VICENÇ NAVARRO: O QUE A IMPRENSA OCULTA SOBRE AS ELEIÇÕES DOS ESTADOS UNIDOS

(Foto: Reprodução/Carta Maior)
Não há dúvidas de que estamos diante de um momento político histórico, da alvorada de uma nova época, e conhecemos muito pouco do que virá.
As classes populares estão cansadas do conchavo entre os interesses econômicos e financeiros das grandes empresas, que constituem a classe corporativa, por um lado, e as instituições representativas desses mesmos interesses, por outro – as mesmas que se tornaram meros instrumentos de tal classe.

Por Vicenç Navarro (*) - Público.esreproduzido do portal Carta Maior, de 10/02/2016

A cobertura do que está acontecendo nas eleições primárias para o cargo de presidente dos Estados Unidos por parte dos maiores meios de informação é, com limitadíssimas exceções, muito parcial, traduzindo a orientação conservadora e/ou neoliberal que caracteriza a grande maioria de tais meios. A bem conhecida (a nível internacional) falta de diversidade ideológica na televisão e no rádio, assim como na imprensa escrita, com raríssima presença de vozes de esquerda, se reflete tanto nos meios de dentro quanto nos de fora dos Estados Unidos. E não poderia ser diferente: os correspondentes presentes no país se limitam a traduzir o que dizem os maiores meios de informação estadunidenses, sem ir mais longe e sem aprofundar criticamente.

E para complicar mais as coisas, em sua tradução do que a imprensa estadunidense diz, muitas vezes copiam literalmente o que se escreve em tais meios, sem perceber que alguns termos têm um significado oposto em diferentes praças. Assim, o que nos Estados Unidos se chama de “liberal” seria um político que apoia o intervencionismo do Estado na atividade econômica, propondo medidas redistributivas e a expansão do gasto público. Liberal, nos Estados Unidos, é o que na Europa ou na América Latina se conhece como social democrata – nessas mesmas regiões, um político liberal é aquele que está contra o intervencionismo do Estado, que desfavorece as políticas redistributivas, e promove a privatização do setor público.

O que acontece nos Estados Unidos?


Hoje, a notícia mais importante que existe nos Estados Unidos é que um candidato à presidência do país, que se apresenta como socialista – sem temores, com orgulho de sê-lo –, e que pede uma revolução política no país, utilizando essa expressão em cada um dos seus atos eleitorais, está causando um tsunami eleitoral semelhante ao que ocorreu na Espanha com o Podemos, ou com o candidato trabalhista britânico, Jeremy Corbyn. Na primeira batalha das primárias, há alguns dias atrás, em Iowa, o candidato socialista empatou com a candidata claramente apoiada pelo aparato do Partido Democrata, a Sra. Hillary Clinton, que conta principalmente com a bendição do establishment político-midiático do partido. E essa quase vitória de Sanders, o candidato socialista, ocorreu apesar da clara hostilidade que ele sofreu por parte dos maiores meios de informação do seu país – tal como ocorre com o Podemos na Espanha e com Corbyn no Reino Unido, para ficar em apenas outros dois exemplos.

O surgimento deste movimento antiestablishment nos Estados Unidos, liderado por Bernie Sanders, também tem características semelhantes ao que sucede na Espanha e no Reino Unido, e responde a uma situação comum nos três países: as classes populares estão cansadas do conchavo entre os interesses econômicos e financeiros das grandes empresas, que constituem a classe corporativa, por um lado, e as instituições representativas desses mesmos interesses por outro – as mesmas que se tornaram meros instrumentos de tal classe. Tal situação foi possível devido à privatização do processo eleitoral nos Estados Unidos, onde todo candidato a um cargo político pode receber todo o dinheiro que sua campanha puder arrecadar, e financiar suas campanhas através dos chamados Super PACs, que permitem que se compre todos os espaços televisivos que quiser, sem que exista nenhuma regulação ao acesso a tais meios. A maioria dos fundos que a classe política recebe provém das grandes empresas, do 1% mais rico da sociedade, os que controlam também a maioria dos meios de informação e persuasão do país.
 
A consequência deste conchavo entre o mundo do capital e as instituições políticas é que as políticas aprovadas pelo Congresso dos Estados Unidos – hoje controlado pela ultradireita estadunidense, um setor financiado massivamente por Wall Street – favorecem sistematicamente os interesses desse capital, e prejudicam o mundo do trabalho, composto pela maioria das classes populares dos Estados Unidos.
 
