acuadas e sem nenhuma ideia ou proposta nova, que não seja a reiteração de sua velha cantilena da austeridade fiscal e da defesa milagrosa das privatizações que vêm fracassando por todos os lados;


e a segunda é a relativa ausência ou distanciamento dos Estados Unidos frente ao avanço da “revolta latina”.


Porque mesmo quando tenham participado do golpe boliviano, fizeram com uma equipe de terceiro time do Departamento de Estado, e não contaram com o entusiasmo que o mesmo departamento dedicou, por exemplo, à sua “operação Bolsonaro” no Brasil.


Ao mesmo tempo, este distanciamento americano tem dado maior visibilidade ao amadorismo e à incompetência da nova política externa brasileira, conduzida pelo seu chanceler bíblico.


(...)


O Brasil pode se transformar num pária continental


Não é necessário repetir que não existe uma única causa, ou alguma causa necessária, que explique a “revolta latina” que começou no início do mês de outubro.


Mas não há dúvida de que esta divisão americana, junto com a mudança da geopolítica mundial, tem contribuído decisivamente para a fragilização das forças conservadoras na América Latina.


Tem contribuído também para a acelerada desintegração do atual governo brasileiro e a perda de sua ———— dentro do continente latino-americano, com a possibilidade de que o Brasil se transforme brevemente num pária continental.


(...)


Para ler o artigo na íntegra:

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-revolta-latina-a-crise-americana-e-o-desafio-progressista/4/45999

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