Carlos Nascimento (Foto: do site Blitz Conquista) |
“Não é direito de homem algum infringir
“misérias” à mulher ou a quem quer que seja. O corpo feminino não está disposto
à violação inconsentida, assim como o povo deste país não deve estar exposto às
estocadas a ele deferidas sob o pretexto de um bem maior”.
Por Carlos Nascimento - bacharel em
Administração e mestre em Ciências da Comunicação – artigo de 12/09/2019 (destaque
acima e disposição dos parágrafos são da edição deste blog)
Quando aguardava pelo nascimento de minha
primeira filha, um amigo, pai de uma recém-nascida, perguntou: “E aí? É homem
ou mulher?”. Respondi que seria uma menina e, de imediato, recebi um tapa nas
costas acompanhado de uma profecia em tom jocoso: “Pois é. Vamos pagar por
todas as misérias que fizemos com as filhas desses sujeitos por aí!”. Um pouco
assustado com a sentença, retruquei dizendo que não me recordava de já ter
violentado alguém e que, o pouco que havia “aprontado” na vida, o fizera de
comum acordo com as “aprontandas”. Logo, quando chegasse a vez de minha filha
namorar, que o fizesse em paz e com a alma leve. Afinal, sexo é bom, e assim
deve ser para todos.
Sempre que faço esta reflexão, penso na
aceitação do papel do macho como violador. É ele, varão, o responsável pelo
deflorar da mulher, importando pouco o desejo e o prazer da fêmea vitimada.
Este mesmo homem, que entende poder transgredir a idealizada inocência
feminina, tem também a obrigação de proteger e castrar a sexualidade de suas
herdeiras. Causa e efeito do medo que forja o imaginário masculino. Quando
tratamos de estupro, vale pensar nesta expressão como algo que transcende o ato
físico.
É bom lembrar que, invasões ao direito e à
privacidade das mulheres estão presentes em atitudes diversas, e permanecem a
se alojar nos mais corriqueiros costumes, absorvidos e repassados também por
estas, uma vez que educadas a partir de conceitos machistas, entendidos e
aceitos como normatizadores sociais. (In)consciência coletiva que se projeta em
irrupções que vão para além das relações genitais, pois, o ato e o discurso
estuprador legitimam a imagem do homem frente a uma sociedade patriarcal e
reacionária.
Visível consequência disto aparece no
questionamento normalmente feito pela sociedade quanto à inocência da mulher
vítima de violência sexual. A atitude sensual, a forma de vestir, a exposição a
lugares impróprios ou o “pecado” de gostar de sexo são usualmente colocados
como atributos culposos a esta. Forma disfarçada, mas consciente, de manutenção
do discurso estuprador.
A feminista negra (e negra) Djamila Ribeiro
descreve com propriedade como o domínio do Estado (machista) sobre o corpo da
mulher é determinante para esta cultura. Em ‘Quem tem medo do feminismo negro?’
(Companhia das Letras, 2018), relata, através da crítica a fatos cotidianos,
como a manutenção destes (pré)conceitos permanece viva e impregnada no
dia-a-dia das pessoas. Em particular, discorre sobre a posição da mulher negra,
tratada como subumana, disposta à sociedade e ao mercado de trabalho como
serviçal doméstica e sexual. Pior dos reflexos do escravagismo que ainda não se
desprendeu de nossa formação. Tudo isso é violência, é invasão, é estupro.
Em tempos recentes, um deputado federal
declarou em público a quem preferia (ou não) estuprar. Escolha honrosamente
negada à colega de plenário a quem entendia estar ofendendo. Além de
imperdoável, sua afirmação reflete (e incentiva) a ideia de que o estupro é um
direito legítimo do homem. Pensamento não diferente do explicitado na postura
do ministro da Economia que, ao defender a retomada da CPMF, afirmou que: se
esta for “pequenininha, não machuca”. Seu “humor” exemplifica o como estas
expressões machistas estão encrustadas em nossa cultura, sendo corriqueiramente
usadas sem qualquer preocupação semântica. Talvez importe lembrar ao ministro
que, em uma relação entre iguais (democrática), o penetrar, seja do tributo
grande ou do pênis pequeno, deve ser negociado, não imposto.
Na contramão destes discursos, a paulista Ana
Cañas canta seu sexo explícito de forma violenta. Uma poesia carnal, agressiva
e necessária. Que ofende homens e assusta mulheres, justamente por fazer o
caminho inverso, violentando o universo machista que não aceita este direito
quando posto à voz feminina. Sabe-se que, muitas das músicas que fazem sucesso
nas rádios e na internet, descrevem mulheres sexualizadas e submissas,
convocadas a “sentar”, “chupar”, “ajoelhar”, “rebolar”, mas nunca a gozar. O
ato estuprador não é entendido como parte da natureza feminina e, por isso
mesmo, a arte de Cañas é fundamental ao Brasil de hoje.
Em campo distinto, mas em reflexão análoga, o
escritor e psicanalista Contardo Calligaris descreve o Brasil como um lugar
eternamente disposto ao estupro. Em seu livro ‘Hello Brasil’ (Editora Escuta,
1991), analisa a relação dos colonizadores portugueses com esta terra prometida
e disposta à exploração eterna. Calada, pronta ao deleite de seu conquistador,
ela não tem o direito de reação e é desprezada como uma prostituta, sob os
bravios de “este país não presta”. Trazer as percepções de Calligaris a este
escrito se faz importante, pois demonstra o quanto o patriarcado, o falo que
fala, naturaliza a violação da terra e da sociedade. Por isso mesmo, sua
comparação com a violação da mulher reforça a indissociabilidade entre o
feminismo e a política.
Reivindicar o direito ao sexo e ao corpo
(ridículo ainda se falar nisso em pleno século XXI), se estende para além de
questões de gênero. A inviolabilidade do corpo feminino é um marco fundamental
para o entendimento de que o Estado (não macho) deve o mesmo respeito a todos,
e que a construção de uma sociedade democrática passa pela percepção da
igualdade nas diferenças.
Retomando o diálogo motivador deste texto,
não é direito de homem algum infringir “misérias” à mulher ou a quem quer que
seja. O corpo feminino não está disposto à violação inconsentida, assim como o
povo deste país não deve estar exposto às estocadas a ele deferidas sob o
pretexto de um bem maior. Em ambos os casos, corpos e vidas são invadidos, e os
resultados desta “relação” apontam sempre para um gozo unilateral e explícito,
mas muitas vezes distante da percepção geral de suas vítimas.
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