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“O Brasil chega a um penoso
trânsito de uma democracia de baixa intensidade para uma desavergonhada
plutocracia que nada de bom poderá oferecer ao seu povo e, por extensão, para a
América Latina, angustiada e entristecida por ver seu “irmão mais velho” se
render diante dos capitalistas sem oferecer a menor resistência".
Reproduzido do site Unisinos (Instituto Humanitas Unisinos), de 02/12/2014
“Vencedora
nas urnas e derrotada e humilhada fora delas, Dilma assume como seu o pacote econômico de seus inimigos, que afundou a Europa em sua
pior crise desde a Grande Depressão e
que tantos estragos ocasionou na América Latina", avalia o cientista
político Atilio A. Boron, em artigo publicado por Rebelión, 01-12-2014. A tradução é do Cepat.
Segundo
ele, "ao anunciar a nomeação de Joaquim Levy como
Ministro da Fazenda, um ‘Chicago boy’ e homem
do banco brasileiro e internacional, Dilma e o PT se eximem covardemente de sua responsabilidade
histórica".
"Com
esta medida adotada pelo governo do PT - conclui o
cientista político argentino - o
Brasil chega a um penoso trânsito de uma democracia de baixa intensidade para
uma desavergonhada plutocracia que nada de bom poderá oferecer ao seu povo e,
por extensão, para a América Latina, angustiada e entristecida por ver seu
“irmão mais velho” se render diante dos capitalistas sem oferecer a menor
resistência".
Eis
o artigo:
Dilma se entregou sem lutar! Com
sua lamentável decisão de entregar aos banqueiros os recursos fundamentais do
estado, veio abaixo toda a mistificação do “pós-neoliberalismo” construída ao
longo destes anos pelos publicitários do PT. Dilma tinha opções? Claro que sim! Em momentos
como este é mais do que nunca necessário não ceder diante da chantagem
tecnocrática e antipolítica dos resignados do PT e de seus
partidos aliados que, parafraseando o que dizia Margaret Thatcher,
afirmam que “não havia alternativas”, que isto é doloroso, mas “era a única
coisa que podíamos fazer”.
Se nas
vésperas da eleição propus, contra aqueles que pregavam o voto em branco ou
nulo, o voto em Dilma, era por duas razões:
primeiro, porque era imprescindível fechar as possibilidades para Aécio, representante da direita dura, neocolonial até a
medula e sem o menor compromisso com qualquer causa ou estrutura popular, coisa
que o PT teve e decidiu jogar fora; segundo, porque me
parecia razoável apostar que, diante do horror do abismo, Dilma e os petistas teriam ainda uma mínima
capacidade de reação e lucidez para, ao menos, procurar passar para os anais da
história com algo de dignidade. Reconheço ter superestimado a capacidade
de Dilma e dos petistas de conservar esse reflexo
elementar sem o qual a vida política se torna um interminável calvário. Porém,
mesmo assim, continuo sustentando que a aposta era válida; que o desperdício de
uma oportunidade única não significa que a mesma não existiu; e se caso
houvesse triunfado Aécio, nós
estaríamos diante de uma situação ainda pior do que a que precisamos enfrentar
hoje.
Minha
reflexão se sustentava, do ponto de vista tanto epistemológico como prático, na
tese que afirma que os processos históricos não obedecem a um padrão
determinista. Caso fosse assim, o simples desenvolvimento das forças produtivas
conduziria inelutavelmente à revolução e à abolição do capitalismo, coisa que
todos os marxistas – de Marx e Engels até os nossos dias, passando, é claro,
por Lênin, Gramsci e Fidel – se encarregaram de refutar por ser uma
crença equivocada, que estimulava a desmobilização e o quietismo das classes e
camadas exploradas e desembocava, no melhor dos casos, no tíbio reformismo
social-democrata.
Assim
como Lênin destacou centenas de vezes, o capitalismo
não cairá, caso isso não seja provocado, o que requer um componente essencial:
a vontade política. Isto é, a firme decisão de combater em todas as frentes da
luta de classes, organizar o campo popular, promover a conscientização e a
batalha de idéias e, é claro, adotar a estratégia geral e a tática pontual mais
apropriada para intervir na conjuntura, esquivando-se dos riscos sempre
presentes e simétricos do voluntarismo, que ignora os condicionamentos
histórico-estruturais, e o triunfalismo fatalista que confia em que as cegas
forças da história nos conduzirão à vitória final.
Os que aderem ao determinismo
histórico não são os marxistas, mas, sim, os economistas e governantes
burgueses, sempre prontos para dissimular suas opções políticas como o
resultado de inexoráveis imperativos técnicos. Se para abater a inflação os
salários são congelados, e não se controla a formação dos preços, é por uma
razão despojada de qualquer vestígio de política e ideologia, tão pura em sua
abstração como um teorema da geometria. Se para melhorar as contas fiscais são
cortados os orçamentos da saúde, educação e cultura, ao invés de se fazer uma
reforma tributária para que as empresas e as grandes fortunas paguem o que lhes
cabem, é dito que aquela é a alternativa que brota de uma análise puramente
técnica das receitas e despesas do estado. Outra impostura!