Tal situação também afeta grande parte do Partido Democrata. Foi precisamente o presidente Bill Clinton que desregulou a banca (tendo como ministro de Finanças o Sr. Robert Rubin, um dos maiores banqueiros de Wall Street), criando as bases para que surgisse a maior crise financeira que o país já viveu desde a Grande Depressão. A mais recente crise criou uma grande queda no nível de vida das classes populares, e ao mesmo tempo aumentou as desigualdades existentes no país. Como constantemente aponta Bernie Sanders, “apenas um décimo desses 1% mais ricos do país possuem 90% das riquezas estadunidenses”. E os dados, facilmente acessíveis, comprovam a veracidade e a credibilidade dessa mensagem.

A revolta popular contra o establishment político-midiático
Resultado dessa situação, a legitimidade e popularidade das instituições políticas caíram até o chão. A enorme abstenção no processo eleitoral – verificado principalmente entre as classes populares – é um indicador dessa perda de fé nas mesmas. O slogan “não nos representam” ressoou tanto no 15M espanhol quanto nos Estados Unidos, através do movimento Occupy Wall Street. Por isso o chamado de Sanders a uma revolução política que rompa com o conchavo entre a classe corporativa e as instituições que se definem como democratas é um elemento central do seu discurso. Sua tese é a de que sem essa revolução política será impossível fazer as mudanças políticas que ele está propondo, que são medidas típicas da social democracia – antes desta se transformar em social liberalismo, como ocorreu na maioria de países europeus, e em alguns da América Latina.

As propostas do candidato socialista


Entre as propostas de Sanders, estão a de romper com os grandes bancos, dividindo-os em entidades menores, além de fazer com que eles devolvam o dinheiro dado como resgate para salvá-los do colapso durante a crise de 2008, o que foi feito com fundos públicos. Essas medidas são altamente populares. O senador também tem em seu programa, como propostas principais, a de fazer um investimento massivo em obras públicas, facilitando a transição das fontes de energia, passando de uma matriz baseada em combustíveis fósseis a uma voltada a fontes renováveis – propondo criar 13 milhões de postos de trabalho através dessa política –, e a de estabelecer uma reforma da saúde mais profunda que a de Obama, para garantir a universalidade do acesso ao sistema – hoje, nos Estados Unidos, há mais mortes por falta de acesso à saúde do que pela AIDS, por exemplo. O grau de cobertura de saúde no país é muito insuficiente: 45% das pessoas que estão sofrendo de doenças terminais expressam preocupação sobre como eles mesmos e seus familiares pagarão as dívidas médicas.
 
Outra proposta com grande respaldo anunciada pelo candidato Sanders é a de realizar as reformas que permitiriam o acesso a todos os níveis do sistema educativo, desde as escolas infantis até as universidades. O acesso aos centros de educação infantil e escolas de ensino fundamental e médio tem diminuído entre as classes populares de forma bastante evidente, especialmente devido ao encarecimento das mensalidades. Talvez seja essa a medida que mais contribuiu para que cerca de 80% das pessoas entre 18 e 30 anos apoiassem Sanders nas primárias de Iowa. A nível nacional, segundo a maioria das pesquisas, uma porcentagem semelhante de jovens pais apoia Sanders. Por outra parte, segundo as últimas medições citadas pelo Financial Times (no dia 06 de fevereiro), Clinton e Sanders estão hoje tecnicamente igualados em apoio entre os membros do Partido Democrata – Clinton teria 44% e Sanders 42%.

Um socialista poderia ser presidente dos Estados Unidos?


Existe uma percepção comum entre os maiores meios de informação, de que um candidato socialista não seria capaz de vencer as eleições dos Estados Unidos. Na verdade, alguns dirigentes do Partido Democrata, incluindo Hillary Clinton, consideram que a vitória do candidato socialista nas primárias do conglomerado seria o melhor presente que poderiam dar ao Partido Republicano, ao tornar mais fácil seu caminho para a vitória nas eleições de novembro, devido à enorme vulnerabilidade que representa o fato de que Sanders seja socialista.
 
Tal opinião, à primeira vista, pareceria razoável tendo em conta os estereótipos que os meios de informações reproduzem sobre os Estados Unidos. Porém, tal linha de argumentação ignora que, segundo as principais pesquisas – a última delas realizada pela Real Clear Politics Average –, o candidato Sanders ganharia numa disputa contra Donald Trump ou Ted Cruz, os dois candidatos republicanos com maior apoio eleitoral, e com uma margem de vitória sobre eles maior que a sustentada por Hillary Clinton, que conta com o claro apoio da cúpula do Partido Democrata.

