CLÁUDIA FERREIRA E O MOTORISTA DO 1636


Por Franciel Cruz – jornalista, autor de Ingresia, livro de crônicas (*)

Nada ou tudo que se diga sobre o covarde e brutal assassinato de Cláudia da Silva Ferreira poderá dar a dimensão da barbárie cometida pelo Estado. O vídeo mostrado na segunda-feira, dia 17 de março daquele ano de 2014, pelo Jornal Extra, é terrivelmente chocante. Os três policiais do 19º BPM de Rocha
Miranda, os subtenentes Adir Machado e Rodney Archanjo e o sargento Alex Sandro Alves, tratam a auxiliar de serviços gerais e mãe de 8 filhos, quatro naturais e quatro adotados, como se fosse um saco, para usar a forte e, paradoxalmente, impotente expressão do viúvo Alexandre Fernandes da Silva.

O desprezo policial, como sói acontecer, contamina e/ou é contaminado pelas diversas outras esferas de poder e da sociedade. A auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, moradora do Morro do Congonha, que, como se observa, tem nome, profissão e residência, transforma-se apenas em uma mulher arrastada pela viatura, segundo os noticiários. Ou então em uma “trabalhadora”, de acordo com a fala da então ministra Maria do Rosário em seu pronunciamento no Twitter.

Esta é uma lógica que se repete per seculae seculorum. Os jornais e os outros veículos da mídia e do poder especializaram-se em retirar não só a dignidade dos deserdados, mas insistem em não reconhecer nem mesmo o presente que eles receberam na pia batismal. Aliás, o único momento em que há tratamento igualitário entre pobres e ricos, já disse e repito, é na
seguinte ocasião: quando um pobre é assassinado ou um rico é detido por tráfico ou algo que o valha, nunca (ou muito raramente) dão-se destaque aos seus nomes. Quando a situação é inversa, isto é, um rico é assassinado e um pobre é preso com uma trouxinha de maconha, aí sabemos toda a árvore genealógica de todos os envolvidos.

É absurdamente incrível esta disparidade de tratamento. Para ficar no campo policial, vale comparar os fatos e procedimentos. A polícia feroz, que matou o menino Joel e, pouco tempo depois, seu primo Carlos Alberto, aqui no Nordeste de Amaralina, em Salvador, é a mesma que se porta de modo extremamente condescendente diante de uma agressiva moça que diz ser sobrinha de um juiz e conhecida do radialista e ex-prefeito Mário Kertész. Eles se guiam pelo devastador axioma. “Rico também delinque, mas aí não é problema da polícia”.

No entanto, o que queria também destacar é que o dia de ontem não ficou marcado somente pela barbárie, não pelo menos para mim e para as cerca de 80 pessoas que lotavam o ônibus 1636, com destino à Mata dos Oitis, via orla. Exatamente no horário do rush, com a cidade toda engarrafada (é incrível como a atual gestão conseguiu o impossível: piorar o trânsito de Salvador), nervos à flor da pele, cansaços, estresses, foi possível presenciar um ato de delicada bravura.

Seguinte foi este.

No primeiro ponto da Avenida Pinto de Aguiar, uma senhora com uma criança no colo adentrou o ônibus lotado. Nas Condições Normais de Temperatura e Pressão, o motorista, já exausto por um dia de trabalho e aborrecimentos, tocaria o bonde sem maiores preocupações. Mas não o motorista do ônibus 1636. De modo surpreendente, ele parou o buzu e falou com voz serena, mas firme. “Só sigo viagem se derem lugar a esta senhora”.

Passaram-se pouco mais 30 segundos, que pareciam uma imensidão, tamanho o constrangimento, até que, enfim, uma pessoa se levantou. A senhora, então, pode se sentar com seu filho e a viagem prosseguiu normalmente.

Normalmente, vírgula, extraordinariamente. Ali, naquele momento, estávamos presenciando mais um ato de terna bravura daqueles que, apesar das mais duras adversidades do cotidiano, recusam-se a se entregar à barbárie. Aliás, a batalha da serena, mas combativa, delicadeza contra a estúpida brutalidade parece ser a mais importante luta neste Brasil tão desigual e
desgraçadamente dividido.

Por isso, apesar dos dissabores de um buzu completamente lotado, fiquei o resto da viagem imaginando como seria confortante se o motorista do ônibus 1636, de Mata dos Oitis, fosse o responsável por prestar socorro a Cláudia da Silva Ferreira.
  
P.S. Antes de escrever estes rabiscos, fui ao Google para ler algo sobre a morte de Cláudia da Silva Ferreira. Porém, a referida ferramenta de pesquisa sempre completava com outro sobrenome. Apareceram as mortes da atriz Cláudia Magno, ocorrida há exatos 20 anos, a reportagem sobre “O Assassínio de Cláudia Lessin Rodrigues”, que recebeu o prêmio Esso de 1977, e até mesmo o boato sobre a “morte” da cantora Claudia Leitte.

(*) Esta crônica faz parte do livro Ingresia. Foi reproduzida aqui a partir do espaço literário editado pelo jornalista Carlos Navarro Filho no site Bahia Notícias.

Comentários