Foi pela
rejeição de qualquer concepção fatalista ou determinista que cheguei à
conclusão, que ratifico no dia de hoje, de que apesar do fortalecimento da
direita, Dilma e o PT ainda tinham
uma oportunidade; que lhes restava uma bala na agulha e que caso tivessem
lucidez e vontade de avançar pela esquerda, ainda poderiam salvar algo do
processo iniciado com a fundação do PT (e que
tantas esperanças havia suscitado), evitando um retrocesso brutal que
significaria, para o movimento popular brasileiro, ter que subir uma difícil
ladeira para relançar seu projeto emancipatório. Por isso, permito-me
reproduzir o que escrevi após a pírrica vitória de Dilma (e agora, sim, entende-se porque foi
pírrica, porque o triunfo causou mais dano ao vencedor do que ao vencido,
a Dilma e ao PT do que
a Aécio). Nessa nota, eu dizia o seguinte:
“Para não
sucumbir diante destes grandes fatores de poder se requer, em primeiro lugar, a
urgente reconstrução do movimento popular desmobilizado, desorganizado e
desmoralizado pelo PT, algo que não
poderá fazer sem uma reorientação do rumo governamental que redefina o modelo
econômico, corte os irritantes privilégios do capital e faça com que as classes
e camadas populares sintam que o governo quer ir para além de um programa
assistencialista e que se propõe a modificar, pela raiz, a injusta estrutura
econômica e social do Brasil. Em segundo lugar, lutar para realizar uma
autêntica reforma política que empodere, verdadeiramente, as massas populares e
abra o caminho largamente demorado de uma profunda democratização...
Contudo,
para que o povo assuma seu protagonismo e floresçam os movimentos sociais e
forças políticas que motorizam a mudança – que certamente não virá ‘de cima’ –
seria preciso tomar decisões que efetivamente os empoderem. Uma reforma
política é uma necessidade vital para a governabilidade do novo período,
introduzindo instituições tais como a iniciativa popular e o referendo
revocatório que permitirão, se é que o povo se organizará e se conscientizará,
colocar fim à ditadura de caciques e coronéis que fazem do Congresso um baluarte da reação.
Será este o curso
de ação no qual Dilma se embarcará? Parece pouco provável, salvo que a irrupção
de uma renovada dinâmica de massas, precipitada pelo agravamento da crise geral
do capitalismo e como resposta diante da recarregada ofensiva da direita
(discreta, mas resolutamente apoiada por Washington), altere profundamente a
propensão do estado brasileiro de gerir os assuntos públicos de costas para o
seu povo... Nada poderia ser mais necessário para garantir a governabilidade
deste novo mandato do PT do que o
vigoroso surgimento do que Álvaro García Linera denominou como ‘a potência plebeia’,
adormecida por décadas sem que o petismo se atrevesse a despertá-la. Sem esse
massivo protagonismo das massas no estado, este ficará prisioneiro dos poderes
tradicionais que vêm regendo os destinos do Brasil desde tempos imemoriais”.
Ao
anunciar a nomeação de Joaquim Levy como
Ministro da Fazenda, um ‘Chicago boy’ e homem
do banco brasileiro e internacional, Dilma e o PT se eximem covardemente de sua responsabilidade
histórica. Em Cadernos do Cárcere há uma nota
intitulada “A fábula do castor”, na qual Gramsci diz o seguinte a respeito da incapacidade
das forças de esquerda em resistir eficazmente à ascensão do fascismo: “O
castor, perseguido pelos caçadores que querem lhe arrancar os testículos dos
quais se extraem substâncias medicinais, para salvar sua vida, arranca de si
mesmo os testículos. Por que não houve defesa? Pouco sentido da dignidade
humana e da dignidade política dos partidos? Mas, estes elementos não são dons
naturais... são ‘fatos históricos’ que se explicam com a história passada e com
as condições sociais presentes”.
Ao
convidar Levy e seus tenebrosos doutores da ‘doutrina do
choque’ – Naomi Klein dixit – para tomar
por assalto o estado (e especular com a possibilidade de que se ofereça à
senadora Kátia Abreu, forte inimiga do Movimento Sem Terra e líder da Confederação Nacional da Agricultura, lobby do agronegócio,
o Ministério da Agricultura), o governo petista agiu como
o castor da fábula: castrou-se a si mesmo e traiu o mandato popular que havia
repudiado a proposta de Aécio, ao servir o
poder de bandeja aos seus declarados inimigos, perpetrando uma gigantesca
fadiga pós-eleitoral sem precedentes na história do Brasil.