O Congresso dos Estados Unidos permitiria que se aplicassem as propostas de Sanders?


Nem precisamos pensar sobre o quão certo seria essa hipótese, com um Congresso como o de hoje, controlado pela ultradireita – que domina o Partido Republicano hoje. Porém, se o candidato Sanders ganhar, seria um indicador de que ele conseguiu criar um movimento ao longo do país que se traduziria numa mudança na configuração do mesmo Congresso no dia das eleições presidenciais, que coincidem com as eleições ao Congresso. O candidato Sanders, durante sua campanha, tem repetido a importância de criar um movimento progressista de profundas convicções democráticas, claramente comprometido com uma mudança política revolucionária, anulando, por exemplo, a enorme influência que a classe corporativa tem sobre o processo eleitoral e sobre as instituições representativas.

Sanders conseguirá financiamento para suas propostas?


Este argumento se reitera constantemente em vários países, usado sempre pelas vozes conservadoras e neoliberais, como objeção contra as medidas que requerem expansão do gasto público social, propostas por forças progressistas. É interessante destacar que nunca se faz a pergunta de se o país tinha dinheiro para pagar o resgate aos bancos – se fosse feita, talvez seria respondida da mesma forma. Se o país teve dinheiro para salvar os bancos em problemas, também deveria ter para ajudar a população que enfrentava os efeitos da crise.
 
E o mais importante é que existem fundos suficientes nos Estados Unidos. O próprio Sanders comprova isso: reduzindo significativamente o gasto militar, proibindo os movimentos das empresas em paraísos fiscais e fazendo com que paguem impostos como todos os demais, e aumentando a carga fiscal das grandes fortunas, entre outras medidas. Com isso se poderia gerar recursos mais que suficientes para assumir tais gastos. A não existência desses fundos agora se deve a causas políticas (o já citado conchavo entre o poder econômico e o poder político), não a causas econômicas.
 
O grupo de economistas do candidato Sanders publicou um artigo sobre como seriam financiadas cada uma das reformas que ele propõe. Por exemplo, o programa de universalização dos serviços de saúde substituiria o financiamento privado do atual sistema estadunidense – que se baseia no pagamento de apólices às companhias privadas de seguros, cujos valores são impossíveis para milhões de pessoas, o que determina que elas terão muitas dificuldades para receber atenção médica – por um financiamento público, e assim a cidadania não estará mais obrigada a buscar o serviço das companhias privadas, que oferecem uma cobertura insuficiente, tendo a possibilidade de contar com uma agência pública, que cobrará um valor muito menor e que garantiria uma cobertura completa, como acontece no Canadá – onde a popularidade do sistema de saúde é muito maior que a do sistema privado estadunidense. Na verdade, os impostos não seriam aumentados para a maioria da população, pois a expansão dos serviços públicos seria feita com base nas mudanças de prioridade do gasto público, transferindo fundos da área militar para a social, e no aumento dos níveis impositivos dos bilionários, que pagam pouquíssimos impostos atualmente, em valores desproporcionais com respeito à sua renda e patrimônio.

Sanders não seria velho demais?


Um argumento que parece vulgar mas que tem sido utilizado para desacreditar Sanders, como se sua idade avançada fosse sinônimo de menos habilidade política. Sanders tem lá seus 74 anos, goza de boa saúde e, como vem mostrando ao longo da campanha, é capaz de manter uma vida ativa, sem diminuir a intensidade que o cargo ao qual postula requer. Na verdade, a idade é um ponto a seu favor, pois mostra a coerência em sua vida política, sempre colocada a serviço das classes populares, o que permite a ele adquirir maior credibilidade, a que outros candidatos não alcançam, devido à pouca experiência ou às constantes mudanças de posturas e crenças.
 
Sanders, o político de maior idade no Senado dos Estados Unidos, e ao mesmo tempo o político mais popular entre os jovens do país, sempre apoiou ativamente todas as causas progressistas nos Estados Unidos, começando por seu apoio à campanha de Martin Luther King a favor da liberação dos negros. Ele foi prefeito da cidade de Burlington, membro do Congresso e do Senado, e sempre se distinguiu por defender o movimento sindical, os movimentos sociais, feministas e ambientais, liderando também a campanha de conscientização sobre o aquecimento global. É precisamente esta história a que faz ele ser especialmente atraente para os jovens, que têm ânsia e desejo de liberação, integridade e compromisso.

