A ENCRUZILHADA DE BOLÍVAR – POR LUIZ ARNALDO CAMPOS

(Foto: Reprodução/Carta Maior)
Apesar dos problemas, nenhum país onde se elegeram presidentes na onda antineoliberal avançou tanto no empoderamento popular quanto a Venezuela.

Por Luiz Arnaldo Camposno portal Carta Maior, de 11/01/2016

Em Santa Elena de Uairén , cidade venezuelana fronteiriça com  a brasileira Pacaraima, no estado de Roraima, é possível  fazer câmbio negro abertamente. Em média um real vale 150 bolívares e um dólar entre 700 a 800 bolívares. Como a cédula venezuelana de maior valor é a de 100 bolívares o resultado são pacotes de notas a serem transportados por quem compra o dinheiro venezuelano. Se esta é uma cena emblemática da crise econômica atravessada pela República Bolivariana a outra, sem dúvida, são as filas de gente pobre nas primeiras horas da manhã, esperando para comprar gêneros e artigos de primeira necessidade com preço subsidiado.
 
Em Caracas, num supermercado privado, um cartaz informa a quantidade de produtos “sensíveis” (entre eles farinha, leite in natura, arroz, azeite, papel higiênico etc...) que podem ser comprados semanalmente por cada consumidor  mediante a apresentação da carteira de identidade no caixa.
 
Como uma espécie de rodízio, na segunda-feira podem comprar os produtos racionados os portadores de carteiras terminadas no número 1e 2 e assim sucessivamente pelos dias da semana. O quadro se completa com os reclamos da inflação galopante e da criação de uma espécie de sobrevivência através da especulação. Muita gente desempregada na fila dos armazéns estatais vai comprar a preço baixo produtos que logo estará vendendo no mercado negro com os preços majorados em mais de 100%.
 
A crise econômica está instalada na Venezuela e o presidente Maduro até agora não conseguiu convencer a maioria do povo trabalhador da culpa da grande burguesia compradora por este desastre.  Para o senso comum é incompreensível que um governo que controla a compra e venda de dólares e dirige plenamente a PDVSA (a companhia estatal de petróleo) responsável por mais de 90% das receitas econômicas do país não seja responsabilizado pela carestia e a piora das condições de vida da maior parte da população. Claro que tudo é mais complexo. Grandes importadoras compram dólar barato no câmbio oficial sob a desculpa de importar alimentos e desviam parte do dinheiro para o câmbio negro onde obtêm lucros espetaculares e a desaparição de produtos das prateleiras- como o sumiço dos refrigerantes na época natalina- parece claramente uma manobra de grandes distribuidoras para indispor a população contra o governo. Porém, por debaixo das aparências se esconde o fato inconteste: o país está sem divisas e com o petróleo a quarenta dólares o barril não existe muita perspectiva para recompô-las. Até mesmo setores do chavismo admitem que a corrupção na máquina governamental responde pela desaparição de milhões de dólares que afetaram a reserva nacional, porém para além dos chamamentos a retificações devidas no processo revolucionário  fica a pergunta: existe uma saída possível e imediata para a crise econômica?

A oposição martela todos os dias que com o chavismo no poder a situação vai transitar do ruim para o pior e nisto aposta suas fichas, muita embora esteja dividida entre aqueles que querem fazer o chavismo sangrar e decorridos três anos (metade) do governo Maduro tentar reunir as assinaturas de cidadãos suficientes para convocar o revocatório (uma eleição prevista pela Constituição Bolivariana, onde a população pode revogar o mandato do presidente e convocar novas eleições) e outros setores que entrincheirados na Assembleia Nacional buscam choques frontais com a presidência.
 
O governo por sua vez só aponta para alternativas de médio e longo prazo, como um maior controle da moeda, combate à corrupção e construção de uma base produtiva mais ampla do que a extração do petróleo. Parece pouco, até mesmo porque como optou por não reduzir os investimentos sociais – a Missão Vivenda acabou de entregar sua milionésima casa de no mínimo 82 metros quadrados e completamente mobiliada, o metrô de Caracas continua com sua passagem custando incríveis quatro bolívares (para efeito de comparação um cafezinho custa cinquenta bolívares) e modernos ônibus chineses, confortáveis, com ar condicionado e preço subsidiado, se incorporaram a paisagem urbana de todas as cidades- a inflação não dá tréguas.  Como não tem recursos para sustentar os gastos sociais o governo imprime dinheiro e com isso a inflação dispara.
 
No fundo a questão é política. No Chile de Allende, mesmo com o desabastecimento bem mais cruel do que o vivido pelos venezuelanos, a Unidade Popular venceu as últimas eleições parlamentares que disputou aumentando sua presença no Parlamento, fato decisivo para a direita optar pelo golpe. Na Venezuela, o resultado do último pleito foi muito duro para os bolivarianos. A oposição elegeu 2/3 das cadeiras e conquistou maioria absoluta. Porém, estes dados precisam ser esmiuçados. Na prática, a direita ampliou em apenas 300 mil votos a sua votação histórica. Na abstenção e no voto nulo- visto como o chamado voto de castigo de chavistas desiludidos ou apreensivos- construiu sua maioria acachapante. A batalha pelos corações e mentes dos venezuelanos está a pleno vapor.
 