Isto
explica o júbilo dos grandes capitalistas e de seus representantes políticos e
midiáticos, que celebraram este gesto de ‘sensatez’ de Dilma como uma extraordinária vitória. Com efeito,
perderam nas eleições porque o voto popular não os favoreceu, mas a burguesia
não mede suas forças e disputa o poder apenas no terreno eleitoral. Seria uma
demonstração de cretinismo eleitoral pensar dessa maneira. Para corrigir as
errôneas decisões do eleitorado existem os ‘golpes de mercado’ e seu fiel
escudeiro: o ‘terrorismo midiático’ impunemente exercido no Brasil na recente
conjuntura eleitoral. Vencedora nas urnas e derrotada e humilhada fora
delas, Dilma assume como seu o pacote econômico de seus
inimigos, que afundou a Europa em sua pior crise desde a Grande Depressão e que tantos estragos ocasionou
na América Latina. Havia alternativas? Claro.
A partir
do que Gramsci observava, por que Dilma (e Lula) não denunciou
a manobra da burguesia e disse ao povo que se estava a ponto de cometer um
verdadeiro golpe na vontade popular? Por que não se convocou os setores
populares para ocupar fábricas, parar o transporte, bloquear bancos, comércios,
escritórios públicos e os meios de comunicação para deter o “golpe brando” em
surgimento?
Em uma palavra, porque tanta passividade, tanta resignação? Como
explicar uma derrota ideológica e política desta magnitude?
O que vem
agora é a velha receita para seduzir os mercados: ajuste fiscal ortodoxo;
estímulos para aumentar a rentabilidade empresarial, sobretudo do setor
financeiro; corte no investimento social (pejorativamente considerado como um
‘gasto’), tudo para restaurar a confiança dos mercados, o que equivale a uma
impossível tarefa de Sísifo, porque estes
jamais confiam em outra coisa que não seja o crescimento de seus lucros. Prova
disso: jamais na história brasileira os bancos ganharam tanto dinheiro como
durante a gestão dos governos do PT.
Apaziguaram-se
por isso? Pelo contrário. Ficaram ainda mais famintos, querem mais, querem
governar diretamente sem o estorvo de uma mediação política. Seu vício ao lucro
é incontrolável, e se comportam como viciados. O remédio que sem contrapeso
algum no sistema político estes feiticeiros aplicaram nas finanças é um coquetel
explosivo, que não servirá para promover o crescimento econômico do Brasil, mas
que, sem dúvidas, potencializará o conflito social até níveis poucas vezes
visto nesse país. A feroz resposta repressiva que ocorreu diante das grandes
mobilizações desencadeadas pelo aumento da tarifa do transporte público, em
junho de 2013, pode ser uma brincadeira de crianças em comparação ao que poderá
acontecer em um futuro imediato, assim que Levy e os
banqueiros começarem a aplicar suas políticas.
Se
olharmos para o gráfico precedente, veremos que não basta para o setor
financeiro se apropriar de nada menos que 42.04% do orçamento federal do
Brasil, do ano 2014, em juros e amortizações da dívida pública, contra os 4.11%
em saúde, 3.49% em educação e pouco mais de 1% no Bolsa Família. Para melhorar ainda mais sua
rentabilidade, Levy trabalhará com afinco para perpetuar a
dependência do estado aos empréstimos dos banqueiros, subir ainda mais as
exorbitantes taxas de juros alcançadas por estes e aumentar sua participação
leonina no orçamento, tudo isto deixando intacta a regressiva estrutura
tributária e os privilégios e prerrogativas que o capital gozou nos últimos
tempos. No entanto, seria um erro supor que as andanças de Levy e dos seus têm como único objetivo aumentar a
riqueza dos capitalistas. O objetivo que as classes dominantes se impuseram no
Brasil – que não encontrou resistência no governo do PT – é o de fortalecer a posição do grande
capital, não apenas no seio dos mercados, mas também na sociedade e na
política, consolidando uma correlação de forças na qual os movimentos populares
fiquem definitivamente subordinados ao domínio daquele.
Trata-se, em suma, de
um projeto de refundação do capitalismo brasileiro, montado sobre o fracasso do
reformismo light do PT e onde,
assim como no Chile refundado pela ditadura
pinochetista, a aliança burguesa exercerá o domínio político direto, sem a
incômoda intermediação da clamorosa partidocracia, que apenas produz ruídos que
perturbam a paz e a serenidade que os mercados necessitam.
Com esta
medida adotada pelo governo do PT, o Brasil chega a
um penoso trânsito de uma democracia de baixa intensidade para uma
desavergonhada plutocracia que nada de bom poderá oferecer ao seu povo e, por
extensão, para a América Latina, angustiada e entristecida por ver seu “irmão
mais velho” se render diante dos capitalistas sem oferecer a menor resistência.
Confiamos que as forças populares brasileiras, cedo ou tarde, iniciarão um
processo de recomposição para evitar a barbárie que paira sobre elas.
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