Sanders possui experiência em política externa?


Esta pergunta tem sido repetida com certa frequência pelos assessores de Hillary Clinton, que foi Secretária de Estado durante o primeiro mandato de Obama. Como bem respondeu Sanders, o que importa não é tanto a experiência, mas sim a sensibilidade e os critérios que tenha aquele que desenha e configura a política exterior nos Estados Unidos. E nesse sentido, o senador tem mostrado que possui maior sensibilidade e critérios que a candidata adversária em decisões cruciais. Por exemplo, Sanders se opôs à invasão do Iraque, enquanto Clinton a apoiou. Sanders se opôs ao bombardeio da Líbia e ao golpe contra Muammar al-Gaddafi. Hillary Clinton o apoiou. Sanders se opõe a continuar a política de confrontação com a Rússia e o Irã. Hillary Clinton a favorece. Sanders se opõe aos tratados TPP e TTIP. Hillary Clinton os apoiava – embora tenha se distanciado deles ultimamente.
 
Sanders não parece ser excessivamente utópico e pouco realista?

Novamente vemos uma postura idêntica à utilizada contra o Podemos na Espanha e contra o novo trabalhismo de Corbyn no Reino Unido, assim como outras forças políticas questionadoras que se opõem ao status quo atual. Nem é preciso lembrar que o establishment costuma colocar esse rótulo de “utópico” e “pouco realista” em todas as forças políticas que questionam o seu poder. Mas as medidas que Sanders propõe são amplamente reconhecidas por especialistas como reformas necessárias. Por exemplo, una medida de grande importância lançada pelo senador é o desmembramento dos grandes bancos (que foram resgatados com dinheiro público), evitando que o tamanho dessas empresas financeiras seja um elemento negativo e empurre a um panorama onde o sistema econômico dependa de um número excessivamente limitado de entidades bancárias. Hillary Clinton não apoia essa medida. O fato de que seja ou não realista depende primordialmente da vontade política, além do conhecimento técnico e científico, mas não é difícil de se realizar, além de ser aconselhável de se fazer.
 
Uma situação semelhante ocorre com relação ao aumento da idade para a aposentadoria (que é de 67 anos nos Estados Unidos), proposta à qual Sanders se opõe e que Hillary não descarta apoiar, embora se mantenha sem uma definição a respeito. Talvez a indefinição dela soe como uma alternativa melhor que qualquer um dos candidatos republicanos, decididos a apoiar o aumento, mas para uma pessoa progressista, Bernie Sanders se coloca melhor com respeito a essa questão.

O establishment político-midiático permitiria que Sanders fosse presidente?

Esta observação, procedente de grupos mais céticos da esquerda, tem muito peso. Que o establishment mostra uma enorme hostilidade para com a candidatura de Sanders é uma realidade. Os maiores canais de televisão do país (ABC, CBS e NBC) dão muito mais cobertura aos outros candidatos que a Sanders. Segundo a análise do tempo de cobertura dos candidatos, o tempo que esses canais ofereceram ao candidato republicano Donald Trump em 2015 foi cerca de 16 vezes maior que o dado a Sanders, que goza de maior apoio popular que Trump.
 
Fazer esse questionamento leva ao centro do problema: a cooptação das instituições democráticas por parte dos interesses econômicos e financeiros, corrompendo a democracia. Por isso o chamado de Sanders a transformar as instituições políticas (e midiáticas), aquilo que o senador define como Revolução Política, é tão potente quanto o chamado por uma nova ordem econômica, justa e solidária – e no fundo ambos os chamados são a mesma coisa, segundo ele mesmo. Este é o grande desafio que os Estados Unidos e todo o mundo têm pela frente hoje. Não há dúvidas de que estamos diante de um momento histórico, que estamos vivendo o fim de uma época, a alvorada de uma nova, e que ainda conhecemos pouco da configuração do mundo que virá. A enorme insatisfação das classes populares pode ser canalizada pelas forças políticas mais reacionárias (como Trump, nos Estados Unidos) ou pelas mais democráticas (como Sanders). Um futuro a favor das alternativas democráticas e progressistas dependerá das mobilizações populares pressionando para que isso ocorra. Simples assim.

(*) Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. Professor de Ciências Políticas e Sociais na Universidade Pompeu Fabra de Barcelona e professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA).

Tradução: Victor Farinelli

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