No último dia 05 de janeiro, com a posse dos deputados eleitos foi dada a largada da etapa atual.  Nem mesmo tinham esquentado suas cadeiras, a Mesa Diretora da Assembléia Nacional ordenou a retirada do prédio dos retratos de Chávez e dos quadros de Bolívar feitos durante o período chavista,  empossou três deputados  do estado de Amazonas, cuja eleição está sob judice pelo Tribunal Superior Eleitoral e apresentou o projeto de uma Lei de anistia com o objetivo de libertar os opositores presos acusados de incitação e participação em atos violentos  destinados a questionar a vitória  de Maduro quando se elegeu presidente do país . O contra-ataque veio rápido. Maduro solicitou a Justiça a não validação dos atos da Assembleia, por causa da incorporação dos três deputados questionados judicialmente, as Forças Armadas realizaram atos de desagravo à figura de Bolívar e  o ex-presidente da Assembléia Nacional, Diosdado  Cabello  aventou a possibilidade de mesmo que seja aprovada a  chamada lei de anistia não seja cumprida.
 
Na televisão, Maduro, convocou o povo chavista a ir buscar aqueles que  ficaram em casa nas últimas eleições e chamou para este mês de janeiro a realização de um Congresso da Pátria destinado a retificar o processo revolucionário, ouvindo todas as vozes de todos os lutadores sociais. E nisto parece residir o x da questão. Nenhum país da América Latina onde se elegeram presidentes na onda antineoliberal avançou tanto no empoderamento popular quanto a Venezuela.  A instalação do poder comunal em diversas administrações locais, rádios e tvs comunitárias, círculos bolivarianos, centenas de  iniciativas de formação,  organização e participação foram estimuladas e desenvolvidas em dezessete  anos de  Revolução Bolivariana, porém,  não são poucas as críticas ao verticalismo do Partido Socialista Unificado da Venezuela  (criado por Chavez para unificar e institucionalizar  a ação revolucionária ) , ao mandonismo e a demonização de críticos no interior do partido. Não é à toa que retificação é uma palavra que surge em todas as bocas. Da profundidade deste processo renovador, de sua capacidade de combater a corrupção interna e corrigir a autossuficiência do governo (que continua a cometer erros graves no terreno da luta política, como demonstram os enormes murais exaltando a Venezuela Potencia! por cima das longa filas por alimentos) e principalmente de sua capacidade de animar e mobilizar o povo chavista – ainda saudoso do seu Comandante- a sair às ruas para convencer a maior parte da população  de que  os problemas econômicos possuem uma raiz política e que podem ser superados no interior  da via  democrática e popular reside a possibilidade do governo ganhar um folego para seguir adiante travando a batalha.
 
No entanto a grande questão e em última instância a decisiva é a do horizonte da revolução. Dezessete anos depois da primeira eleição de Chávez, a revolução bolivariana precisa ser relançada, necessita de um programa que atualize seus objetivos, apresente claramente como será alcançada a diversidade produtiva, libertando o país da dependência absoluta do petróleo e como a reforma agrária será capaz de alcançar a tão sonhada soberania alimentar.  Estes dois objetivos foram apontados por Chávez ao definir o Socialismo do século XXI como o porto de chegada da Revolução Bolivariana. A partir daí foram realizadas estatizações, se investiu em infraestrutura e foi lançada uma  reforma agrária que enfrentou  grande resistência dos latifundiários,  tendo até agora custado a vida  de duzentos camponeses, segundo dados oficiais. Nas cidades e nas estradas abundam painéis exaltando a “construção da pátria socialista” e nas lojas e supermercados produtos fabricados por empresas estatais trazem um selo com os dizeres “feito no socialismo”.
 
Apesar de todo esforço, a Venezuela continua escrava do petróleo, não consegue produzir alimentos suficientes para alimentar seu povo e o socialismo é uma vaga e difusa ideia a espera de sua concretização. Apresentar um programa que seja capaz de mostrar para a população como os objetivos estratégicos serão alcançados, o caminho a ser percorrido, as dificuldades que serão encontradas e portanto prepare  o povo para os inevitáveis enfrentamentos  parece ser uma necessidade inadiável.
 
De agora em diante os desdobramentos da conjuntura política da Venezuela terão que ser acompanhados diariamente por todos aqueles que reconhecem, valoram e se solidarizam com um processo que em muito ajudou colocar a luta dos povos latino-americanos num patamar superior. Ainda que o Alto Comando da Força Armada Nacional Bolivariana tenha dado provas de coesão e fidelidade ao ideário chavista, setores da direita venezuelana possuem um DNA golpista e sonham com uma intervenção imperialista.  A disputa entre os poderes executivo e legislativo assume agora o centro da luta política.  A sorte está lançada.
 
Luiz Arnaldo Campos é cineasta, membro da Fundação Lauro Campos e esteve recentemente na Venezuela.

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